Não olhes para trás que para trás mija a burra
Nada a não ser esta casa, cheia de silêncio e penumbra, e tu às voltas com o teu livro. Para quê? Já existem tantos livros, não é, quem consegue fazer--se ouvir acima deste ruído monótono? Vais à janela e um cão lá em baixo, na espécie de jardim, à volta da casa, que ora cheira ora se suspende a pensar. Se fosses cão em que pensarias? Passa-te tanta coisa pela cabeça
Escrever
Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo
Tocar-te com um dedo na pontinha do nariz
Devia ter chamado Eva às três mas aí intervinha a subtileza da minha mãe – E se ela for feia?porque Eva um nome pesado, ser Eva e feia seria uma desgraça, quem neste mundo aguenta uma Eva feia e tinha razão, quem neste mundo aguenta uma Eva parva e tinha razão, embora não acreditasse que, de mim, nascessem mulheres feias ou parvas, os meus cromossomas não são feios nem parvos
Claudio
Agora no México achei-te melancólico e inquieto, distante, cansado, e vim de lá a pensar muito em ti, amigo, que é uma palavra que não digo muitas vezes. Amigo. Sempre foste um homem complexo, por vezes contraditório, por vezes imprevisível. Ou seja, somos um bocado parecidos. E gostava de ti, gosto de ti, mesmo da tua ironia, da tua ocasional ferocidade. Nada é fácil, não é, tudo é excepcional
O livro novo
Um livro não é uma prenda que cai do céu, é uma coisa conquistada migalha a migalha, o resultado, pelo menos para mim, de uma paciência infinita, um – Anda lá rapaz sem termo à vista. E o rapaz lá vai, cheio de cuidado com os sítios onde pôr os pés, dado que tudo escorrega à minha volta. Ao mesmo tempo gosto destes desafios, desta luta. Lembra-me a guerra e eu não gosto de perder, não me resigno a perder
A lua vista pelos mortos
Agora, de repente, pareceu-me ouvir os pinheiros da Beira Alta, distinguir a minha avó numa casa qualquer lá em baixo, acenando-me. Os seus imensos olhos azuis nunca me ralharam. Esperam apenas. O quê? Hei-de voltar, senhora, palavra de honra que hei-de voltar uma tarde em que os sinos de São Miguel chamem mais baixinho
Foi assim
Eis-me aqui em Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha G3, o que me aconteceu a mim?
A partir dos cinquenta quem manda é o cavalo
Como era o nome do muralista? Rivera, isso. Ainda cá canta, o México, nem o cavalo me desvia dele, palavra de honra. Depois dos cinquenta é o cavalo quem manda mas eu continuo no selim. Com o futuro talvez não à minha frente, atrás, mas continuo no selim. Por mais esforços que o tempo faça não me tira daqui. Posso baloiçar, posso escorregar mas aguento. Torto mas aguento. Quase a tombar mas aguento
Os livros. Nós – 4 (crónicas pequeninas)
Trabalhei como um danado, diariamente, anos a fio, de modo que me sinto no direito de repetir a frase de Bocage, depois de dizer aos outros um poema seu: – Isto é meu, isto não morre que é a única eternidade a que posso aspirar e que, de qualquer maneira, não me servirá de nada
O meu pai Nós – 3 (crónicas pequeninas)
À hora do jantar interrompeu a música, sentou-se na cabeceira da mesa, no lugar dele, esperou que chegássemos com a mãe e ocupássemos os nossos lugares, tirou os óculos escuros que enfiou no bolso, parecia sereno e distante, quase indiferente, praticamente não tocou na sopa nem no que havia para comer a seguir, e ali ficámos todos calados durante o tempo da refeição
Crónica familiar Nós – 2 (crónicas pequeninas)
Por baixo da tua aparente distância, tu que algumas pessoas consideravam arrogante, havia um coração de oiro e uma discreta bondade sem fim. A tua relação com o pai era complexa e competitiva. Eu nunca entendi bem essa fraqueza tua por me estar nas tintas para uma opinião que não fosse a minha. Fiz sempre o que queria e não me interessavam guerras inúteis
O meu avô e eu Nós – 1 (crónicas pequeninas)
A nossa viagem de volta a casa passou-se num silêncio absoluto. As últimas palavras de André Brun foram – Não deixes que me façam uma estátua equestre, quero uma estátua divanestre e piscaram o olho um ao outro ao imaginarem André Brun estendido num divã de bronze, todo repimpadinho
Ontem voltei a ser feliz
E sentou-se de pistola na mão, e depois abraçou-me, e depois desatou a chorar porque a vida não é verdade, porque a vida senhor doutor, porque a vida, porque a vida, porque a vida, o enfermeiro pegou na pistola
Zé
Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer – Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo. E, (...), aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível
Ai madre, moiro de amor
Que esquisito ser bicho, que esquisito ser pessoa também, tomar banho numa selha, mover a bomba da água: o Vergílio parava a carroça sempre ao lado do poço, às vezes deixava-me pegar um bocadinho na rédea, o João não tinha medo das vespas
A gente os três
Numa das ocasiões em que lá foi espreitou a minha turma pela janela e voltou aterrada porque eu me achava sentado ao contrário na carteira, a olhar para o tecto. Segundo ela a setora de Francês perguntou-lhe – Como é que eu podia chumbar aqueles olhos azuis? e a minha mãe chegou a casa capaz de estrangular-me, a repetir advérbios de modo que levou a minha infância a atirar-me à cara: – Francamente
A viagem à China
Meu Deus o que eu teria gostado de, aos cinco anos, viajar à China com o meu pai. Ou sozinho. O problema é que não conheço muito bem o caminho, não estou certo se para a China se vira antes ou depois do Marquês de Pombal, se é necessário passar pelo Areeiro, se há uma seta nos Olivais com a palavra China por baixo
MÃE
Os nossos mal entendidos residiam nisso: eu só me preocupava com o centro da Terra e a minha Mãe queria que eu fosse uma pessoa responsável e séria. Compreendo-a muito bem: no seu lugar faria os impossíveis para impedir um filho meu de se tornar uma espécie de Ícaro a tombar, de asas desfeitas, no negrume do desconhecido
O dentista
– Estás a ver esta tenaz? É canja: apontas o instrumento à boca, apanhas o que estiver a chatear, puxas para fora e acabam-se os incómodos. Se por acaso o doente protestar enfias-lhe o joelho nas costelas, que é como se faz lá em Portugal e aquilo cai-te logo na mãozinha que é uma beleza
Manos
Com o Pedro, por exemplo, os momentos em que dialogávamos mais eram a seguir ao jantar das quintas-feiras, quando íamos fazer chichi contra a cascata à esquerda do portão, ambos olharmos para baixo, lado a lado, no escuro. Fazer chichi acompanhado é o acto de amizade mais profundo que conheço
O doente
Talvez seja completamente idiota dizer isto mas dei por mim a gostar muito de si. Há uma dor aqui no quarto, filho, mas não sei se sou eu que a tenho. E o meu coração entendeu que daria a vida por mim. Graças a Deus não foi preciso