“Tive pesadelos e precisei mesmo de aconselhamento psicológico durante algum tempo.” O desabafo relatado pela conceituada Nature é de Martin Begemann, principal autor de um estudo sobre as vidas de mais de cem migrantes que conseguiram refúgio na Alemanha. E impressiona porque Begemann não é propriamente um novato para se deixar impressionar sem razões para isso.
Falamos de alguém que estudou medicina na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e começou uma carreira como investigador em neurologia clínica em 1996 no Mount Sinai Medical Center, em Nova Iorque. Oito ano depois, regressou ao seu país para integrar a equipa do conceituado Instituto Max Planck, na cidade universitária de Gottingen. Desenvolveu vários estudos sobre esquizofrenia e desordem bipolar. Em 2012, a universidade local agraciou-o com o Venia Legendi para neurologia clínica, uma espécie de reconhecimento superior das suas habilitações. Daí que aquela confidência surpreenda – e nos deixe a pensar no quão traumáticos serão os relatos que ouviu, no seu mais recente estudo.
A maior e mais detalhada descrição…
O foco da investigação de que se fala incide nos efeitos sobre a saúde mental de quem viveu experiências traumáticas a fugir da guerra, da tortura e até do tráfico de seres humanos. Pessoas cujas vidas praticamente só acumularam perdas – depois de atravessar quilómetros de terrra e mar à procura de um porto seguro. Pelo meio, antes do tão almejado refúgio, são maltratados, chantageados. A morte está sempre à espreita. Mas depois, mesmo quando são finalmente acolhidos, o stress permanece. As más memórias não só não desaparecem como os assombrarão por mais tempo do que poderíamos imaginar.
Oiça-se Marteza Hasani, um dos casos relatados no estudo conduzido por Begemann. Fugiu do Afeganistão em 2005, mal tinha feito seis anos. A guerra no país já deixara o pai decapitado e estendido sem vida, em frente à casa da família. Dez anos depois, conseguia chegar à Alemanha como refugiado. “Passei muito, entretanto. Mas nunca conseguir tirar a imagem do meu pai da cabeça”.
Hasani é um dos mais de 100 refugiados que aceitaram participar num estudo para avaliar como a saúde mental é afetada por experiências de vida como a sua. Todos aparentemente saudáveis, estão instalados em 9 centros de acolhimento na Alemanha. Oitenta por cento são do sexo masculino e quase um teço eram menores não acompanhados no momento em que chegaram. A maioria vinha do Afeganistão, Síria e Iraque, países em guerra há anos sem fim. Aquela investigação é também a maior e mais detalhada descrição do estado psicológico dos jovens refugiados realizada até agora.
…do estado psicológico de jovens refugiados
Já se sabia que os jovens que fogem dos seus países estão em maior risco de ter problemas mentais do que o resto da população. Mas o que este estudo pretendia era quantificar a forma como esses eventos causam problemas psiquiátricos. Begemann, que conduziu as entrevistas, detalha que encontrou cicatrizes de ferimentos de bala, facadas, explosões, queimaduras e choques elétricos em 40% dos participantes. E isso explica que vivam durante muito tempo, demasiado tempo, situações semelhantes às do stress pós-traumático.
“São dados mesmo muito impressionantes”, concorda Andreas Meyer-Lindenberg, psiquiatra do Instituto Central de Saúde Mental em Mannheim, Alemanha, também citado pela Nature. “Era esperado que esta população tenha um risco maior, mas o facto de se prolongar tanto no tempo não pode deixar ninguém indiferente”.
De tal forma que “revelam a necessidade de mudar as políticas para os refugiados”, acrescenta Hannelore Ehrenreich, neurologista e psiquiatra do mesmo Instituto Max Planck. Por exemplo? Muitos países (incluindo a Alemanha…) proíbem os refugiados de trabalhar ou integrarem-se na comunidade até receberem a autorização de asilo. “Mas este tempo de espera, associado ao medo de serem devolvidos aos países de onde fugiram, aumenta brutalmente o stress a que estão sujeitos”, sublinha a especialista. “E com isso o risco de acumularem problemas de saúde mental”.
E agora a fome e a doença, por culpa da pandemia
Os números globais desta história rematam o quão dramática se torna ao longo do tempo. Neste momento, quase 71 milhões de pessoas aguardam resposta ao seu pedido de asilo, em todo o mundo – dados das Nações Unidas. Só à Alemanha, desde 2014, chegaram quase dois milhões de candidatos a refugiados – uma esmagadora maioria entre os migrantes que alcançaram a Europa. Muitos vivem, depois, anos a fio em centros de refugiados até saberem se lhes é concedido aquele estatuto.
Agora, com o mundo quase paralisado pela pandemia de Covid-19, a sua situação ameaça agravar-se ainda mais. Segundo o mais recente comunicado da Amnistia Internacional, o que não faltam são exemplos disso. No campo de Vuciuk, na Bósnia, por exemplo, o fornecimento de água foi cortado pelas autoridades locais. No campo de Zaatari, na Jordânia, os habitantes foram obrigados a ficar em confinamento e impossibilitados de trabalhar, não tendo fontes de rendimento para fazer face às suas necessidades básicas. Na zona de Calais, em França, a distribuição de comida e água também foi afetada. Nem quem tem condições para comprar alimentos está a conseguir fazê-lo.