A tua rua à noite é o farwest!” Quando diz o nome do sítio onde morava, Marco De Camillis, 46 anos há 11 a viver em Portugal, já espera reações como aquela. A via Donna Olimpia, perto do centro de Roma, é conhecida por desacatos, roubos e tráfico de droga. “Costumo dizer que a dança me safou”, afirma Marco, no seu português musicado de italiano.
Com a adolescência fresca na memória, o coreógrafo explica que encontrou o antídoto contra o perigo dos vícios que, muitas vezes, arrastam os mais frágeis, quando percebeu que existiam outras opções para lá dos prédios altos. Aos 14 anos, descobriu a dança “por engano”. Em plenos anos 1980, ficou apanhado pelos filmes A Febre de Sábado à Noite e Fama. “Queria aprender a dançar para impressionar as miúdas na discoteca”, confessa com um sorriso teen, que contraria a fama de mau feitio que o persegue. Nessa altura, Marco estava longe de imaginar que faria coreografias para a TV que o haviam de tornar célebre em Itália, Espanha e Portugal. Por cá, participou em programas como Chuva de Estrelas, na SIC, Operação Triunfo e Dança Comigo, ambos na RTP.
Inspirado na sua própria adolescência, Marco resolveu levar a alternativa que o “salvou” a dez bairros sociais da Grande Lisboa, através do projeto de dança Da Rua Para o Palco. Durante quatro meses, fez workshops de dança em cada bairro e avaliou mais de 350 bailarinos não profissionais para escolher os 68 finalistas que vão participar no espetáculo que estreia em julho (ver caixa). Maria Temporal, 30 anos, do Bairro das Barrocas, em Almada, apresenta-se como a bailarina mais velha do grupo. É professora de dança e diz que olha para Marco como uma referência.
“Se ele veio do mesmo meio que eu e conseguiu, também posso lá chegar.” No outro extremo da faixa etária está Tamara Tavares, 12 anos, a mais nova da companhia. Vive na Apelação, Loures, e acalenta o sonho de ser bailarina. Apesar da timidez, revela que já aprendeu uma lição importante: “Percebi que devemos batalhar por aquilo que queremos.”
ARTE MILITANTE
Os ensaios começam a 11 de junho e o grupo terá, sensivelmente, um mês para pôr as coreografias na ponta dos pés. Marco enumera as dificuldades: “Temos muito pouco tempo, são bailarinos sem experiência nenhuma e nunca dançaram em conjunto.” Mas a iniciativa não se esgota no espetáculo ao vivo. “Quero que estejam prontos quando eu precisar deles para um projeto profissional”, afirma, entusiasmado.
A sala está cheia. Ouve-se um leve burburinho de fundo e alguns risos nervosos.A disciplina já passou por aqui, fruto dos primeiros encontros com De Camillis. É a primeira vez que o grupo dos escolhidos se reúne na sala de ensaios improvisada no Mercado 31 de Janeiro, em Lisboa. A voz forte que se ouve é a do italiano. Percorre a sala com o olhar e puxa pelo braço os bailarinos escolhidos para cada coreografi a do espetáculo. Repete as datas e horas dos ensaios de cada grupo. Todos apontam freneticamente a informação num papel.
Antes de dispensar o coletivo, Marco faz mais um discurso sobre a importância da pontualidade. “Se começamos às 18 e 30, façam por estar cá às 18 e 10.” Samuel Lacrosse, 25 anos, do Bairro Cor de Rosa, no Monte da Caparica, espera que a iniciativa promova a união contra o racismo. “Queremos mostrar que conseguimos fazer algo de bonito.” Não nega que o preconceito contra os bairros sociais tem fundamento na realidade, mas “há pessoas más e boas, é preciso saber diferenciá-las”. Se pudesse, mudava mentalidades, ao jeito do slogan “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Marco continua a visitar a família que vive em Donna Olimpia. Ainda hoje encontra as mesmas pessoas que já na sua adolescência passavam os dias no café. Contam-lhe as novidades de ex-vizinhos, muitas delas tristes. Agora, em Lisboa, quer mostrar que “o bairro é bom para chegar, mas, durante o dia, é preciso ver o mundo”.
‘Show’ A vibração do bairro
Incerteza, revolta e esperança são emoções que a equipa de 68 bailarinos não profi ssionais selecionados por Marco De Camillis vai transmitir ao público. O espetáculo de dança, com 45 minutos de duração, estreia-se a 19 de julho, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. O tema do show de dança é inspirado nas vivências do grupo e do italiano, que também cresceu num bairro social. Todas as canções coreografadas são portuguesas, e uma delas é o tema Tu És Mais Forte, de Boss AC. A apresentação ao público será o culminar do projeto Da Rua para o Palco que, entre workshops e audições, percorreu mais de mil quilómetros.

João Henriques