É como a dança dos dervixes. Insinuam-se os primeiros movimentos e, quando menos se dá por isso, estamos perante um rodopio. Há um ano, os investidores turcos nem surgiam nas cinco primeiras posições na lista de Vistos Gold, emitidos em Portugal. No final de outubro, já estavam próximos de entrar no top 3, com 264 autorizações de residência para investimento emitidas, o triplo de há um ano (quando eram 88) e a apenas duas de superar a África do Sul. Segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), até agosto, o investimento do país do Bósforo atraído através destes instrumentos quase triplicou em termos homólogos, para um total de €144,1 milhões.
Vêm em família, movidos pelo passa-palavra de outros investidores que já têm o visto dourado no bolso. Convence-os a segurança do País, a imagem de recuperação económica dos últimos anos, o clima social tranquilo, a hospitalidade e algumas semelhanças culturais, além do domínio fácil do inglês e do francês. Procuram investimentos em setores tão distintos como a indústria, o mar, a agricultura e os serviços, da restauração ao turismo, passando pelo comércio de luxo. São cada vez mais mas sempre discretos.
“Têm uma forma mais low-profile de fazer as coisas, tendem a aconselhar-se com três ou quatro fontes, no máximo, e são mais assertivos. Atrai-os um País europeu muito moderno, as pessoas, a comida, o clima de investimento favorável”, resume João Pestana Dias, presidente da Associação Portuguesa de Cooperação com a Turquia – The Trade Connection Portuguese Turkish Network, que surgiu em 2015, para dinamizar os negócios entre os dois países. “Portugal está na moda”, classifica.
Um dos investimentos mais recentes chegou com a bonança dos últimos anos na hotelaria. Em Lisboa, perto do Panteão, em pleno largo da Feira da Ladra, uma casa setecentista recuperada deu lugar ao Casa dell’Arte Club Lisbon. Depois de anos a gerir três pequenas unidades de alojamento de charme, na localidade costeira turca de Torba, a família Büyükkuşoğlu investiu €2 milhões numa club house com três suites e um restaurante (Ninu), onde expõe peças da sua coleção de arte.
As marcas e o capital turco aterraram também numa das zonas mais caras da capital, quando, em 2015, a Terzihan abriu a sua joalharia no cimo da Avenida da Liberdade. No mesmo ano, a CoVii – Computer Vision Interaction, de Vila Nova de Gaia, foi parcialmente comprada pelo grupo Koç/Arçelik, ligado à eletrónica de consumo. Hoje desenvolve software para produtos inovadores, exclusivamente para as subsidiárias do grupo, que detêm marcas como a Grundig.
“No geral [os investimentos turcos] são muito fortes em Portugal. Mas além de estarem a aumentar, estão a diversificar-se”, explica à EXAME Celeste Mota, a diretora do escritório da AICEP em Istambul, há vários anos a trabalhar nesse mercado. Muitos dos projetos passam ou são intermediados por aquela estrutura, que nos últimos três anos reforçou os esforços de captação de investimento, com visitas a grandes e médias empresas turcas e seminários com empresários.
Além dos euros, o investimento e os negócios trazem cada vez mais pessoas. Em cinco anos, de acordo com as estatísticas do SEF, a população turca residente no País cresceu quase 40%. No final do ano passado, residiam em Portugal 743 turcos, quando, em 2012, eram 537. João Pestana Dias diz que é este o caso de quase todos os portadores de Vistos Gold que conhece. Embora o estatuto só os obrigue a passar parte do tempo no País, eles ficaram a viver e têm os filhos a estudar cá.
Porém, outra fonte contactada pela EXAME, que não quis ser identificada, refere casos de pessoas não alinhadas com o regime do Presidente Erdogan que procuram, na autorização de residência para atividade de investimento em Portugal, um plano alternativo para circular no espaço Schengen sem necessidade de visto. Quando comparadas com outros países, diz, as condições portuguesas são mais competitivas por não obrigarem a muito tempo de permanência no País. O investimento imobiliário, além de mais fácil, valoriza e proporciona rendimento: “Portugal é seguro, e o imobiliário dá dinheiro”, acrescenta a mesma fonte. E, se acontecer algo, o Visto Gold é um “refúgio”.
Após a tentativa de golpe de Estado de 2016 e com poderes reforçados pelo referendo de abril de 2017, Recep Tayyip Erdogan, há 15 anos no poder, foi reeleito, em junho, por mais cinco na presidência da Turquia. Depois de meses de Estado de Emergência marcados pela “censura à Imprensa”, por milhares de saneamentos e de detenções, o relatório anual da Human Rights Watch considerou que as mudanças nos poderes presidenciais reduzem a capacidade de controlo das instituições, em relação ao braço executivo, e constituem um “retrocesso para os direitos humanos e para o primado da lei”.
Centenário de grandes obras
Com mandato renovado, o regime estabeleceu para 2023, quando se comemoram os 100 anos da República da Turquia, metas ambiciosas em áreas como a energia, saúde, transporte e turismo, algumas das quais implicam obras de grande envergadura. Além do recém-inaugurado aeroporto de Istambul – um dos maiores do mundo, capaz de processar mais de 90 milhões de passageiros por ano e avaliado em 12 mil milhões de dólares –, projeta-se a construção de um novo canal paralelo ao estreito de Bósforo, com 45 quilómetros de extensão, ligando o mar Negro ao de Mármara, avaliado em 16 mil milhões de dólares. Istambul está a ser redesenhada para norte, e está previsto muito investimento em energias renováveis, autoestradas e no setor agrícola, em particular no vinho.
Sustentado no consumo e no gasto público nos últimos anos, o crescimento da economia turca dá, porém, sinais de desaceleração. As preocupações com o nível da inflação e a deterioração da relação diplomática com os EUA empurraram a lira para fortes depreciações, que chegaram a superar os 30% desde o início do ano.
No segundo trimestre, a economia avançou 5,2% em termos homólogos, abaixo dos 7,3% verificados do trimestre anterior, e a agência de notação financeira Moody’s teme que possa contrair durante o próximo ano. A inflação homóloga disparou e ficou em 25,2% em outubro.
Do cimento aos frutos secos
Nos últimos anos, conta-se quase uma mão-cheia de grandes investimentos ou de aquisições turcas em solo nacional. A operação mais recente foi a compra das unidades da Cimpor, em Portugal e Cabo Verde, à brasileira InterCement, conhecida no final de outubro. Por €700 milhões, três fábricas de cimento e duas unidades de moagem devem passar para as mãos da OYAK Cement, detida pelo fundo de pensões das Forças Armadas turcas. Com uma compra abrem-se as portas de dois mercados, o europeu e o africano.
Antes desta operação, tinha sido o setor portuário o alvo preferido do investimento turco. Em 2014, a Global Ports Holding, maioritariamente detida pela turca Global Investment Holdings, ganhou em consórcio a construção e a operação do novo terminal de cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia, avaliado em €22 milhões, perspetivando agora novos investimentos em hotelaria e turismo. No ano seguinte, a Yilport comprou os sete terminais portuários da Tertir por mais de €335 milhões. Mas há outras empresas, como a Arkas, especialista em transporte naval, com uma ligação mais longa, de mais de 20 anos, ou a farmacêutica Abdi Farma, desde 2010.
Outros empresários têm literalmente os pés mais assentes na terra, em particular no setor agroalimentar do Interior do País. A imprensa regional do Alentejo e do Centro dá conta de vários casos de interesse de empresários que procuram ou que compraram terrenos para cultivo de frutos secos, como o pistacho ou a castanha. Em Vila Velha de Ródão, a câmara municipal anunciou, em 2016, a intenção de um “importante grupo empresarial turco” fazer um investimento de €5 milhões, para a “maior produção de frutos secos do País”. Em maio desse ano, é criada a Companhia do Lucriz, em Perais, Ródão, para a cultura, o descasque e a transformação de frutos secos, ligada a Ayse Kececi, de origem turca.
Já em Campo Maior, depois de a Fruits of Life ter comprado a Herdade dos Sanguinos, três empresários turcos (Murat Badem e Zeynep e Omer Erguder) apresentaram, em julho deste ano, a vontade de plantar, processar e vender frutos secos. A fábrica, para processar mil toneladas de nozes por temporada, prevê um investimento de 650 mil euros naquele concelho alentejano.
Balança desequilibrada
Se muita desta produção vier a efetivar-se e sair do País a caminho do mercado turco, ela pode dar uma ajuda no equilíbrio da balança de trocas comerciais, que continua deficitária para Portugal. Nos últimos cinco anos, as exportações de bens têm rondado os €300 milhões a €400 milhões por ano, fixando-se, segundo o INE, em €385,5 milhões no ano passado. Nos últimos três anos, a balança de bens foi desfavorável a Portugal, que importou €663,7 milhões em 2017. E esta trajetória assim deverá continuar em 2018: nos primeiros nove meses do ano, as vendas portuguesas estavam a crescer 10,2% em relação a 2017, mas as importações subiam a um ritmo mais de duas vezes superior, 27%.
Dois terços das exportações portuguesas para a Turquia têm origem nos setores das pastas celulósicas e papel, das máquinas e aparelhos e dos plásticos e borracha (entre os principais vendedores estão a Bosch, a Celbi e a Navigator, a Galp e a Continental). E Portugal importa, em particular, veículos e outro material de transporte, matérias têxteis e metais comuns. No ano passado, depois de quatro anos a crescer, o número de exportadores para a Turquia desceu para 784, segundo a AICEP. Nos serviços, as receitas deixadas por turistas turcos em Portugal triplicaram, em quatro anos, para €21,6 milhões, em 2017, e em dois anos as dormidas subiram 25%, para as 100 mil.
O setor mineiro é outro dos visados pelas companhias turcas. Em fevereiro de 2016, a Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM) e a Esanmet, filial da ESAN, empresa turca de exploração mineira com mais de 20 minas, assinaram um contrato para a prospeção e pesquisa de minérios na Faixa Piritosa Ibérica, no Alentejo, um investimento estimado em €7,6 milhões, em três anos. Também oriunda do setor mineiro, a Ozdogu, que fabrica ferro-níquel na Turquia, pediu uma licença de prospeção e pesquisa de cobre, chumbo, zinco, prata e ouro no Baixo Alentejo.
No imobiliário, o grupo KREA recuperou três prédios na Baixa Pombalina e o METEM Group comprou, para recuperar e vender, o prédio onde nasceu Raphael Bordallo Pinheiro, próximo da Avenida da Liberdade. Mais investimento estaria no terreno, sobretudo na área da construção, não fosse a burocracia excessiva, garantem várias fontes contactadas pela EXAME. Os potenciais investidores lamentam o tempo que demoram a obter licenças e dizem que esperar um ou dois anos para começarem a construir uma obra, por exemplo, não é praticável. Na Turquia, asseguram, é mais fácil passar do papel para o terreno.
“Queixam-se de alguma burocracia, de lentidão nas decisões dos processos”, confirma João Pestana Dias, que intermediou direta ou indiretamente duas dezenas de negócios nos últimos anos, envolvendo investimentos de €40 milhões. Além do imobiliário, também há interesse em explorações agropecuárias ou, no setor dos serviços, no franchising de lojas – como é o caso da empresa de gelados de Esmirna, que quer abrir uma rede de geladarias em Portugal.
O responsável quer também estender pontes de cá para lá e pôr os empresários portugueses em contacto com um mercado de 80 milhões de consumidores. Há menos de um mês, intermediou o contacto entre duas construtoras portuguesas com dois grandes grupos turcos, a Enka, maior construtora do mercado, e a Yildirim, dona da Yilport, que procuravam o know-how das firmas portuguesas, em África e na América do Sul, para expandir as suas operações. O mesmo responsável está ainda a preparar uma missão à Turquia, em fevereiro, para juntar empresários e líderes portugueses com os turcos, numa viagem cultural e de negócios.
O abrandamento da economia parece não assustá-lo: “A Turquia está com preços altamente competitivos, sobretudo na hotelaria. Tem escala e uma força de trabalho qualificada, além de um clima de investimento muito liberal e reformista.”
Notícia publicada originalmente na edição de dezembro de 2018 da EXAME