Olhei em volta, incrédula, tentando perscrutar o que se passaria de anormal. Como eu, outras pessoas levavam na mão envelopes de todos os tamanhos, encomendas de porte diferente mas a maioria não levava nada que se visse ou que me permitisse identificar o que as trazia ali, numa sexta-feira, final do dia, fim do mês.
Bem sei que os Correios já não são como no meu tempo. O tempo dos pen friends em que lá íamos comprar selos, envelopes, enviar cartas e pouco mais. Agora, as duas mãos não chegam para contar a oferta de serviços. Uma panóplia incontável de serviços e de produtos. Ou quase. Se nos abstraíssemos, poderíamos, aqui e ali, estar numa grande livraria.
As pessoas, algumas, consultavam os livros e saltitavam de página em página, enquanto o quadro eletrónico nos dava conta do avanço lentíssimo dos números. Setecentos e tal. Nem à meia-noite saio daqui, pensei eu, ainda intrigada com a multidão à minha volta. Às vinte e uma em ponto, a porta fechou-se. E as pessoas, do lado de fora, insistiam. Batiam nos vidros. Juntavam as mãos como que em prece. E, ao aceno negativo do funcionário, faziam gestos do diabo. Ah, se não fosse a urgência da minha carta! E lá continuei a minha observação participante.
Abordei o funcionário que se encontrava à porta e perguntei porque estava ali tanta gente. Então, diz-me ele, deixando perceber a sua quase indignação pela minha ignorância, é dia de RSI (Rendimento Social de Inserção). A isso juntou-se o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) mais o expediente normal. Dá nisto. Mas é sempre assim. Sendo que, ultimamente, piorou muito.
De repente, um dos funcionários, ao balcão, começou a debitar números, substituindo-se à máquina, e instalou-se o burburinho, porque nem todos o ouviam. Era impossível fazer-se ouvir nos dois patamares do edifício, por boa que fosse a projeção da sua voz. Uns exaltados, de senha no ar; outros mais contidos, a rabujar para o lado. Ouvia-se de tudo. Desabafos de toda a espécie, com menos ou mais animosidade. Contra as máquinas, contra os homens, contra o País, contra o mundo.
“Estou aqui há três horas para receber a miséria de um subsídio que não dá nem para comer! E, então, eu que vou ficar sem nada, nem subsídio, nem trabalho? E eu, que tenho quatro filhos no desemprego e voltaram todos para casa? E eu, que tenho dois toxicodependentes a cargo? E a mim, que não me chega, nem ‘prós’ medicamentos da diabetes? E eu, que tenho os meus pais a cargo, doentes, e o RSI não dá para pôr ninguém a tomar conta deles e, um dia destes, a minha patroa manda-me embora de tanto que falto? E esta senhora, tão bem vestida e que também não tem emprego, pois não? E a minha mais nova que vai emigrar, ‘prá’ semana, mais o namorado?”Enquanto esperavam, as pessoas juntavam-se em pequenos grupos, a falarem das mazelas do corpo e da alma. Da vida de cada um. Três ouviam, atentamente, um outro sobre a notícia da SIC de como baixar o IMI. Que fossem às Finanças, perguntar, como ele já tinha feito.
O funcionário que controlava a porta, continuava a tarefa de escoar o maior número de pessoas, na contagem verbal, que chamou a si. Andava patamar a cima, patamar a baixo, sereno e seguro, compreensivo e simpático. Mais rápido do que a máquina, a conferir senhas e a levar as pessoas ao balcão disponível.
Àquela hora, a única forma de esperar em silêncio, era olhar para os sapatos. Ou para o teto. Fixamente. De outro modo, o mais leve olhar para o lado, o menor indício de cumplicidade na fadiga, desencadeava conversa.
“E o desemprego sempre a subir. Estou tão preocupado com o desemprego! A minha mulher já está com o subsídio, temos dois filhos. Se amanhã me toca a mim, diga-me, que futuro lhes posso dar? Mato-me? Mas que país é este, diga-me. Um país de filas para os subsídios? No centro de emprego, diz a minha esposa, a fila é igual e cada vez mais comprida. E ela é das que gostavam do que faziam, punha mesmo brio naquilo. E mandaram-na embora!”
Queria dizer-lhe qualquer coisa, mas não fui capaz de dizer nada de jeito. Os números que nos chegam, todos os dias, planos, nas páginas dos jornais, ganham dimensão realmente humana ao virar da esquina. Já não é só o familiar, o amigo. O amigo do amigo. Os desempregados proliferam, anónimos, à nossa frente. Nos CTT. Em qualquer lado onde se entre.
Por muito que as teorias, as análises swot desta vida – e até o primeiro-ministro – nos recomendem que transformemos as fraquezas em oportunidades – cautela! – não é instantâneo, nem para os otimistas pró-ativos. Como fazê-lo quando se trata do emprego que perdemos, de um dia para outro?
E até gostávamos do que fazíamos e éramos bons a fazê-lo. É como perder um amor. E, depois, porque a verdade dói, dizem-nos: é uma oportunidade para seres feliz. Caramba! Nascer é uma oportunidade para ser feliz! E, nos intervalos, o que se faz com a angústia, com o sentimento de perda, de inutilidade, de injustiça e por aí fora? E com as contas para pagar e os filhos para alimentar, como se faz?
Transformar fraquezas em oportunidades é um bom conselho, sim. Não há dúvida. Mas para nos ser dado por marketeers, gestores, amigos, desconhecidos, na fila dos CTT. Até gurus. Nunca por um primeiro-ministro.
Nunca pelo primeiro-ministro de um país com uma taxa de desemprego nos 14,9 por cento.