O nome de Sarah Everard está na memória de todos os que acompanharam o desenrolar do caso. O impacto foi de tal ordem que foi aberto uma investigação à Polícia Metropolitana de Londres (Met). Depois de um ano de investigações, as conclusões são devastadoras.
A 3 de março de 2021, quando Everard caminhava para sua casa, em Brixton, no sul de Londres, pelas 21h30, foi interpelada por Wayne Couzens, que lhe terá dito que estava a decorrer uma operação que pretendia garantir o cumprimento das regras definidas no âmbito da pandemia. Alegando que a jovem não estaria a seguir as ordens, Couzens terá algemado Everard, colocando-a de seguida num carro alugado e percorrendo quase 130 quilómetros até Tilmanstone, no condado de Kent, local onde a terá matado, já de madrugada. Nessa noite, o homem não estava em funções. De acordo com a sentença, dada a 30 de agosto desse ano, Everard, que era gestora de marketing, foi violada e estrangulada com o próprio cinto da farda de Couzens, que queimou depois o corpo, pô-lo dentro de um saco e largou-o em Hoad’s Wood. A violação foi confirmada por ter sido encontrado sémen no cadáver.
A autora da investigação, Louise Casey, garante que a maior autoridade do Reino Unido precisa de uma “revisão completa” e pode precisar de ser reformulada. No relatório de 363 páginas, encontrou evidências de intimidação generalizada, atitudes racistas e “homofobia profunda” na polícia.

Especificamente sobre o caso de Wayne Couzens, e mencionando também o autor de várias violações em série, David Carrick, o relatório afirma que existem certas áreas em que a prática destes crimes é apoiada. O Comando de Proteção Parlamentar e Diplomática (PaDP) – a unidade a que os dois pertenciam – é “um canto escuro do Met onde maus comportamentos podem florescer facilmente”.
As funcionárias que fazem parte da equipa de Couzens e Carrick mostraram-se incomodadas depois de ouvir os colegas do PaDP expressarem a sua opinião sobre uma mulher que alegou ter sido violada porque “estava a tentar ganhar dinheiro”. Além disso, estes tinham a opinião de que os polícias detidos por violação deveriam ser libertados sob fiança e autorizados a voltar ao trabalho, afirma o relatório.
No documento lê-se também que um polícia negro que trabalhava como guarda desarmado era chamado de “macaco do portão” pelos colegas e que, em relação à Met no geral, a situação era semelhante. Num outro episódio, uma funcionária negra afirmou querer despedir-se por estar farta de ouvir comentários racistas de um superior.
Campanha anti-gay
Além de ser apelidada de racista, a Met é, também, considerada uma unidade homofóbica no relatório. Um funcionário, homossexual assumido, foi alvo de uma “campanha sustentada de homofobia dentro da Met”. Numa das vezes, viu mensagens do WhatsApp trocadas por colegas que tencionavam atacá-lo enquanto estava de folga. Além disso, foi vítima de chamadas maliciosas para a linha de denúncia anónima interna da polícia.
“Isto vai soar ridículo. Estou com medo da polícia”, referiu o homem, segundo o relatório. “Não confio na minha própria organização. Tenho de ir por vários caminhos para evitar passar por polícias quando não estou no trabalho”, acrescentou.
Abusos por parte de superiores
Os casos de abuso não acontecem só fora da esfera policial. No relatório, surge o relato de uma mulher polícia que foi “vítima de abuso doméstico e sexual”, supostamente pelas mãos de um colega da Met. A mulher – identificada como “agente A” – disse que era “um segredo aberto na sua equipa, mas poucas pessoas queriam falar”.
A vítima afirmou ainda que um outro colega – apelidado de X – também a violou em várias ocasiões. Descrevendo “o pior e último incidente”, disse: “Ele deu-me uma chapada no rosto, perdi a consciência, ele violou-me.” Apesar dos apelos, os dois continuaram a trabalhar juntos. O caso passou por seis investigadores diferentes do sistema de má conduta da Met em apenas um ano.
Sexismo e gastos desnecessários
Na Met, de acordo com o documento, vive-se “uma cultura profundamente perturbadora e tóxica” no comando especializado em armas de fogo, conhecido como MO19. São vários os “gastos excessivos em equipamentos e kits desnecessários e sofisticados, como machados tomahawk e óculos de visão noturna inutilizáveis, que se mostraram inúteis no ambiente iluminado das ruas de Londres”, constatou-se. Além disso, existem relatos de superiores que encomendaram iPads e casacos personalizados que foram classificados como despesas da organização, lê-se na revisão.
Enquanto investigava, Casey foi informada de que existia uma “série de questões de má conduta sexual no MO19, surgindo relatos de que um grupo de homens realizava “competições sobre com que regularidade conseguem fazer as suas alunas chorarem”.
Para que nunca fossem descobertos, segundo o relatório, os polícias tinham um código. Quando um grupo de WhatsApp, Signal ou Telegram ficasse “comprometido” usariam o código “deslizamento de terra”. Nesse momento, os elementos deixariam imediatamente o grupo, excluíam o conteúdo e criavam um novo grupo com um novo nome.

Vítima de agressão rotulada de “funcionária que causa problemas”
Uma polícia, identificada como L, afirmou ter sido agredida sexualmente no local de trabalho várias vezes por um superior. O abusador costumava “tocar-lhe de forma inadequada, forçá-la a sentar-se no seu colo e tocar-lhe nas partes íntimas do seu corpo enquanto ela se trocava nos vestiários comunitários”.
Segundo o relatório, a mulher denunciou o homem, mas “nada foi feito”. Enquanto pensava se devia prosseguir com um processo criminal, a vítima afirmou que se sentiu como se tivesse sido persuadida a manter este segredo “em casa”.
Meses depois, por acaso, descobriu que o caso tinha sido encerrado. Um dia, descreve o relatório, passou por um colega no corredor que lhe disse “desculpa como isto aconteceu, mas é assim que funciona”. L contestou a decisão, mas era “a sua palavra contra a dele”, afirmando que o suposto agressor teve uma “carreira longa e imaculada na Met”. Depois do caso ser encerrado, L passou a ser rotulada de mentirosa e “funcionária que causa problemas”.
Também as praxes de iniciação, um ritual em muitas academias, ultrapassaram limites na Met. Segundo o relatório, estas práticas envolviam “a humilhação da equipa júnior”, incluindo desafios como ingerir uma quantidade imensa de comida e urinar em cima de pessoas. As mulheres eram ainda forçadas a comer cheesecakes inteiros até vomitarem.
“Aqueles que se recusaram a participar foram condenados ao ostracismo e considerados como os que ‘não fazem parte da equipa'”, afirmou um funcionário.
Relações próximas com vítimas de abuso
Um polícia da Met Police ficou encarregado de um caso de violência doméstica, o que fez com que tivesse de visitar a casa da mulher. A sua constante presença na casa “cultivou um relacionamento inapropriado com ela”, lê-se no relatório. Ele “desencorajou-a a falar com amigos, familiares e quaisquer outros polícias” e “ela passou a vê-lo como um amigo e a única pessoa em quem podia confiar”. “Ela não sabia que estava a acontecer”, acrescentou o relatório.
A mulher soube mais tarde que o funcionário não tinha registado nenhuma das evidências que ela deu sobre o caso, o que significa que o agressor não enfrentaria qualquer tipo de punição. Segundo o documento, o polícia cortou a ligação com a vítima quando foi colocado sob investigação relacionado a um relacionamento com outra vítima, que também conheceu “devido à sua extrema vulnerabilidade”, escreveu Casey. Embora já não trabalhe na Met, o prazo de impedido de trabalhar está perto do fim, podendo estar novamente uma posição em que possa abusar de outras mulheres, afirma o relatório.
Já as taxas de detenção sobre violações são muito baixas, segundo os testemunhos do relatório. “Se olharmos para o nosso desempenho à volta da violação e ofensas sexuais graves, a taxa de detenção é tão baixa que se pode dizer que é legal em Londres”, foi denunciado. “É uma espécie de reflexo de como tratamos e vemos as nossas colegas mulheres. Começa-se a culpar a vítima, olhando para uma situação e não acreditando [nelas].”
O relatório encontrou uma “cultura endémica de vítimas descrentes” de violações e outros crimes sexuais e “um ambiente de trabalho tóxico” para os polícias que investigam esses casos. Segundo a investigação, muitas vítimas descreveram se sentirem “iludidas” por polícias que “invalidaram os seus sentimentos e que afirmaram que o que lhes tinha acontecido não foi um crime”.
Arcas e frigoríficos sobrelotados e partidos
O relatório denuncia ainda que as autoridades que investigam os casos de crimes sexuais têm apenas ao seu dispor “arcas e frigoríficos sobrelotados, destruídos ou partidos que contêm evidências, incluindo os kits utilizados”, muitos deles “fechados com fita adesiva”, lê-se.
Um polícia, identificado como G, disse que as arcas da sua unidade, que continham amostras de sangue e urina e roupas íntimas de vítimas de agressão sexual, estavam tão cheias que seriam necessários três autoridades para as fechar. “Todas as arcas usadas para kits de violação estavam em mau estado, embaladas e a destruir as evidências”.
No ano passado, segundo a testemunha, um frigorífico chegou mesmo a partir-se durante uma onda de calor e “todas as evidências tiveram de ser destruídas porque não podiam ser usadas”.