A violência obstétrica está na ordem do dia. O número de relatos de mulheres que afirmam terem sido vítimas multiplicou-se nos últimos tempos, e um movimento que começou online está a incentivar mais mulheres a partilharem as suas histórias. A Ordem dos Médicos (OM), por outro lado, nega a existência de violência obstétrica em Portugal – termo que remete para países onde não são respeitados os direitos humanos, e as mulheres grávidas não têm acesso a cuidados de saúde de qualidade. Então, que nome dar aos relatos destas mulheres, que afirmam terem-se sentido violentadas, abusadas e inseguras na hora do parto? Agora, elas querem sair à rua e reclamar por melhores condições para um dos atos mais naturais de todos: dar à luz.
Carla Santos é doula e ativista e recentemente embarcou no projeto “Violência Obstétrica Portugal”, que começou online, de forma espontânea. “Com a pandemia, a violência obstétrica aumentou muito. O facto de a Ordem dos Médicos ter dado aquela resposta deixou-nos a todas em polvorosa”, conta Carla, que fundou o movimento com três amigas. “Nós estávamos a falar umas com as outras e dissemos ‘alguém fazer alguma coisa’. Depois pensámos, porque é que não fazemos nós?”
A ‘resposta’ a que Carla se refere é o último parecer da Ordem dos Médicos sobre o tema, em que é dito que “o termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal”, e que “não se dá como provada nenhuma situação de violência obstétrica em Portugal”.
O movimento Violência Obstétrica Portugal já reuniu a colaboração de cerca de trinta pessoas e está a lutar pela mudança. As organizadoras do movimento querem recolher o máximo de testemunhos possível, tanto de mulheres que sofreram esta violência como de profissionais de saúde – muitos já circulam nas redes sociais com a hashtag #EuViVO – e fazê-los chegar à Ordem dos Médicos. Para o efeito, têm agendadas manifestações para o dia 6 de novembro, em frente à secções regionais da OM em Lisboa, Coimbra e Porto.
“Sentimos que havia muita inércia em relação a isto”, desabafa Carla, que explica ainda que é essencial que sejam as próprias mulheres que sofreram violência obstétrica a falar abertamente sobre o assunto. “Claro que nós temos que considerar que pessoas que viveram traumas, e que podem estar a sofrer de stress pós-traumático, raramente querem reviver a experiência. Muita gente não quer reviver, é demasiado doloroso e tem um grande impacto na saúde mental e física dessas pessoas”, continua.
Na página de Instagram do movimento, é possível ler alguns relatos enviados por mulheres que sofreram violência obstétrica. “A enfermeira dizia-me para fazer força e deixar de ser preguiçosa. Um médico veio ter comigo e disse que me ia ajudar, colocou os cotovelos na zona superior do abdómen e fez uma força incrível, até que eu com dores gritei em desespero para ele me largar, à qual ele muito chateado disse que eu estava a matar o meu filho e que ele me ia deixar ali sozinha”, por ler-se numa publicação.
“Perdi a conta ao número de toques que me foram feitos, nenhum sem informar sequer do que iam fazer. Uma das enfermeiras deixou-me na maca, praticamente nua e cheia de sangue. Quando me recordo, aquilo que posso dizer é que sinto que, naquelas horas, me tiraram toda e qualquer dignidade. senti-me humilhada, mal-tratada, desrespeitada, gozada, violentada. Foi um parto altamente intervencionado, sem real necessidade clínica, onde fomos infantilizados e tratados como seres inferiores. Nunca me foram explicados quaisquer procedimentos, vantagens ou riscos, nem foi pedida a minha autorização. Senti-me impotente e vulnerável, humilhada quer em termos físicos quer psicológicos. Só passados uns meses consegui processar o que nos aconteceu e verbalizar o que tinha acontecido”, conta uma outra.
Então, o que é a violência obstétrica?
Se nunca ouviu falar do termo violência obstétrica, é normal: a designação é relativamente recente, mas o problema já é antigo. Consubstancia-se na “violência contra as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto”, como pode ler-se no site da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP). “As formas mais correntes de violência obstétrica incluem abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação, desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas necessidades da mulher”.
Este tipo de violência pode tomar diversas formas, e nem sempre são óbvias e flagrantes. “Pode ser a prática de uma manobra ou de um gesto clínico sem o consentimento da pessoa. Até pode ser com a melhor das intenções, mas se a pessoa não consentiu, não autorizou ou não tomou conhecimento, isso é uma forma de violência, quer seja na prática obstétrica ou em qualquer outro ato médico”, explica o médico Nuno Hipólito Santos. “E depois há a violência física, de facto – há práticas e há gestos utilizados em ginecologia e obstetrícia que não têm base científica e são utilizadas sem nunca terem sido feitos qualquer estudos científicos. (…) Mas também pode ser violência psicológica, pode ser coação, pode ser um comentário do género “se não fizer isto o seu filho vai morrer”, pode ser um comentário de gordofobia dirigido a uma pessoa que sofre de obesidade”, continua.
Apesar de comum, a violência obstétrica só agora começou a ser reconhecida, pelo menos em Portugal. A Venezuela e a Argentina, por exemplo, já criminalizam esta prática desde os anos 2000, estando em discussão um projeto de lei na Colômbia com o mesmo efeito. Na Europa, países como a França, Itália e Espanha já iniciaram o debate para incluir a violência obstétrica na legislação. Em Portugal, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentou um projeto de lei que visa criminalizar a prática e reforçar a proteção das mulheres no contexto da gravidez e do parto.
A APDMGP, fundada em dezembro de 2014, tem-se debruçado desde então sobre esta temática. A Associação acredita que permitir às mulheres a possibilidade de falarem das suas experiências neste âmbito é fundamental, dedicando-se a partilhar informação fidedigna, tanto com a tradução da mais recente evidência científica relativamente à gravidez e ao parto, a promoção de formações tanto para as mulheres/pessoas grávidas/casais como para profissionais, ou a organização de conferências internacionais. Está ainda em vias de lançar um novo projeto, o Observatório da Violência Obstétrica, para sistematizar esta prevenção e dar (ainda) mais visibilidade a esta causa.
Uma das primeiras iniciativas da APDMGP foi lançar um questionário para aferir a dimensão do problema da violência obstétrica e ouvir os relatos em primeira pessoa, uma vez que “já tinham ouvido imensas histórias de parto negativas”, conta a doula Sara do Vale, que faz parte da Associação. “Mas a maior motivação foi o facto de não haver dados públicos e oficiais. Não havia e não há ainda muitos dados sobre as experiências das mulheres, nem sobre as percentagens de intervenções a que são sujeitas”, aponta.
A 2ª edição do inquérito “Experiências de Parto em Portugal” baseou-se no QACE (Questionnaire for Assessing the Childbirth Experience), a primeira ferramenta padronizada que permite uma avaliação multidimensional da experiência subjetiva do parto, validada e utilizada em vários países. O inquérito contou com a participação de 7555 mulheres que tiveram um parto nos hospitais portugueses entre 2015 e 2019. Cerca de 30% das mulheres que participaram no inquérito afirmaram ter sido vítimas de desrespeito, abuso ou discriminação.
A situação de abuso mais identificada no inquérito foi a prática de cuidados ou intervenções não consentidas, com 59,8% das inquiridas a identificarem este problema. Seguiu-se a relação deficiente com os prestadores de cuidados, o abuso verbal e depois o abuso físico. A prática de intervenções médicas não consentidas é precisamente uma das principais “bandeiras” do movimento.
“Para qualquer intervenção clínica, é necessário consentimento. É um direito humano inalienável e está consagrado na legislação portuguesa. Não estamos apenas a falar de gravidez e de parto”, esclarece Vânia Simões, advogada e membro da APDMGP. “É importante ter em atenção que as experiências de parto das mulheres ficarão com elas por toda a vida. E, quando falamos de trauma no parto, não é necessariamente o quanto o parto divergiu do seu “parto ideal”. É sobre quando a mulher sentiu que perdeu o controle da sua experiência e lhe começaram a fazer coisas que ela não sabia o que eram e não consentiu”, continua.
Carla recorda um desses casos, de uma grávida que acompanhou no Hospital de Cascais. “Ela foi agarrada à força pelos braços quando recusou o exame do toque. Uma médica que estava fora da sala ouviu a conversa, entrou e agarrou-lhe os braços enquanto a outra médica forçou o toque. Essas coisas são diárias, é normal, é corriqueiro e normalizou-se, e por isso é muito difícil de combater”.
No fim da gravidez, o exame do toque é normalmente realizado para verificar a dilatação e a espessura do colo do útero, descida e posição da cabeça do feto, ou rompimento da bolsa amniótica. É feito com a colocação de dois dedos do obstetra no canal vaginal – o que pode causar desconforto a algumas mulheres. A sua realização é discutida, com alguns alguns ginecologistas e obstetras a afirmarem que o exame não é necessário, existindo outras formas de verificar as alterações no colo do útero.
Há muitos dados que são ainda desconhecidos
A episiotomia, por exemplo (incisão feita no períneo para ampliar o canal de parto) – uma prática em desuso em muitos países do Mundo mas ainda prevalente em Portugal – quando feita rotineiramente ou sem o consentimento da mulher, pode consubstanciar uma prática de violência obstétrica. De acordo com o European Perinatal Health Report, de 2010, no âmbito do projeto Euro-Peristat, que recolheu dados de 20 países europeus, Portugal apresentava uma taxa de 73% de episiotomias em partos vaginais, ficando apenas atrás do Chipre, com 75%. Países como a Dinamarca e a Suécia tinham percentagens de 5 e 6%, respetivamente.
A evidência científica, bem como as recomendações da OMS, defendem que a episiotomia de rotina deve ser abandonada, devendo o seu uso ser baseado em decisões caso a caso – por exemplo, em casos de sofrimento fetal, em que o bebé está numa posição anormal e tem dificuldades em sair; partos instrumentais ou complicados, em que é necessário acelerar a saída do bebé para não o prejudicar; ou quando haja risco de lesão iminente de laceração perineal grave. Aliás, a prática começou a ser utilizada como um meio de evitar lacerações perineais que podem ocorrer naturalmente com o esforço do parto, e como forma de o parto ocorrer de forma mais rápida.
Hoje os números são um pouco mais baixos: de acordo com o Consórcio Português de Dados Obstétricos (CPDO), a taxa de episiotomias nos últimos 12 meses foi de 25% nos partos eutócicos (partos em que o bebé nasce de cabeça para baixo por via vaginal, sem recurso a instrumentos como a ventosa ou fórceps), mas de 62% nos partos instrumentados. Apesar da diminuição da frequência da prática, os valores ainda estão longe da meta proposta pela ONG Leapfrog Group de 12% e 5% de episiotomias, em 2012 e 2015, respetivamente.
Mas estes dados não são oficiais. O CPDO é um órgão do qual são membros apenas 13 serviços de ginecologia e obstetrícia do País. Os dados a nível nacional não existem, ou não são partilhados – uma preocupação já manifestada por Sara do Vale, que Nuno Hipólito Santos também revela. “A Direção Geral de Saúde nunca tornou públicos esses dados, nunca houve nenhum relatório no sentido de se saber, por exemplo, quantas cesarianas é que são feitas nos hospitais portugueses, quantos partos é que são feitos com episiotomia, ou com recurso à manobra de Kristeller – algo que continua a ser feito e que certamente não está registado”, explica o médico.
A manobra de Kristeller consiste em exercer uma pressão na barriga da grávida, acompanhando as contrações, para “ajudar” o bebé a nascer – embora não tenha qualquer base científica e possa inclusive causar lesões físicas graves à mulher grávida e ao bebé, e deixar sequelas psicológicas na mãe. A OMS recomenda que este procedimento não seja seguido, e é mesmo proibido em algumas partes do mundo. “Há números em Espanha, por exemplo, e noutros países com que se pode fazer algum paralelismo. Certamente os números em Portugal serão elevadíssimos”, continua o médico.
Sobre o assunto, a Ordem dos Médicos afirma que “a manobra de Kristeller não deve ser confundida com manobras de pressão desmedida sobre o fundo uterino, que constituem má prática e violência obstétrica, por vezes praticadas com projeção descontrolada do peso do corpo de alguém sobre o útero, na tentativa de fazer nascer o feto a todo o custo”. Essas manobras são altamente desaconselhadas por existir o risco de trauma materno-fetal grave, sendo que a OM recomenda a manobra apenas em casos excecionais e seguindo “protocolos escritos com a descrição, indicações e contra-indicações da manobra” que devem estar disponíveis nos serviços de saúde.
O inquérito da APDMGP dá conta de que entre as 7555 inquiridas, 2232 sofreram manobras de Kristeller. Quase metade foram executadas sem o consentimento da parturiente – apesar de a Ordem dos Médicos ter declarado, em julho deste ano, “não ter conhecimento de nenhuma queixa que lhe tenha chegado em que tenha sido dada como provada a prática da manobra de Kristeller, tal como é atualmente descrita, ou da realização de episiotomia de rotina, ou de qualquer outra intervenção desnecessária, por especialistas de Ginecologia e Obstetrícia”.
Muitos ativistas, dentro e fora da área da saúde, continuam a lutar por uma política de zero episiotomias – ou da sua redução aos mínimos possíveis. A Ordem dos Médicos, apesar de rejeitar a episiotomia de rotina, defende que deve ser realizada quando necessário. Mas alguns estudos já indicaram que não existem quaisquer evidências clínicas que apoiem a realização da episiotomia. O tema também já chegou à Assembleia da República: a Resolução n.º 181/2021 recomenda ao Governo que “diligencie pela eliminação de práticas de violência obstétrica, como a manobra de Kristeller e a episiotomia de rotina” – sendo que esta foi, inclusive, a primeira vez que o termo violência obstétrica figurou nos diplomas legais portugueses – e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) já recomendou que não deve ser feita rotineiramente.
O inquérito da APDMGP revela, no entanto, que dentro das inquiridas que tiveram um parto vaginal, 31,2% foram submetidas a episiotomias com o seu consentimento, e 29,7% sem o seu consentimento – o que perfaz um total de 60,9% de episiotomias realizadas. “Estas mulheres estão numa posição muito vulnerável”, diz a direção da APDMGP. “Elas colocam a vida do bebé acima da delas e acabam por aceitar qualquer coisa quando se joga a carta da sobrevivência do bebé. Muitas delas dizem ‘se tiverem de me cortar de cima a baixo cortem-me de cima a baixo, eu só quero que o bebé viva’. E nesta premissa faz-se muita coisa, é muito desumano”.
A OM defende no entanto, no seu parecer, que “é muito perigosa a ideia (…) de que é má prática a indução do trabalho de parto, a episiotomia, o parto instrumentado com ventosa ou fórceps, a analgesia epidural, a cesariana, entre outras intervenções, tais como a realização de manobras de manipulação abdominal (…), ainda que realizadas com a devida indicação e competência”, reforçando que os procedimentos descritos são boas práticas quando praticados sob indicação médica, e com o conhecimento e consentimento da mulher grávida.
É dito ainda que “uma outra ideia perigosa que perpassa no Projeto de Lei, apoiado pelas respostas ao inquérito promovido pela APDMGP, é a de que a gravidez, o parto e o puerpério são processos fisiológicos em que raramente se justificam intervenções médicas, quando na verdade representam um período muito perigoso para a mulher e o seu filho”.
Para Sara do Vale, os números conhecidos de episiotomias realizadas em Portugal são “vergonhosos”, embora reconheça que o problema não está num único procedimento. “Podemos ver a episiotomia como a consequência de um parto que desde o início já vem muito medicalizado, onde geralmente a mulher está deitada e anestesiada, o que compromete o momento da expulsão”, explica, acrescentando que esta, como outras, é uma prática que é aprendida no contexto de formação, apesar de desatualizada, e que é perpetuada por haver uma “grande resistência à mudança por parte das instituições”.
“Em Portugal o tratamento é muito frio, muito mecânico, muito patriarcal”
A relação que a mulher grávida estabelece com a equipa médica que a acompanha é um fator determinante na experiência de parto, como ficou estabelecido no inquérito da APDMGP. Frequentemente, o facto de a equipa médica transmitir confiança à parturiente, informando-a dos procedimentos que estão a ser adotados, solicitando o seu consentimento e acedendo aos seus pedidos contribui para esta relação. Mas isso nem sempre acontece. “Hoje acho que falharam na falta de informação sobre a evolução do parto. Houve mudança de turnos e a equipa seguinte não me transmitiu nenhuma confiança assim como a obstetra, o que me levou a entrar em pânico e a descontrolar-me”, afirmou uma inquirida. Uma outra disse: “Ou por falta de técnicos ou por falta de sensibilidade uma experiência que deveria ser boa acabou por ser terrível”.
“Aqui em Portugal é tudo muito frio. O tratamento é muito frio, é muito mecânico, e muito patriarcal”, lamenta Carla. “Há muita agressão verbal e uma pessoa quando entra no hospital sente logo uma hierarquização, do estilo ‘tu [a mulher grávida] estás aí em baixo, precisas da nossa ajuda, e nós estamos acima, por isso porta-te bem'”.
Nuno Hipólito Santos é médico de família. Foi nos seus anos de formação que se começou a aperceber de situações de violência, de coação, de desrespeito. Mais tarde, depois de ser pai, começou a tomar consciência de que aquelas práticas “não só eram uma realidade, como eram a norma”.
“É uma realidade que todos nós como estudantes de medicina vamos testemunhando. Como aluno e como profissional em início de carreira, talvez não fosse completamente percetível para mim que se tratassem de situações de violência. Para mim, essas eram as práticas normais, era aquilo que eu via como estudante de medicina. Nós somos ensinados de determinada maneira; mas acho que devemos fazer uma reflexão e ser críticos connosco próprios”, defende.
Nuno Hipólito Santos relata também a sua experiência como pai de dois filhos, em que também teve contacto com esta realidade. “No parto do meu primeiro filho a informação que nos deram foi que podíamos fazer o plano de parto, mas que devíamos perguntar à equipa médica se o podíamos discutir. Isso acabou por não acontecer e ninguém quis saber do plano de parto”. O plano de parto, ou plano de nascimento, está consagrado na Lei n.º 15/2014 e consiste num plano que pode ser elaborado pela mulher grávida, com o acompanhamento dos serviços hospitalares.
O plano visa determinar as condições e as intervenções a que mulher grávida, ou o casal, estão dispostos a submeter-se. Nele são descritas quaisquer opções que a mulher tenha em relação à presença de acompanhante(s) durante o parto, administração de anestesia epidural, da hormona ocitocina ou outros medicamentos ou procedimentos, se pretende ter liberdade de movimentos ou escolher a posição em que quer estar durante o período expulsivo, se pretende amamentar o recém-nascido na primeira hora de vida, entre outros aspetos.
De acordo com a lei, este plano é garantido por todos os serviços de saúde que acompanhem mulheres grávidas, devendo ser cumprido “salvo em situações clínicas que o desaconselhem, tendo em vista preservar a segurança da mãe, do feto ou do recém-nascido”. Quando não for possível seguir o plano, tal deve ser comunicado à grávida ou ao casal, estando sempre assegurado “o cumprimento do consentimento informado, esclarecido e livre, por parte da mulher grávida”.
“Quando nasceu o nosso segundo filho nós escolhemos um hospital em que há uma consulta específica sobre o plano de parto, que é feita a todas as mulheres grávidas, e há alguns hospitais em Portugal que a começam a fazer, como o Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim/Vila do Conde”, conta o médico. “Mas a realidade é que ainda há muita gente que não tem conhecimento do que é um plano de parto, e muito dos hospitais ainda não fazem estas consultas, que são fundamentais para as famílias discutirem aquilo que querem e aquilo que não querem”.
O plano de parto “tem a potencialidade de ser um excelente instrumento de diálogo com os profissionais de saúde”, afirma Catarina Barata, antropóloga que trabalha com a APDMGP e está a desenvolver uma tese de doutoramento sobre o tema da violência obstétrica. “No entanto, nem todas as instituições hospitalares o encorajam ou ‘aceitam’. E por consequência, muitas mulheres/casais desconhecem o que é e para que serve”, acrescenta, salientando que, apesar disso, um dos documentos mais descarregados do website da APDMGP é o modelo de plano de parto e outros recursos que apoiam a sua elaboração.
O plano de parto “é fundamental à perceção de controlo por parte da mulher grávida e/ou casal”, de acordo com a APDMGP, e é um instrumento cuja importância não pode ser descurada. O inquérito conduzido pela Associação apurou que 18% das inquiridas consideraram que o seu plano foi respeitado. 14% responderam que não foi respeitado e, a esmagadora maioria (68%) afirmou que não tinha feito ou entregue qualquer plano.
Concluiu-se ainda que quanto maior é a sensação de controlo que a mulher tem sobre o próprio parto, maior foi a satisfação com a experiência. Afinal, quem deve ter o protagonismo durante o parto é a mulher – e as práticas médicas não consentidas e o desrespeito do plano por ela delineado (quando não haja razões clinicamente justificadas para tal) consubstanciam situações de objetificação e violência. Uma inquirida afirmou sobre os planos de nascimento: “o meu plano de parto foi respeitado, mas passei a gravidez toda a ter de bater o pé”.
E o futuro?
A Direção da APDMGP, da qual fazem parte Sara do Vale, Vânia Simões e Catarina Barata lamenta que a Ordem dos Médicos tenha desvalorizado as experiências e os relatos de muitas mulheres que afirmam terem sofrido violência durante o parto. “A não validação das perceções das vítimas faz com estas duvidem da sua memória e naturalizem o abuso que sofreram”, explica Catarina, reforçando que é urgente trazer para o centro das políticas de obstetrícia o bem-estar da mulher.
A OMS lançou em 2018 uma série de recomendações que visam tornar o parto numa “experiência positiva“, afirmando que “embora se saiba muito sobre a gestão clínica do trabalho de parto e do parto, presta-se menos atenção ao que, para além das intervenções clínicas, é necessário fazer para que as mulheres se sintam seguras, confortáveis e positivas em relação à experiência”.
Para fazer um caminho em que sejam respeitados os direitos das mulheres durante o parto, os ativistas assumem que acima de tudo é preciso diálogo – “diálogo efetivo, sistemático e transparente entre sociedade civil, profissionais de saúde, instituições de saúde, DGS e poder político, criando ou reavivando comissões para o efeito”, defende Vânia Simões.
Nuno Hipólito Santos concorda, realçando que não procura “abrir uma guerra”: trata-se sobretudo de disponibilidade para ouvir. Sobre o último parecer da Ordem, o médico de família assume que “o que fez a Ordem dos Médicos foi reunir no texto do parecer um conjunto de ideias que estão absolutamente desatualizadas”. “Eu, como médico inscrito na Ordem dos Médicos sinto-me um bocado embaraçado com aquele documento. Eu gostaria de ver mais ciência naquele documento, sem dúvida, mas creio que o que faltou sobretudo neste documento foi o humanismo”, revela.
Atualização da classe médica para que se removam práticas sem fundamentação científica, a efetivação do conteúdo da Lei 110/2019 em orientações da DGS e o seu respeito nos hospitais, e acima de tudo o respeito pela integridade das grávidas, parturientes e puérperas. É isto que as muitas caras por trás deste movimento civil pretendem – ativistas, vítimas, profissionais de saúde. Em nome do movimento Violência Obstétrica Portugal, Carla Santos afirma: “nós estamos à procura de um enquadramento legal para a violência obstétrica. Estamos à procura de conhecimento por parte da Ordem dos Médicos e do Colégio de Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, e estamos também à espera de medidas preventivas desta realidade de violência”. Para que mais nenhuma mulher seja humilhada, violentada ou desrespeitada quando der à luz.