A confirmação da descoberta foi feita pela Polícia Científica espanhola, em maio de 2020. “Efetuada a busca de impressões digitais da amostra enviada pelas autoridades brasileiras, em nome de Sérgio Roberto de Carvalho, nascido a 18 de abril de 1958, perseguido por tráfico de drogas, foi identificado Paul Wouter, nascido a 16 de dezembro de 1965, em Paramaribo, no Suriname.” Dois homens, vindos de partes diferentes do mundo, nascidos em datas distintas, partilhavam algo inimitável: as mesmas impressões digitais. Para os Grupos de Resposta contra o Crime Organizado (Greco) da Galiza e para os juízes do tribunal de Vigo, a revelação de que os dois eram apenas um foi um choque. Um ano e meio depois de ter libertado Paul Wouter, que tinha estado em prisão preventiva mas que saíra com uma fiança de 200 mil euros, a Justiça espanhola concluía que libertara o homem que a Polícia Federal brasileira considerava o maior narcotraficante da Europa, líder da “maior e mais estruturada organização criminosa, especializada em exportações de carregamentos de cocaína” para aquele continente, cabecilha de seis cartéis brasileiros pouco recomendáveis e um dos bandidos mais procurados pelas polícias de todo o mundo.
E o pior é que, nessa data, já pouco havia a fazer. Paul Wouter estava em fuga. Uns meses depois, ainda menos: tinha morrido. Quando estava prestes a ser julgado pelo esquema de tráfico de 1 700 quilos de cocaína encontrados a bordo do barco Titan Tercero, em Espanha, o seu advogado de defesa apresentou em tribunal uma certidão de óbito, assinada por um médico de uma clínica de estética em Marbella: Wouter tinha morrido de Covid-19 e havia sido cremado.
Em novembro de 2020, do outro lado do Atlântico, a Polícia Federal brasileira montava uma superoperação de buscas e detenções contra o maior grupo organizado de tráfico de cocaína para a Europa, naquela que foi batizada de Operação Enterprise. Sérgio Roberto de Carvalho, o cabecilha da rede, era um dos visados e entrava diretamente para a lista vermelha da Interpol como um dos criminosos mais procurados. Estava aberta uma autêntica caça ao homem. Mas como, se eram os dois a mesma pessoa e se Paul Wouter tinha morrido? A maior polícia brasileira não acreditava nessa tese. Pensavam antes que o “Narco” tinha acrescentado mais um pormenor incrível à sua biografia: simulara a própria morte.
Não é por acaso que se tornou conhecido como “o Escobar brasileiro”, numa alusão ao colombiano Pablo Escobar, um dos maiores e mais famosos narcotraficantes da História. Agora, o percurso deste homem que foi major da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, que simulou a morte de um alter-ego seu em Espanha e que mantém uma carreira criminosa no Brasil, desde os anos 80, cruzou-se inesperadamente com o de outro homem, português e mediático: João Loureiro, ex-presidente do Boavista e ex-vocalista da popular banda dos anos 80, os Ban.
Na rota de João Loureiro
João Loureiro era um dos passageiros do avião em que foram encontrados 587 quilos de cocaína, escondidos em zonas difíceis da fuselagem do aparelho. Mais de meia tonelada de droga que a Polícia Federal brasileira e a Polícia Judiciária acreditam pertencer, na verdade, a Sérgio Roberto de Carvalho, outrora Paul Wouter, ou outrora Paulo Pinheiro, ou outrora Paulo Gonçalves Silva, ou Paulo Sérgio da Silva, já que, ao longo do tempo, foi tendo várias identidades e passaportes falsos. Para quem investiga estas rotas do tráfico, poucos, atualmente, conseguiriam montar uma operação desta envergadura e com métodos de ocultação tão sofisticados – bastava um pacote de droga um milímetro ao lado para se correr o risco de o avião se despenhar. Os investigadores brasileiros que têm passado os últimos anos a desmontar o esquema criminoso deste Pablo Escobar acreditam que o “Narco” continua a controlar as maiores exportações de coca para a Europa, à distância, no seu paradeiro incerto.
O ex-presidente do Boavista fez três viagens a bordo deste Falcon 900, em que, a 9 de fevereiro, foi encontrada esta quantidade de droga, no aeroporto de Salvador da Baía, depois de o comandante que pilotava o avião ter detetado uma falha no aparelho. João Loureiro voou nesta aeronave a 27 de janeiro, numa rota entre Lisboa e Salvador, com passagem curta por Sal, em Cabo Verde. Voou no dia seguinte, num circuito interno, entre Salvador e o aeroporto de Jundiaí, em São Paulo, e voltou a embarcar, no dia 7 de fevereiro, para voar entre São Paulo e Salvador, numa altura em que se presume que o avião já estava carregado com a meia tonelada de cocaína.
Fonte próxima de João Loureiro diz que o advogado e ex-presidente do Boavista nunca tinha ouvido falar do “Escobar brasileiro” nem tampouco conheceria o principal passageiro do voo, o espanhol Mansur Heredia, para quem o avião, propriedade da empresa Omni, terá sido originalmente fretado, por mais de 100 mil euros, pela Lopes e Ferreira assessoria, uma microempresa com sede em São Paulo. João Loureiro jura que apenas teve o azar de estar no local errado na hora errada. A polícia brasileira, que já tem o seu depoimento gravado e que apreendeu o conteúdo do seu telemóvel, está a investigá-lo, assim como a todos os outros que voaram ou estava previsto voarem naquele avião [ver caixa, página 33]. Também a Polícia Judiciária (PJ) e o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) estão a acompanhar a investigação.
Os últimos trajetos do avião, registados no site Radar Box, mostram que aquele Falcon fez várias viagens para o Brasil, nos últimos meses. Os radares também mostram que passou perto de Málaga, onde o major Carvalho viveu numa incrível mansão de 2,2 milhões de euros. A VISÃO tentou obter esclarecimentos dos donos da Omni, mas a empresa não quis colaborar, admitindo fazê-lo apenas no âmbito das investigações judiciais em curso.
As aventuras do “Narco” em Lisboa
“O major Carvalho não morreu. Quem morreu foi Paul Wouter que não é mais do que um documento falso.” Elvis Secco, coordenador nacional de repressão às drogas e fações criminosas da Polícia Federal (PF) brasileira, não tem dúvidas de que o chefe da quadrilha está vivo, como mostram as declarações feitas à brasileira Globo. Por isso, em novembro do ano passado, quando a PF emitiu mandados de busca e detenção para 13 moradas no Brasil, Portugal, Espanha e Emirados Árabes Unidos, o major Carvalho era o maior dos seus alvos, bem como as suas fazendas no Brasil, uma mansão de luxo em Espanha, uma empresa em seu nome no Dubai e três moradas em Lisboa. Os investigadores acreditam que o ex-membro da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul viveu dois anos na capital lisboeta, em períodos alternados, entre 2018 e 2020. Dizem mesmo que terá partido para Portugal a 4 de maio de 2018.
Só que, mais uma vez, o “Narco” venceu a polícia por antecipação. Dois dias antes da operação de buscas, fugiu de Lisboa em direção a Kiev, na Ucrânia, num dos seus aviões privados – e daí presumivelmente para o Dubai, onde criara uma empresa com as iniciais do seu pseudónimo Paul Wouter, a PWT General Trading. Para trás, o traficante de 62 anos deixou quase 12 milhões de euros em notas, guardados em malas no porta-bagagens de uma carrinha estacionada na garagem de um apartamento de luxo na Avenida da Liberdade. O imóvel tinha sido arrendado em nome da imobiliária que criara em Lisboa, a Notável Abadia (com sede na Avenida da República).
Em seu nome, tinha outros dois apartamentos, um T4 na Rua Casal Ribeiro, e um T3 na Rua República. Em nenhum deles, parecia haver sinais de que alguém lá teria vivido. O seu rasto só foi detetado no hotel Altis Belém, onde durante algum tempo terá ficado hospedado na suíte 127, com uma esplendorosa vista para o rio Tejo. Teria dinheiro suficiente para passar o resto da vida em hotéis, sem se preocupar com a conta. “Se deixou 12 milhões de euros para trás, podemos imaginar quanto terá levado consigo no avião”, disse à Globo Elvis Secco.
Centenas de documentos policiais, espalhados por mais de uma dezena de processos no Brasil e em Espanha – e aos quais a VISÃO teve acesso –, ajudam a traçar o perfil e o percurso deste homem que esteve, por várias vezes, preso e que, por várias vezes, renasceu. O seu périplo por Portugal está em longa medida contado no processo espanhol em que foi acusado de ajudar a transportar 1,7 toneladas de coca, a bordo do barco Titan Tercero, no verão de 2018.
Enquanto vigiava um grupo de narcos galegos, numa operação que acabou por conseguir detetar este carregamento de droga para o porto de Vigo, o grupo de operações especiais da polícia espanhola esbarrou num homem “entre os 50 e os 60 anos”, de 1 metro e 70 de altura, compleição física “robusta” e cabelo grisalho. Avistaram-no em maio a entrar na casa de Jacinto Viñas, conhecido traficante da Galiza, juntamente com outro dos membros do grupo (Mário Díaz). Mas a polícia só percebeu quem era este homem quando o voltou a ver em julho, junto ao El Corte Inglés de Marbella, novamente com Mário Díaz. Juntos, terão ido a uma loja comprar equipamentos informáticos, necessários para a operação.
A rede acabou desmantelada. E, dessa vez, Wouter não escapou. Foi detido numa clínica de estética em Marbella, onde estava hospedado com a namorada brasileira e fazia tratamentos para emagrecer, que facilmente custavam mais de 37 mil euros por semana. Em prisão preventiva por suspeitas de tráfico internacional de drogas, tudo fez para sair em liberdade. Ao processo, foi dizer que era impossível ter sido avistado a entrar na casa de Viñas, usando como desculpa alegadas provas de que nesse dia estava em Portugal: o comprovativo de uma reserva em seu nome no Altis Belém, entre 10 e 13 de maio; o argumento de que tinha estado em Guimarães a assinar um contrato-promessa de compra e venda; e uma multa de trânsito por excesso de velocidade em Alverca.
Só que o juiz de instrução não cedeu: de Guimarães à casa de Viñas, em Meis, Pontevedra, bastava uma hora e meia de carro, por boas estradas; a reserva da suíte no Altis não o obrigava a estar em permanência no hotel, e a alegada multa de trânsito tinha, afinal, sido falsificada, como atestou a Polícia Judiciária ao processo.
Só perto do Natal de 2018, o falso Paul Wouter, com passaporte do Suriname (uma ex-colónia holandesa situada a norte do Brasil), conseguiu substituir a prisão preventiva por uma fiança de 200 mil euros, um valor ridiculamente baixo quando se vê que, anos depois, seriam encontrados os tais 12 milhões de euros em Lisboa, diversos imóveis de luxo e 37 aeronaves em seu nome ou em nome de pessoas que agiam como seus testas de ferro, os chamados “laranjas” na gíria do português do Brasil. Nessa altura, acreditam os investigadores, terá voltado a fixar-se em Lisboa, continuando a gerir, à distância, seis grupos de crime organizado no Brasil.
E quando em Espanha foi acusado de tráfico internacional de droga, com proposta de condenação a 13 anos e meio de prisão e pagamento de uma multa de mais de 300 milhões de euros, encontrou outra forma ardilosa de escapar: inventar a própria morte, e até a sua cremação, tornando impossível comprovar por vestígios de ADN se o corpo do morto era mesmo seu. Tudo certificado por um cirurgião plástico da tal clínica de Marbella, da qual era cliente assíduo. O julgamento, que está prestes a começar em Pontevedra, senta no banco dos réus 20 pessoas, mas não aquele homem, morto como Paul Wouter mas ressuscitado com outra identidade.
Coleção de aviões e testas de ferro
Antes de fugir de Lisboa, dois dias antes da operação montada pela Polícia Federal brasileira, o major Carvalho comprou a Airjetsul, que opera a partir do aeródromo de Tires. Segundo a investigação brasileira da Operação Enterprise, o objetivo era usar os jatos da empresa de aviação no transporte de droga para a Europa, África e Ásia. Esse era, aliás, o seu modus operandi há anos. Páginas e páginas de documentos da Polícia Federal brasileira mostram como foi comprando empresas várias, lojas de roupa para homem (como a Fatto a Mano), barcos, aviões e avionetas para facilitar a exportação dos estupefacientes e lavar os milhões de euros ganhos no tráfico.
Essa é uma das razões que levam os investigadores portugueses e brasileiros a suspeitar que o major Carvalho poderia não só ser o dono dos quase 600 quilos de cocaína plantados no Falcon 900 como o testa de ferro de dois cidadãos brasileiros – Rowles Magalhães e Ricardo Agostinho – que, assessorados juridicamente por João Loureiro e financeiramente por um indivíduo de identidade ainda desconhecida, estavam a tentar comprar a Omni, proprietária desta e de outras aeronaves.
Na coleção de testas de ferro do Escobar brasileiro estavam também alguns familiares, como a filha, Lívia de Carvalho, a atual companheira, Olívia Christina, e duas irmãs, Vilma e Lucimara.
Lucimara de Carvalho foi, aliás, uma das pessoas detidas na Operação Enterprise, a 14 de novembro de 2020, precisamente por suspeitas de ajudar a lavar o dinheiro do irmão. Tê-lo-á feito através da Correa Contabilidade que ia constituindo empresas fictícias para branquear milhões. No final do ano, Lucimara apresentou um habeas corpus para sair da prisão preventiva. Alegou em sua defesa “graves problemas de saúde”, incluindo uma cirurgia recente a “hemorroidas trombosas de IV grau”, uma “cirurgia bariátrica”, um “quadro de obesidade crónica”, “graves problemas respiratórios”, além de “bronquite crónica, labirintite e doença psiquiátrica”. O juiz não acedeu ao seu pedido. Focou-se nas suas viagens para os Emirados Árabes Unidos, Espanha e França, em 2019 e 2020, acompanhada da sobrinha Lívia e envergando um passaporte falso, feito em Curitiba, e em nome de Lara Adriana de Melo; e nos valiosos bens em seu nome, como a fazenda Madegran, adquirida pela Bra Agropecuária, registada em seu nome e no da sua irmã, Vilma Fátima de Carvalho Ângelo da Silva. Ironicamente, esta mana do major Carvalho é uma ex-delegada da Polícia Civil, aposentada e, hoje, casada com um vice-prefeito de Jaraguari.
Além da família, o major foragido tinha também como testas de ferro bandidos profissionais. Era o caso de Shurendy Squant, descrito pelos media holandeses como um “traficante de drogas mundial muito violento, rico e sofisticado”. É ex-membro do grupo criminoso No limit Soldiers (Soldados sem Limite), cujos membros eram assassinos profissionais contratados.
O rei da coca
Uma organização criminosa que aparentava ser “um grande e complexo esquema de remessa de cocaína para o exterior, com contactos desde os países produtores na América do Sul até aos compradores na Europa, incluindo os transportadores em território brasileiro”. É assim a descrição da polícia brasileira sobre a rede deste Escobar, apontado como o cérebro e o cabecilha de seis cartéis, uns mais centrados na logística, outros na exportação dos estupefacientes por via aérea, outros no transporte da cocaína por mar, sobretudo através dos portos de Paranaguá, no Sul do Brasil, e de Natal, no Nordeste brasileiro. Sérgio Roberto de Carvalho era – e presume-se que continua a ser – uma espécie de “rei da cocaína”. Ninguém dominava como ele a capacidade de procura, armazenamento e transporte desta droga, a ponto de ser considerado pela Polícia Federal o maior narcotraficante daquela substância na Europa.
Entre 2017 e 2019, as polícias internacionais conseguiram desmontar mais de sete dezenas de operações de transporte de estupefacientes da sua rede. Ao todo, pelo menos 49 toneladas de coca foram encontradas. Mas Elvis Secco não é ingénuo. A quantidade de droga que terá escapado às autoridades e chegado ao destino final, assumiu o delegado, será dez vezes superior à que foi descoberta (nas suas palavras, foram 55 e não 49 toneladas). A prova disso é que muitos membros do grupo continuavam a levar vidas faustosas, mesmo depois de estes carregamentos serem desmantelados.
O valor de mercado de um quilo de cocaína varia muito de país para país e consoante a pureza da substância. Um quilo comprado na Bolívia pode valer 20 vezes mais nalgumas cidades da Europa. Neste caso, com cálculos conservadores, cada quilograma da droga apreendida valeria 7 264 euros (cerca de 50 mil reais). Multiplicando por 55 toneladas, a organização criminosa iria transacionar nestas operações o equivalente a 399,5 milhões de euros (ao câmbio atual).
Um relatório de 353 páginas, assinado por dois delegados da Polícia Federal, em março de 2020, descreve como, a partir de uma apreensão de droga, na cidade de Paranaguá, o Grupo de Investigações Sensíveis conseguiu identificar um “conglomerado de grupos criminosos”, de várias regiões do Brasil, que respondiam às ordens do ex-polícia militar. Tendo como base o estado do Mato Grosso do Sul – onde foi acumulando vários imóveis, fazendas e empresas fictícias – e os contactos privilegiados com fornecedores, sobretudo paraguaios e bolivianos, o Escobar brasileiro foi acumulando um extenso cadastro de crimes transnacionais. Tráfico de drogas, mas não só: aquisição de embarcações de pesca e aeronaves, criação fictícia de empresas em nome de terceiros, e uso de documentos falsos e ocultação de bens, para conseguir blindar o património adquirido com o dinheiro do tráfico e circular livremente pelos países destinatários da cocaína.
As operações desmanteladas em diversos pontos do Brasil, mas também em Leixões e Lisboa (Portugal), Barcelona e Algeciras (Espanha), Roterdão (Holanda) Antuérpia (Bélgica), Le Havre (França), Gioia Tauro e Livorno (Itália) ou Dakar, no Senegal, deram origem a investigações por crimes de tráfico, branqueamento de capitais e associação criminosa, e também por homicídio. Ao velho jeito dos clássicos cartéis, alguns destes grupos que o major dominava tinham as mãos sujas de sangue. Na região do Paranaguá, por exemplo, onde os grupos Zoio e Marcio Cristo atuavam com armas de fogo, há registos de assassínios “brutais” de desafetos, traidores, subordinados e testemunhas.
Em São Paulo, funcionava o grupo Logístico, especializado no transporte da carga em veículos preparados com compartimentos ocultos. Já no Nordeste brasileiro, o grupo Frutas Nordeste era especializado nos carregamentos da droga e na obtenção de documentos falsos, e o Barcos Natal era especializado no transporte marítimo da coca em grandes embarcações de pesca. Barcos como a Dorada, a Myomar e a Navegantes II terão sido por estes comprados como fachada para as suas atividades ilícitas. Curiosamente, o último, já rebatizado de Wood, seria intercetado em águas internacionais, próximas de Cabo Verde, levando a bordo 1 100 quilos de cocaína. Oito tripulantes foram apanhados em flagrante e, posteriormente, detidos em Lisboa, em junho de 2019. Os pacotes de coca, com os emblemas da Louis Vuitton e do Real Madrid, estavam acomodados em sacos de ráfia, escondidos nos porões.
Já o transporte da droga pelo ar era da responsabilidade do grupo Rio Preto, de São José do Rio Preto, especializado nos despachos aduaneiros e na utilização de aeronaves, adquiridas em nome de interpostas pessoas e de empresas de fachada. Os seus membros eram também os que exibiam os maiores sinais de riqueza, até nas redes sociais. Um património multimilionário comprado com os milhões da coca.
Em todas estas estruturas, a Polícia Federal encontrou “provas sedimentadas” da ingerência e liderança de Sérgio Roberto de Carvalho.
Escreve-se no passado porque uma grande parte dos seus membros foi detida na Operação Enterprise, mas deveria escrever-se no presente: relatos do final do ano passado dão conta de que todas as operações policiais não foram suficientes para acabar com a rede e que as suas práticas se mantêm.
Em novembro de 2020, o juiz federal Ricardo Rachid de Oliveira emitiu mandados de detenção para 60 pessoas. Além do major Carvalho, outros sete homens entraram para a lista da Interpol, com pedidos de extradição imediata para o Brasil: quatro colombianos, um holandês de Curaçao, e dois de nacionalidade desconhecida.
As notícias sobre a operação encheram as páginas dos media internacionais: a Polícia Federal cumpriu 149 mandados de busca e 66 de prisão em dez estados brasileiros, e em Espanha, Portugal, Colômbia e Emirados Árabes Unidos. Foram bloqueados milhões de euros e apreendidos carros, imóveis de luxo e aeronaves.
O email pwtdubai
A investigação da Polícia Federal brasileira à megarrede de tráfico começou na apreensão de 776 quilos de cocaína, escondidos num contentor que transportava tubos de plástico para o porto de Antuérpia, na Bélgica, em setembro de 2017, e continuou com a avaliação de uma série de denúncias. Mas o maior êxito da operação adveio das vigilâncias aos suspeitos e da monitorização de emails e telemóveis, recorrendo a sofisticados softwares informáticos.
Foi pelo acesso em tempo real à conta de email pwtdubai@gmail.com que a polícia conseguiu identificar Sérgio Roberto de Carvalho como sendo o utilizador daquela caixa de correio. Em novembro de 2017, os investigadores ficaram a saber como era e onde estava, porque o major copiou algumas fotos para a sua conta de email. Em fevereiro de 2018, souberam que recebera passagens aéreas em nome de Paul Wouter, com o passaporte número R1394183, com diversos registos de entrada e saída do Brasil, e que, em março desse ano, assinara em nome de Wouter um contrato de compra de uma propriedade em Málaga.
Com um software forense, foi feita a comparação das fotografias encontradas na sua caixa de email com as dos documentos em nome de Sérgio Roberto de Carvalho e a do passaporte de Paul Wouter, em que usava uns óculos pretos de massa. Estava confirmado que eram todos a mesma pessoa. Olhando agora para trás, se Espanha soubesse não teria cometido o erro de o tratar como um traficante menor que se apresentava como importador de frutos de mar em Marrocos e no Dubai.
O passado criminoso
A biografia do major Carvalho está recheada de crimes e de episódios dignos de filmes e livros sobre Narcos: notas escondidas em cofres e transportadas em malas, carros, mansões e aeronaves luxuosas, conversas de traficantes, passaportes falsos e disfarces, acidentes de avião, casinos e jogos de azar, reformas recebidas após a morte e até tentativas da apropriação da herança de um milionário português. Não é à toa que o seu nome aparece no livro Cocaína, a rota Caipira – o narcotráfico no principal corredor de drogas do Brasil.
Na obra, o autor Allan de Abreu descreve como a apetência do Escobar brasileiro para o crime terá começado muito cedo, nos anos 90, quando ainda era comandante da Polícia Militar na cidade de Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai. Um juiz federal descreveu assim a sua relação com o tráfico: “Sérgio, sem dúvida, valendo-se da sua condição de policial, não encontrou maiores dificuldades para ingressar nesse rentável comércio. Cercou-se de pessoas entusiastas da obtenção de lucro fácil e acesso aos confortos que somente o dinheiro poderia propiciar.”
Apesar de ter nascido numa família humilde, já naquela época era dono de várias fazendas, de uma empresa transportadora, de aviões e até de um posto de combustível. Bens incompatíveis com o salário de um polícia militar.
Em 1996, surgiram as primeiras suspeitas de que estaria envolvido no tráfico internacional de drogas e, um ano depois, seria o principal alvo de uma operação policial no seu estado, quando agentes montaram operações de vigilância diárias nas imediações de uma das suas fazendas, a Nova Cordilheira, em Rio Verde de Mato Grosso. Dali viram, por exemplo, descolar um Cessna que seguia em direção à Bolívia, mas que se despenhou a meio caminho. Quando a polícia descobriu os destroços da aeronave no meio da selva, já não havia um grama de coca para contar a história: tinha desaparecido misteriosamente. Uns meses depois, em outubro, o major perderia outro avião, dessa vez na Colômbia. Em novembro, os agentes caçaram a aterragem de uma aeronave na fazenda. Lá dentro, estavam 237 quilos de pasta-base de cocaína, escondidos em sacos de farinha de trigo.
Na época, o major ainda não era o mais experiente traficante de coca nem tivera ainda de inventar fugas mirabolantes. Entrou em pânico, desatou a ligar para todos os seus subordinados e fugiu. Foi encontrado uma semana depois, num hotel de Guarujá. Três anos após esse episódio, foi condenado a 15 anos de prisão.
Quando já cumpria pena em regime semiaberto, voltou a ser preso, desta vez por outros crimes relacionados com casinos e jogos de azar. Os delitos não terminaram por aqui e ficaram cada vez mais aprimorados. Em 2010, foi acusado de chefiar uma quadrilha que tentava ficar com a herança de um multimilionário que não tinha herdeiros. Chamava-se Olympio José Alves e era conhecido como “o português”.
No final de tudo isto, o major Carvalho ainda tentou continuar a receber a sua reforma como ex-militar. O benefício só foi cortado quando as notícias de que teria morrido com a identidade de Paul Wouter chegaram ao Brasil. Agora, o benefício está suspenso até que Carvalho faça prova de vida.
A Polícia Federal brasileira diz haver indícios de que o traficante de 62 anos está vivo, e bem vivo. Já o seu paradeiro continua um mistério – quase tão grande como o da droga encontrada no Falcon 900, ou como a dúvida sobre se queimou ou não algum corpo, e de quem esse corpo era, quando forjou a própria certidão de óbito.
João Loureiro: O que já se sabe
O ex-presidente do Boavista viajou no avião que carregava 587 quilos de cocaína. Estava envolvido no plano, foi usado para esse fim ou teve o azar de estar no local errado? A polícia investiga o seu papel na história.
Queriam comprar a Omni
João Loureiro terá sido convidado, no verão de 2020, para assessorar juridicamente a venda da Omni, dona do jato em que foram encontrados 587 quilos de droga, a dois brasileiros: Rowles Magalhães (ex-agente de jogadores) e Ricardo Agostinho, quadro da Infraero (o equivalente à ANA). Terá estado em seis ou sete reuniões na sede da Omni e ajudado a redigir o memorando de entendimento e o contrato-promessa.
Cede a empresa
Como os interessados na compra da empresa de aviação não estavam a conseguir constituir uma empresa para o efeito, devido às restrições da pandemia, João Loureiro ter-lhes-á cedido a Aristopreference, uma empresa que abrira com o filho e que nunca tivera qualquer atividade.
Convidado vip
Em janeiro, Rowles Magalhães e Ricardo Agostinho deviam voar para Portugal para finalizar o negócio – que já devia ter ficado concluído no final do ano – mas não conseguiam. João Loureiro terá, então, sido por estes convidado a viajar para o Brasil, aproveitando a “boleia” de um avião privado. O Falcon 900 terá sido fretado à Omni por uma empresa chamada Lopes e Ferreira, cujos donos alegadamente seriam conhecidos de Rowles.
O misterioso espanhol
O voo sai de Tires, a 27 de janeiro, e faz Lisboa-Sal-Salvador. Além de Loureiro, segue a bordo o espanhol Mansur Heredia, referenciado por tráfico de droga. Seria esse o principal passageiro, aquele que terá levado a empresa brasileira a fretar o avião. Loureiro garantiu não conhecer este homem nem o narcotraficante que é o principal suspeito de ser o “dono” da droga, o major Carvalho. As rotas demonstram que, em 2020, o avião já viajara pelo Brasil e por Málaga (onde o major tinha uma mansão), mas Loureiro garante que até janeiro de 2021 nunca entrara naquela aeronave.
O SMS para o comandante
O regresso a Lisboa estaria previsto para daí a cinco dias, mas não aconteceu. Enquanto isso, o avião terá ficado num hangar no aeroporto de Jundiaí. Cansado dos adiamentos, a 6 de fevereiro Loureiro enviou uma mensagem para o comandante Eduardo Cardoso a avisar que, se o avião não se deslocasse, iria tentar regressar num voo comercial. Curiosamente, nesse SMS avisou também para serem “muito cuidadosos na inspeção da carga do avião para o regresso”. Desconfiava de tráfico? Não. Estaria apenas a alertar para o problema que tinham tido em Salvador, por o aparelho ter transportado 11 caixas de vinho.
A viagem São Paulo-Salvador
No domingo, 7, é avisado de que o avião iria partir e, no dia 8, viaja de São Paulo para Salvador, novamente com Mansur Heredia. Ainda não é dessa que o avião segue para Lisboa. No hotel, e em conjunto com Bruno Carvalho e Hugo Cajuda, procura um voo comercial para São Paulo.
A descoberta da coca
No dia 9, à hora a que os 587 quilos de droga estão a ser descobertos, João Loureiro está em trânsito para São Paulo. Quando sabe da história, contacta a polícia. Presta declarações a 19 de fevereiro e entrega o telemóvel.
A chave do avião
Segundo o comandante, enquanto o avião estava parado, pessoas ter-lhe-ão pedido a chave. Só a terá dado porque responsáveis da Omni autorizaram. A VISÃO tentou questionar a empresa de aviação sobre quem eram estas pessoas-mistério, mas sem êxito.
Quem é o Escobar brasileiro?
Origens
Nasceu em 1958, em Ibiporã, no Paraná, ingressou na Polícia Militar de Mato Grosso do Sul.
Narcotráfico
Começou a ter problemas com a Justiça nos anos 80, por suspeitas de contrabando de pneus do Paraguai. Em 1997, foi preso e condenado a 16 anos de prisão por tráfico de 237 quilos de cocaína. Quando cumpria pena em regime semiaberto, voltou a ser preso por um esquema com jogos de azar. Em 2010, foi acusado de chefiar uma quadrilha que tentou ficar com a herança de um milionário que morrera sem deixar herdeiros.
Procurado
Em 2018, saiu do Brasil. Adquiriu um passaporte do Suriname, viveu em Portugal e, quando envergava a identidade de Paul Wouter, foi preso em Espanha pelo envolvimento no transporte de 1 700 quilos de cocaína. Saiu em liberdade depois de pagar a fiança.
Morte simulada
No verão de 2020, chegou ao processo uma certidão de óbito: tinha morrido de Covid-19. Tempos depois, a Polícia Federal brasileira informou: as impressões digitais mostravam que Paul Wouter era, na verdade, o major Carvalho.
Os três traficantes mais procurados
Os EUA oferecem recompensas milionárias a quem encontrar estes homens:
El Mencho
Informações sobre o paradeiro de Nemesio Oseguera Cervantes, chefe do cartel Jalisco Nova Geração, valem 10 milhões de dólares
El Mayo
Ismael Zambada García é o líder do cartel de Sinaloa, o mesmo de El Chapo. Está no narcotráfico há 40 anos e nunca foi preso
El Príncipe
Rafael Caro Quintero está foragido desde 2013. Ícone do narcotráfico no México, liderou cartel de Guadalajara
O software que descobre segredos
Chama-se UFED Analytics e é um dos mais avançados sistemas de extração, descodificação e análise de dados para perícias forenses. O software da empresa israelita Cellebrite foi um dos grandes aliados da Polícia Federal (PF) brasileira na desmontagem dos seis cartéis controlados pelo major Roberto de Carvalho, durante a Operação Enterprise. A empresa garante que a sua aplicação consegue recuperar grande parte dos dados apagados de telemóveis, incluindo os do WhatsApp, Telegram ou Signal. A prova de que tal é possível está nos documentos policiais a que a VISÃO acedeu. Foi com essa ferramenta que se extraíram mensagens de WhatsApp entre o major Carvalho e vários dos seus alegados testas de ferro. A PF poderá agora usá-la para “varrer” os dados do telemóvel de João Loureiro e de outros eventuais suspeitos no caso.