“Quer meter um autocarro no Tejo? Impossível.” Foi a resposta que Frank Alvarez ouviu dos serviços públicos vezes sem conta, quando chegou a Portugal, em dezembro de 2008, cheio de ânimo para licenciar um negócio novo em Lisboa: circuitos turísticos em ‘veículos anfíbios’, preparados para circular em terra e na água.
“Como consultor, sabia que não era impossível, por haver um histórico de autocarros destes noutras partes do mundo. Nos Estados Unidos, qualquer cidade tem um circuito destes”, refere Frank Alvarez, que trabalhou durante anos na Bain & Company e se demitiu da consultora justamente para lançar em Lisboa os circuitos da Hippotrip.
O processo esteve longe de ser fácil: foram 53 meses de intensa burocracia até conseguir pôr o primeiro hippotrip a circular em Lisboa e a navegar no Tejo. Mas o produto foi bem acolhido no espaço de um ano recebeu 30 mil passageiros e recentemente a operação multiplicou-se com a chegada de dois novos veículos.
Ideia nasceu com a tese em Harvard
Frank nasceu em Toronto, no Canadá, “onde há 450 mil lusodescendentes”, o que é o seu caso. O pai é minhoto, de Melgaço, e a mãe alentejana, de Vila Nova de Santo André. Na sua vida, Portugal nunca foi uma realidade distante, até porque vinha muitas vezes ao país ver a família ou de férias com amigos.
“Sempre tive o sonho de viver na Europa, de preferência em Portugal”, confessa. “E também queria ser empreendedor, como os meus pais. Em criança, eles falavam sempre dos negócios ao jantar e pediam-me a opinião. Fiquei sempre com essa forma de pensar.”
Em 2005 estava na Universidade de Harvard e precisava de identificar uma oportunidade de negócio para a tese de MBA. “Pensei em Portugal e no facto de o turismo ser o futuro do nosso país. Quando vinha cá com amigos, eles pediam para ver Lisboa da água e havia poucas opções, o que é estranho, pois temos o histórico de ser navegadores”, nota. Em Boston, onde estudava, os circuitos anfíbios eram regulares, e ele próprio chegou a fazer de guia. “Às tantas, pensei: espera lá, é um negócio que em Portugal seria ideal.”
Tirou o MBA e não esqueceu a ideia, que ficou a fazer-lhe “comichão na cabeça”. Esteve mais três anos a trabalhar na Bain como consultor até tomar a decisão. “Acabei por me demitir e vim para Portugal, para este desafio”, conta.
O que não contava era ter de enfrentar um processo kafkiano que durou quatro anos e meio. “Não é normal ficar tanto tempo à espera de um projeto; numa outra cidade isto levaria 18 meses, no máximo”, considera. A principal guerra foi conseguir homologar o veículo, que é simultaneamente um autocarro e um barco, o que obrigou a passar por gabinetes de sete entidades públicas. “Só via portas a fecharem-se, sentia que tinha de partir um muro”, recorda. “Era frustrante, nem sequer diziam que papéis era preciso tirar.” Os próprios serviços não sabiam. “As entidades públicas, no início, chamavam o veículo de ‘objeto’, nem queriam usar a palavra ‘embarcação’.” Em cada gabinete, o projeto era descrito como “impossível” e teve de enfrentar barreiras. “Lidei com tantas pessoas, e senti que elas queriam que eu desistisse.” Era algo a que não estava habituado. “A mentalidade é diferente nos Estados Unidos, lá o empreendedor é celebrado por ter uma ideia nova”, salienta. “O mais irritante dos portugueses é que gostam de adiar. Mas quando é preciso uma solução rápida, conseguem tudo. Se, como povo, começássemos da forma como acabamos, seríamos o país com maior produtividade na Europa.”
Apesar do otimismo nato, Frank Alvarez teve momentos em que achou que não iria conseguir e que o seu investimento podia ir por água abaixo. Um dia, após uma série de reuniões infrutíferas, teve uma crise num supermercado. “Queria escolher uma lata de atum e havia tantas opções que eu desatei a chorar.” Chegou a casa e contou à mulher. “Olha que isso não foi só o atum”, avisou ela.
A história acabou bem. Frank conseguiu iniciar o seu city tour anfíbio em Lisboa em maio de 2013 (teve até de construir a rampa em Belém para a entrada no rio), e já triplicou a operação com dois novos veículos, tendo prevista a chegada de um quarto. “O caso da Hippotrip é um sucesso. Foi uma luta, mas provou que até o impossível é possível”, frisa. “O que me preocupa é pensar quantos não ficaram pelo caminho? Quantas pessoas em Portugal têm boas ideias e não fazem nada por causa das dificuldades?”
Os circuitos da Hippotrip “foram bem recebidos” e, mesmo em crise, “a adesão dos portugueses continua a ser surpreendente, ainda são 85% dos nossos clientes”. A próxima etapa é entrar no roteiro dos hotéis e da distribuição turística para elevar a quota de estrangeiros. “O dinheiro não cresce em árvores, e inicialmente não tínhamos meios para marketing”, refere o fundador da Hippotrip, consciente de que “temos de encher os veículos, e 25 euros não é caro para um estrangeiro, mas para um ‘tuga’ já é”. Até para rentabilizar o investimento de dois milhões de euros agora realizado no reforço da frota. “Um veículo destes não é o mesmo que ir a um stand comprar um carro ligeiro”, faz notar.
Frank Alvarez já tem novos projetos em mente, que passam por expandir a operação ao Porto e também a Espanha. “E o futuro da Hippotrip talvez não seja só turismo anfíbio”, adianta. “O futuro do turismo são experiências únicas deste tipo. E há tantas coisas para fazer! Amigos meus vêm a Lisboa e estão sempre a dizer: falta isto, falta aquilo. E são ideias boas!”
Para já, a prioridade é consolidar a operação em Lisboa. “Tem de ser tudo por passos. Roma não foi criada num dia”, sublinha Frank, que gosta de “pôr as mãos na massa, estar no terreno”, e ele próprio é motorista da Hippotrip aos domingos. “No final, todas as pessoas saem com um sorriso na cara. A relação que conseguimos com os clientes vale ouro”, garante. “Podem-se fazer coisas malucas, diferentes e divertidas, e é fantástico que apareçam cada vez mais coisas em Lisboa.”
Reconhece que “para tudo na vida é preciso lutar, mas neste caso bem que podia ter sido um pouco mais fácil”. Na visão de Frank Alvarez,”Portugal precisa de mais exemplos que mostrem que qualquer sonho é possível desde que haja dedicação, persistência e trabalho”.
LUSO-CANADIANO
Frank Alvarez
Fez uma tese de MBA em Harvard sobre o potencial de Portugal para city tours anfíbios, comuns nas cidades americanas. E acabou por lançar o negócio em Lisboa
Idade
38 anos
Origens
Nasceu em Toronto, no Canadá. O pai era de Melgaço e a mãe de Santo André, no Alentejo. Desde miúdo vinha muitas vezes a Portugal de férias
Percurso
Viveu em Espanha e na Holanda. Formou-se em Harvard (EUA), onde fez uma tese de MBA sobre turismo anfíbio em Portugal. Trabalhava então como consultor da Bain, e nos tempos livres era guia destes circuitos em Boston. Acabou por se demitir da consultora e vir viver para Lisboa para concretizar este projeto
GUIAS INTERAGEM COM TURISTAS
Conhecer Lisboa com humor
“Hippo, hippo, hurra!” É o grito de guerra que o guia ensina logo à chegada, para ser entoado em coro nas diferentes fases do percurso. “Estes ‘bichos’ movem-se a combustível e também com a energia que nós lhes damos”, frisa. Os próprios guias fazem parte da ‘experiência Hippotrip’, interpolando os turistas enquanto falam ao microfone, desdobrando-se em português e inglês -e são “uma injeção de boa disposição”, como descreve Frank Alvarez, que já esteve muitas vezes nesse papel. Let’s do it, let’s do it, é a música que ecoa no veículo, enquanto David, o guia, vai dando informações sobre Lisboa, desde a história das sete colinas, que vem do tempo em que havia “serpentes gigantes”. Em Belém, lembra que “muitos barcos saíram daqui quando fomos à conquista do mundo”, e o Brasil vem à baila. “Sabem quem inventou a caipirinha? A Carlota Joaquina, ela bebia uns 20 litros por dia.” O momento alto é quando o veículo desce, sob música triunfal, a rampa em Belém e começa a navegar pelo Tejo, permitindo a vista privilegiada do Padrão dos Descobrimentos e da Torre de Belém. “Bem-vindos à pior estrada de Portugal”, anuncia o guia, já de volta a terra em Algés. No final, todos clamam, a plenos pulmões, o grito de guerra: “Hippo, hippo, hurra!”
O circuito anfíbio da Hippotrip
O percurso começa na Doca de Alcântara, junto ao edifício em tijoleira da Associação Naval de Lisboa. Segue por estrada pelo Cais do Sodré, Terreiro do Paço, Baixa, Rossio, Marquês de Pombal, Rato, Estrela, e na Doca de Belém entra no rio, navegando pelo Tejo. No centro náutico de Algés volta a entrar em terra e termina em Alcântara, no local de partida.
SABIA QUE
4,5 anos demorou a licenciar a operação da Hippotrip em Lisboa, obrigando a lidar com dezenas de gabinetes de sete diferentes entidades públicas. O veículo, que é simultaneamente um autocarro e um barco, não estava sequer homologado em Portugal e o dossiê teve de ser criado do zero
2 milhões de euros foi o investimento já realizado na aquisição dos três autocarros ‘anfíbios’ para os circuitos em Lisboa, prevendo a Hippotrip vir a ter um quarto veículo
407 lugares é a oferta diária em Lisboa da Hippotrip, que faz percursos entre as 9h e às 19h. Cada circuito dura quase duas horas
Este artigo é parte integrante da edição de setembro da Revista EXAME