‘Tive positiva a português, Johnson! ” A adolescente está eufórica como só os miúdos conseguem estar. “Fixe! Bate aqui!” Quando Johnson Semedo levanta a mão para um “dá cá mais cinco”, não é um homem de 42 anos.
É um amigo, um compincha, um irmão. Um deles. Ri-se como eles e fala como eles. Mas também sabe quando franzir a testa. “Tens teste amanhã, não tens?”, pergunta a um rapaz, enquanto limpa umas gotas de sumo entornadas numa cadeira. “Então vai para aquela carteira estudar e pede ajuda.”
Numa das mesas da sala, num rés do chão do Bairro do Zambujal, cedido pela Câmara da Amadora, os decibéis aumentam até abafarem as outras conversas. Johnson aproxima-se. Discute-se cidadania. “As gajas…”, começa um miúdo. “As quê?”, interrompe uma das 14 voluntárias que trabalham na associação Academia do Johnson. “As damas…”, corrige o rapaz. “As quê?, insiste a mulher. “As meninas…” A monitora parece satisfeita. “Ah, bom.” O debate é sobre qual dos quatro bairros mais pobres da zona Zambujal, 6 de Maio, Cova da Moura e Boavista é o melhor. Cada um, claro, puxa pelo seu. “O teu é melhor? Não, é o teu? Expliquem porquê”, sentencia Johnson. Silêncio. “Ok. Começo eu. Eu gosto mais da Cova da Moura porque cresci lá. Lembro-me de ser miúdo e as pessoas a venderem coisas na rua, como em África, de irem pedir um pacote de arroz a um vizinho, de deixarem o filho com outro. É um bairro familiar. Mas isto não quer dizer que seja melhor. É diferente. Tem dificuldades e qualidades. Como todos. Bairros e pessoas.”
‘A rua tirou-me o racismo’
Os miúdos ouvem-no. Respeitam-no, não pela idade, mas por ser quem é. Alguém que passou a maior parte da sua vida prostrado, mas que conseguiu levantar-se quando já ninguém esperava e decidiu dedicar o seu tempo a impedir que outros miúdos caiam. O percurso, contudo, não seria em linha reta.
Johnson Semedo nasceu em São Tomé e Príncipe, penúltimo de oito filhos, em 1972. Quando completou dois anos, a mãe pegou nas crianças e embarcou para Portugal, onde já se encontrava o marido, a trabalhar nas obras e a viver num barraco da Cova da Moura. Ela arranjou emprego nas limpezas. Johnson ficava entregue aos irmãos mais velhos, todo o dia. Aos sete anos, entrou na escola.
“Havia crianças pretas, brancas e ciganas. Senti pela primeira vez o estigma da cor, não pelos miúdos, mas pelos pais. Comecei a juntar-me aos excluídos. Só queria espalhar o terror pela Buraca afora. Antes, até desejava ir para a escola. Mas quando vi o que era…”
Aos nove anos, fugiu de casa e foi viver para o Rossio, dormindo em carros abandonados, com outras crianças fugidas ou abandonadas. Quando as saudades batiam, visitava a mãe, mantendo-se sempre longe do olhar dela. Ela só sabia que estava vivo. Não sabia se passava fome ou frio.
“Eu queria liberdade e encontrei-a. A rua tirou-me o racismo. Tinham-me dito para não confiar no cigano, mas eu dormia encostado ao cigano para nos aquecermos um ao outro. Fiz amigos que se tornaram irmãos. Muitos foram na droga. Outros presos. Faço voluntariado na cadeia e vejo-os.”
Nos primeiros tempos de rua, Johnson cheirava cola e fumava haxixe. Aos 13 anos, começou a andar com os mais velhos, que lhe deram heroína e coca. Logo passou aos roubos para alimentar o vício, usado pelos outros – como era o mais pequeno, ia primeiro; se fosse apanhado, a justiça seria mais branda. Ao fim de algum tempo, já treinado na arte, largou os mentores. “Formei um bando e aterrorizava por aí. Assaltava lojas de roupa, cafés, carrinhas de tabaco, puxava carteiras. A nossa vida era isso. Para comer, íamos às pastelarias e, com as mãos sujas de óleo, tocávamos na comida dos outros miúdos, para eles terem nojo e não quererem mais. Às vezes, ia dormir a casa, mas pouco: quando lá estava, a polícia vinha procurar-me por causa de tantas queixas e os meus pais batiam-me. Eles tinham princípios. Punha dinheiro na carteira da minha mãe e ela devolvia-mo. E o meu pai costumava avisar-me, para quando eu viesse a ser pai também: ‘Filho não é ovelha. Não basta pôr a pastar.'”
‘Eu vou, mas tu faz-te à vida’
Ainda antes de fazer 17 anos, Johnson foi preso durante seis meses por arrombamento, ficou com pena suspensa durante dois anos e voltou para a rua. Passou sete curtos meses em liberdade. Uma nova condenação, aos 18 anos, valeu-lhe um mínimo de seis anos e meio e um máximo de 14… Revoltou-se: era castigo digno de violadores e assassinos, não de um simples ladrão. A raiva de quem se sentia injustiçado não ajudaria a que o tempo passasse mais depressa. “Continuei a consumir droga na cadeia. Metia-me em zaragatas e transferiam-me. Passei por Caxias, Linhó, Vale de Judeus. Em Coimbra, cheguei a estar seis meses fechado numa cela, sozinho, 23 horas por dia. Entretanto, o meu pai adoeceu. Quando me deixaram ir visitá-lo ao Hospital Amadora-Sintra, já não falava. Mas viu-me e chorou. Não me punha a vista em cima há anos. Parecia-me dizer: ‘Eu vou, mas tu faz-te à vida’. Morreu dois meses depois.”
Não voltou a vê-lo, nem vivo nem morto – não teve autorização para ir ao funeral. Finalmente, com dez anos de pena cumprida, voltou a ver-se livre daquelas paredes. Mas não da droga. Entrara viciado, saía viciado.
Ainda ingressou numa comunidade de desintoxicação, mas largou o programa para ficar junto da mãe, que adoecera. Dois anos depois, a mãe morreu e Johnson voltou ao mesmo de sempre. O vício sobreviveu à morte dos pais. Ironicamente, trabalhava nessa altura na associação Moinho da Juventude, na Cova da Moura, onde tentava manter os jovens afastados da droga. Até que, um dia, dois deles o apanharam a comprar heroína.
“Vieram ter comigo e disseram-me: ‘Não é isto que nos ensinas.’ Foi uma chapada. Inscrevi-me num programa de desintoxicação em Almada. Estive lá dois anos.” Regressou limpo, com outra legitimidade. Continuou a tirar gente das ruas, tornou-se monitor de ex-reclusos. Arranjou emprego como motorista. Casou-se. Assentou, mas não se contentaria com isso. Dois miúdos resgataram-no. Passaria o resto da vida a resgatar miúdos. A pagar a dívida.
“Pensei em construir o meu sonho com uma metodologia própria: usando o meu passado. A minha história serve de exemplo.
Dá-lhe força. Delinquente não é bandido.
É alguém a quem falta uma ligação, e eu tento ligá-los à família é à escola.” A associação Academia do Johnson nasceu no início deste ano. Todos os finais de tarde, durante a semana, meia centena de crianças e jovens, dos sete aos 19 anos, fazem estudo acompanhado e participam em workshops de escrita criativa. À chegada, têm à sua espera uma sandes de manteiga, outra de marmelada e um sumo (doados por particulares e empresas). “Tem de ser. Muitos chegam com fome.” Mas nada entusiasma mais Johnson do que a vertente desportiva da associação.
“Na cadeia, sentia-me livre quando jogava futebol. E era livre, porque tinha regras.
Transformava-me noutra pessoa. Pedia desculpa se fazia uma falta, saía do campo se percebia que tinha magoado alguém. E pensei: se resulta comigo, pode resultar com outros.” Parte do trabalho é ir às escolas fazer captações entre os mais problemáticos. Hoje, 21 rapazes são treinados por ele. “Tenho miúdos que eram uns pintas e agora os professores perguntam-me o que lhes fiz. Eu explico: não vai às aulas? Convoco-o para um jogo e sento-o no banco. Ensino-lhe a importância da humildade.”
A associação é uma grande parte da sua vida, mas não a vida toda. Johnson tem três filhos pequenos – de 5 anos, 3 anos e um mês – e um enteado, de 14 anos. “Tento passar muito tempo com eles. Sou sempre eu que os vou buscar à escola. Muitas vezes, cruzome à porta com rapazes com quem trabalhei quando tinham 13 anos – hoje, também eles estão ali para irem buscar os seus filhos.”