Um vídeo de uma mulher brasileira a ser alvo de um ato xenófobo no aeroporto Francisco Sá Carneiro viralizou nas redes sociais e na imprensa brasileira, suscitando a reação do Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil. A vítima, que também tem cidadania italiana, relatou que estava no local para apanhar o avião de regresso a Barcelona, onde vive atualmente, e um desentendimento insignificante, a propósito da queda de uma mala, suscitou os insultos de uma cidadã portuguesa. “Vá para a sua terra, sua porca! Eu sou portuguesa de raça! Estão a invadir Portugal, essa raça f.d.p.!”, ouve-se na gravação.
No relato concedido ao jornal brasileiro Gazeta Bragantina, em que não se quis identificar, a mulher de 35 anos, há mais de sete a viver na Europa, diz: “Minha única reação foi filmar. Fiquei sem acreditar no que estava acontecendo, atordoada, sem reação”. Envergonhada e incomodada, diz que pretende “tomar providências para que isso não volte a acontecer”. “Não apenas comigo, mas com todos os brasileiros que vivem e trabalham aqui”, acrescenta. Como tinha de apanhar o voo, não teve tempo de formalizar a queixa na ocasião.
O caso chegou ao ministro brasileiro Flávio Dino que, durante uma cerimónia de lançamento de um programa de bolsas, num vídeo divulgado pela imprensa brasileira, comentou: “Bom, se for isso, nós temos direito de reciprocidade, não é? Porque em 1500 eles invadiram o Brasil. E concordo, até, que eles repatriem todos os imigrantes que lá estão, devolvendo junto o ouro de Ouro Preto, e aí fica tudo certo, a gente fica quite”.
O deputado brasileiro Túlio Gadelha, relator da Comissão sobre Migrações Internacionais e Refugiados da Câmara dos Deputados, já pediu ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil que questione a embaixada portuguesa sobre este episódio, que descreveu como “um crime, um desrespeito à nação, à cultura e aos brasileiros”, em declarações dadas ao portal Metrópoles. “Não é a primeira vez que acontece, mas todas [estas situações] são revoltantes. Esses casos recorrentes de xenofobia precisam acabar. Vamos acompanhar de perto a apuração desse facto lamentável”, disse.
Recorde-se que esta é, de longe, a maior comunidade de imigrantes no nosso País – estima-se que vivam cá mais de 500 mil brasileiros, contando com os que têm dupla nacionalidade ou aguardam autorização de residência. De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mais de um terço dos imigrantes a viver em Portugal vem do Brasil – os números oficiais mostram que são 400.759, tendo tido um aumento significativo, de 67%, relativamente a 2022 (quando eram 239.744). Ainda assim, estes números indicam uma baixa importância relativa de imigrantes residentes (cerca de um milhão) no total da população do País. E, sendo um dos países mais envelhecidos do mundo, o saldo migratório compensou o valor negativo do saldo natural que se tem vindo a agravar.
Um Eurobarómetro Especial acerca da integração dos imigrantes na União Europeia identifica que os europeus tendem a sobrestimar a proporção de imigrantes no total de residentes, até pelo menos o dobro da sua real dimensão. Portugal surge destacado como um dos países onde se verifica uma maior distância entre a perceção do volume da imigração na sociedade e a efetiva realidade. Mas também há uma maior percentagem de respondentes a considerar a imigração mais como uma oportunidade que como um problema.
Aumento de queixas
Os números mostram que o episódio do aeroporto não é um fenómeno isolado. A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) apurou em 2020 e 2021, respetivamente, 655 (+50,3% face ao ano anterior) e 408 (-37,7% face ao ano anterior) queixas de discriminação de base racial e étnica. Entre as situações reportadas, a expressão que mais se destaca enquanto fundamento na origem da discriminação é a “nacionalidade Brasileira”. Indica-se, no entanto, que “este aumento não reflete necessariamente um aumento da discriminação em Portugal, mas associa-se à mais recente revisão do regime jurídico [Regime Jurídico de Prevenção, Proibição e combate à Discriminação, em 2017], podendo ainda traduzir uma maior consciencialização para a problemática da discriminação e um maior reconhecimento dos mecanismos e entidades de proteção”.
Em declarações à Lusa, em outubro, no Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher, a ministra das Mulheres do Brasil, afirmou que o Governo brasileiro está atuante, atento e a “dar o suporte à comunidade brasileira em Portugal” vítima de intolerância e violência, principalmente às mulheres. As declarações de Cida Gonçalves surgiram após uma reportagem do portal brasileiro UOL, no início desse mês, ter denunciado o aumento de casos de xenofobia contra brasileiros em Portugal – 505% entre 2017 e 2021, segundo a CICCR –, com vários testemunhos de residentes no país.
Na página do Instagram do projeto Brasileiras não se calam, com 57 mil seguidores reúnem-se centenas de testemunhos de mulheres brasileiras imigrantes que passaram por situações de xenofobia. “Os portugueses não sentiam confiança em entregar os papéis nas minhas mãos”, relata alguém, como justificação dada pela entidade empregadora para a demissão. “Parecia uma bruxa, todas as brasileiras são putas”, foi outra das abordagens ouvidas nos transportes públicos. “É brasileira, mas é limpinha”, assim foi descrita uma trabalhadora na área das limpezas. “Não quero levar pulgas para dentro de casa”, disseram a um entregador, quando perguntou se queria ajuda a carregar as encomendas.
O relatório Experiências de Discriminação na Imigração em Portugal, elaborado pelo projeto #MigraMyths – Desmistificando a imigração, e lançado em dezembro de 2020, refere que “as discriminações associadas ao género e à nacionalidade foram mais evidenciadas no caso das mulheres brasileiras, sendo o estereótipo um fator condicionante e que aumenta as discriminações vivenciadas no dia a dia das mulheres inquiridas”. No inquérito feito à comunidade imigrante residente em Portugal, com 118 respostas válidas, 85,6% dos inquiridos afirmaram já ter sofrido algum tipo de discriminação. Entre os estereótipos mais representativos, “23,9% referiram já ter vivenciado algum tipo de discriminação ou ouvido algum tipo de comentário relacionado à prostituição da brasileira, 21,6% relacionados com a criminalidade, 14,2% sobre roubar emprego e 14,4 roubar marido”.
Perceções da população
Mas, afinal, como é percecionada a imigração em Portugal? Os indicadores de integração de imigrantes, no relatório estatístico anual de 2022 feito pelo Observatório das Migrações (OM), mostram que Portugal surge entre (os poucos) países europeus com a menor percentagem de inquiridos a identificar a imigração como a principal questão que o país enfrenta (variando entre 1% e 4% de inquiridos, entre 2011 e 2019, e descendo para 2% no primeiro semestre de 2020, 0% no segundo semestre de 2020 e 2% no primeiro e segundo semestre de 2021). E apontam o Inquérito Social Europeu (ESS), que tem estudado a perceção de se O país tornou-se um lugar pior ou melhor para se viver com a vinda de pessoas de outros países?, em que Portugal é um dos países europeus que tendem a associar-se às visões mais favoráveis da imigração e a valorizar mais o desenvolvimento de políticas de integração para imigrantes.
No estudo dos valores europeus (European Values Study), de 2017/2019, inquiridos sobre como percecionam a imigração como fator de desenvolvimento do país, Portugal surge no grupo de países que considera a imigração como um fator ‘bom’ ou ‘muito bom’ para o desenvolvimento do país, com perto de metade dos inquiridos com respostas favoráveis (48%, versus apenas 14% a considerar a imigração como ‘má’ ou ‘muito má’). O relatório do OM, contudo, ressalva que “as perceções e atitudes perante a imigração, devem ser confrontadas com a realidade efetiva dos números da imigração”.
Estamos também entre os países europeus com as perceções mais favoráveis quanto ao contributo dos imigrantes para a economia portuguesa, reconhecendo-se também a carência do país em acolher imigrantes para responder às necessidades do mercado de trabalho. Um reconhecimento justo, já que “os indicadores do EUROSTAT relativamente ao mercado de trabalho mostram, para a média da UE27, que a taxa de atividade dos cidadãos estrangeiros é superior à taxa dos nacionais”. Efetivamente, em Portugal, “os cidadãos nacionais apresentam 57,6% de taxa de atividade, assumindo os cidadãos estrangeiros da EU 80,4% (+23 pontos percentuais que os portugueses) e os cidadãos estrangeiros extracomunitários 73,7% (+16pp que os portugueses)”.
No relatório sobre a integração de imigrantes, Portugal aparece ainda no grupo restrito de países europeu em que a maioria da população é da opinião de que os imigrantes não são uma sobrecarga para a segurança social. E não tem razão para pensar de outra forma.
De facto, a relação entre as contribuições dos estrangeiros e as suas contrapartidas do sistema de Segurança Social português – as prestações sociais de que beneficiam –, continua a traduzir um saldo financeiro bastante positivo com os estrangeiros residentes no país, de +802,3 milhões de euros em 2020, depois de uma descida face ao apurado em 2019 (em +884,4 milhões de euros) atendendo aos efeitos do contexto pandémico que fez aumentar as despesas com prestações sociais, para alcançar em 2021 o valor mais elevado de sempre de +968 milhões de euros. Verifica-se, pois, que a relação entre as contribuições dos estrangeiros para a segurança social (+1.075,2 milhões em 2020 e +1.293,2 em 2021) e os gastos do sistema com prestações sociais de que os contribuintes estrangeiros beneficiam (em -273 milhões em 2020 e -325,2 milhões em 2021) é bastante positiva e favorável em Portugal.
Em 2021, os estrangeiros continuam a mostrar maior capacidade contributiva que os nacionais para o sistema de segurança social: 68 contribuintes por cada 100 residentes em 2021, em comparação com 46 contribuintes por cada 100 residentes. Por outro lado, os estrangeiros, por comparação ao total de residentes em Portugal, continuam a ter menos beneficiários de prestações sociais por total de contribuintes: 50 por cada 100 contribuintes, quando para o total dos residentes a relação é de 77 beneficiários por cada 100 contribuintes. Neste ano, os estrangeiros passam a representar 10,1% do total de contribuintes do sistema de segurança social de Portugal. Conclui-se, assim, que a população estrangeira residente em Portugal continua a ter um papel importante para contrabalançar as contas do sistema de Segurança Social, contribuindo para um relativo alívio do sistema e para a sua sustentabilidade. Dados que ajudam a combater estereótipos.
Linha de Apoio ao Migrante
Rede fixa: 808 257 257 (custo de chamada local)
Rede móvel: 218 106 191