A relatora especial da ONU para os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, criticou ferozmente a decisão do governo brasileiro de nomear o pastor evangélico Ricardo Lopes Dias para a Fundação Nacional do Índio (Funai) como responsável pela proteção das tribos indígenas isoladas. Lopes Dias é formado em Antropologia mas tem também no seu currículo uma experiência de dez anos – entre 1997 e 2007 – de trabalho no Vale do Javari, na Amazónia, integrando a Missão Novas Tribos do Brasil, uma organização com financiamento dos EUA que promove a evangelização de indígenas desde os anos 1950.
“É uma decisão perigosa e que pode ter o potencial de gerar um genocídio da população de indígenas isolados”, disse, lembrando que “existe um histórico péssimo de grupos evangélicos a forçarem contactos ilegais”, quer no Brasil, quer no Equador e no Peru.
“Estes povos têm o direito de permanecer isolados”, reforçou, lembrando que o Brasil aprovou as diretrizes do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que estipula que estas tribos não devem ser contactadas. “O risco de levar doenças desconhecidas para os indígenas é elevado e o governo precisa aprender com o que ocorreu no passado”, insistiu.
Também a Constituição brasileira prevê, desde 1988, o respeito pela organização social, costumes, crenças e tradições dos indígenas, além do direito às terras que ocupam. O texto constitucional também estabelece que é dever do governo brasileiro demarcar as terras e protegê-las.
A Funai tem registos de pelo menos 107 grupos de indígenas isolados na parte brasileira da floresta amazónica. Mas “isolados” não significa que não tenham conhecimento da existência de mais mundo à sua volta e muitos deles mantêm contacto ocasional, por vezes hostil, com grupos vizinhos.
A decisão de se manterem afastados de outras tribos e de não-índios deve-se possivelmente ao trauma de encontros anteriores, que causaram a morte de milhares de índios, e da contínua invasão e destruição da sua floresta por madeireiros e garimpeiros.
Desde 1987, a Funai dedica-se a proteger estas tribos e só pode fazer contacto caso a sua sobrevivência esteja em risco iminente.
As terras indígenas representam hoje 12,6% do território brasileiro. Ali vivem cerca de 800 mil nativos, 0,4% da população do país, o que motivou Jair Bolsonaro a dizer que é “muita terra para tão pouco índio”.
O presidente também referiu que é “muita gente pobre em cima de uma terra tão rica”, mostrando-se por isso “feliz” por poder repor alguma “justiça”, abrindo terreno para projetos intensivos de agricultura e de “garimpo” de ouro nas zonas protegidas.
“Espero que esse sonho (…) se concretize. O índio é um ser humano exatamente igual a nós. Tem coração, tem sentimento, tem alma, tem desejo, tem necessidades e é tão brasileiro quanto nós”, disse o presidente na quarta-feira passada, em Brasília.
“O sonho de Bolsonaro é o nosso pesadelo e pode significar o nosso extermínio, porque o garimpo traz morte, doenças, miséria e acaba com o futuro dos nosso filhos”, criticou também Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Já no final de 2019, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos pediram que as autoridades brasileiras realizassem uma “investigação imediata, completa e imparcial” sobre os assassinatos de lideranças indígenas que se têm multiplicado, para que empresários sem escrúpulos possam ocupar as suas terras.
A CIDH e a ONU lembraram que “o Estado brasileiro tem a responsabilidade de garantir a proteção integral dos povos indígenas no país e que deve responder às causas estruturais relacionadas com a luta pela terra”, bem como “garantir que quem defende os direitos humanos possa exercer seu trabalho, que beneficia toda a coletividade, em condições de liberdade e segurança”.
Na passada quarta-feira, Jair Bolsonaro mostrou estar ciente das críticas que as novas medidas do seu Executivo iriam gerar: “Vamos sofrer pressão dos ambientalistas. Esse pessoal… Se um dia eu puder, eu confino-os na Amazónia, já que eles gostam tanto do meio ambiente.”