A Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ) congratulou-se hoje com “a valorização do trabalho doméstico” contido num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e que constitui “uma inovação no ordenamento jurídico português” naquela matéria.
Segundo adiantou à agência Lusa Joana Pinto Coelho, advogada e membro da APMJ, a Associação de Mulheres Juristas “regista com particular agrado” o acórdão do STJ que ditou a condenação de um homem ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico que esta desenvolveu ao longo de quase 30 anos, em união de facto.
No acórdão, datado de 14 de janeiro e consultado pela Lusa, o STJ refere que o exercício da atividade doméstica exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, “resulta num verdadeiro empobrecimento deste e a correspetiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”.
O STJ considera que isso se traduz num enriquecimento do membro do casal que não participa no trabalho doméstico, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem custos ou contributos.
De acordo com Joana Pinto Coelho, este acórdão constitui “uma inovação no ordenamento jurídico português no setor da valorização e quantificação do trabalho doméstico”.
A representante da APMJ sublinhou que, embora este direito esteja consagrado desde a reforma do Código Civil (2008) – artigo 1676 nº2 – ao prever “a valorização do trabalho realizado com o cuidado da família e do lar”, ou seja com as tarefas domésticas, a norma “na prática não tinha consequências”, tendo já a APMJ alertado para a “ineficácia” e falta de aplicação da mesma.
Questionada sobre o motivo que levou a que esta norma da reforma do Código Civil de 2008 não fosse aplicada, Joana Pinto Coelho justificou que se deveu “à formulação da norma jurídica”, em que “é difícil” fazer a comprovação dos factos, alegando também dificuldades na “fórmula de cálculo” do montante a atribuir. Admitiu poderem existir outras razões, mas não as quis aprofundar.
“Congratulamo-nos muito com a questão da valorização do trabalho doméstico no que respeita ao cuidado e educação com os filhos e com a não consideração do trabalho doméstico como uma obrigação natural das mulheres”, realçou a dirigente da APMJ, associação que é presidida pela juíza conselheira Teresa Féria.
Apesar do acórdão do STJ agora divulgado sobre a matéria “não criar precedente”, nem vincular os tribunais, serve, conforme explicou Joana Pinto Coelho, como “orientação jurisprudencial”, sendo que “todas as decisões [judiciais] futuras possam ser confrontadas com esta [do STJ]”.
Reconheceu que pode “vir a existir oposição de acórdãos” caso se verifique uma decisão judicial contrária, mas perante esta oposição de acórdão pode-se pedir a uniformização de jurisprudência sobre a matéria.
Além disso, a decisão agora tomada pelo STJ pode ser utilizada como “fundamentação em ações do género” que entrem nos tribunais.
No caso agora analisado pelo STJ, a mulher pedia, no mínimo, 240 mil euros, mas, na primeira instância, o Tribunal de Barcelos considerou que não havia lugar ao pagamento de qualquer quantia pelo trabalho doméstico da mulher.
A mulher recorreu para a Relação de Guimarães, que lhe deu razão, fixando a indemnização em 60.782 euros, tendo sido relator desta decisão Filipe Caroço.
O homem recorreu para o STJ, que confirmou a decisão da Relação. Foi relator do acórdão no STJ o juiz conselheiro João Cura Mariano.
O STJ refere que, em situações de evidente desequilíbrio, “não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever”.
“Desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça”, descreve o acórdão.
“Pelo contrário, tal dever reclama uma divisão de tarefas o mais igualitária possível, sem prejuízo da possibilidade de os membros dessa relação livremente acordarem que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico, na lógica de uma especialização dos contributos de cada um”, acrescenta.
O STJ sublinha que “o trabalho doméstico, embora continue a ser estranhamente invisível para muitos, tem obviamente um valor económico e traduz-se num enriquecimento enquanto poupança de despesas”.
No caso, provou-se que. ao longo dos quase 30 anos em que o homem e mulher viveram juntos, foi ela quem tratou e cuidou da casa e preparou as refeições do companheiro.
Por isso, o STJ diz que é correta a opção de ponderação desta realidade na contabilização das contribuições da mulher na aquisição do património pertencente ao companheiro.
Para o STJ, é igualmente contabilizável o trabalho despendido na educação e no acompanhamento dos filhos, desde que seja realizado exclusiva ou essencialmente por um dos elementos do casal.
Para fixar o valor do trabalho doméstico, o tribunal adotou como critério o salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses, durante os anos de vivência em comum.
Ao total, retirou um terço, considerando a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da mulher.
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