Poucos jornalistas tiveram a oportunidade de entrevistar tantos génios da cozinha, quais deuses da galáxia Michellin que, através do palato, proporcionam aos humanos experiências do outro mundo. Anthony Bourdain, Alain Ducasse, Massimo Bottura, Alex Atala, José Avillez, Ljubomir Stanisic, Andoni Aduriz, Hans Neuner, Nuno Mendes e Vítor Sobral – o jornalista Nelson Marques sentou-os à mesa como quem os senta num divã, e conseguiu que falassem “sem reservas” numa série de entrevistas publicadas no Expresso.
É desse trabalho ao longo da última década que surge agora o livro “Chefs Sem Reservas” (Clube do Autor, 216 pp., €19,50), com prefácio de Ferran Adrià. Na capa, a imagem de um prato feito em cacos, para que não restem dúvidas sobre o conteúdo da obra. Nestas páginas não há receitas, mas sim “as confissões, os erros e as lições de dez grandes cozinheiros” que aceitaram o desafio de partir a loiça toda.
Há um fio que une as entrevistas, e que é profundamente inspirador, revelando que todos estes chefs de sucesso passaram por maus bocados, que trabalharam muito (e quase sempre sofreram muito), mas superaram as dificuldades e viraram o jogo a seu favor. Também Nelson Marques não começou de repente a entrevistar estrelas no mais prestigiado jornal do país. Há 15 anos foi despedido do Público, com quase uma centena de outros colaboradores, e o sonho de ser jornalista, que ainda mal havia começado, ameaçava ficar por ali.
“Foi como um divórcio de alguém que se amou toda a vida”, conta à VISÃO. “Durante umas semanas, sempre que encontrava os meus colegas, era incapaz de levantar a cabeça. Mas esse fracasso fez-me mais forte, deu-me ainda mais combustível para ir atrás do que queria. Isto do jornalismo é uma droga que nos consome e ao fim de dois meses comecei a ressacar. Tinha 25 anos, aquele era o meu sonho, precisava de publicar.”
“Mandei um artigo para a Sábado e comecei a colaborar com eles. Depois veio a Pública e, quase ao mesmo tempo, o Expresso. Nunca tive tantos convites para um quadro como nessa altura, mas recusei-os todos porque só um me interessava: o Expresso. E ele lá surgiu, em 2011, pela mão da agora diretora da VISÃO, Mafalda Anjos. Um colaborador, há muitos anos afastado de uma redação, que entra no jornal como coordenador da Revista. Talvez durante algum tempo só eu acreditasse que tinha capacidade para isso, mas, felizmente, houve alguém que o viu também.”
“O fracasso é um ingrediente inevitável em qualquer história de sucesso. É a capacidade que cada um tem de montar o esqueleto todo depois de cair e voltar a andar que o distingue de quem não tem essa resiliência. Nesse sentido, sinto que essa é um pouco a narrativa de muita gente.”
“Tentei sempre que não me colocassem num espartilho, apesar de existir muitas vezes essa tentação. Comecei a minha carreira na secção de Desporto, mas nunca quis ser jornalista de Desporto. Escrevi sobre Ciência, mas nunca quis ser jornalista de Ciência. Ganhei prémios – e escrevi o meu primeiro livro – com histórias de cancro, mas nunca quis escrever apenas sobre saúde. Tenho orgulho de ser um jornalista todo-terreno, que não tem preconceitos em relação a nenhum tema e que acha que uma boa história pode estar em qualquer lado. E, por isso, não tenho qualquer interesse em fazer agora uma carreira como jornalista de gastronomia, embora sinta que este projeto não vai acabar aqui. No próximo livro, será outro tema qualquer, para baralhar aqueles que adoram rótulos. Talvez um ‘políticos sem reservas’ ou um ‘gestores sem reservas’.”
“Durante anos tive um discurso ensaiado na cabeça, para quando um dia ganhasse um prémio ou escrevesse um livro. Terminava assim: ‘Obrigado a todos aqueles que não acreditaram em mim, porque a sua desconfiança foi a minha maior força’. Os prémios surgiram, os livros também, e o discurso ficou sempre arrumado na cabeça. Não fazia mais sentido. A vida ensinou-me que o nosso percurso somos nós que o fazemos, ninguém tem o poder para o determinar. Podem colocar-te pedras no caminho, podes ter de te desviar como a água de um rio contorna uma montanha, mas chegarás ao teu mar.”
Anthony Bourdain
“O meu primeiro trabalho foi em Providence, no Massachusetts, onde existia uma grande comunidade piscatória portuguesa. O que se comia era basicamente a comida deles, e eu adorava. Era deliciosa”
“Comecei a lavar pratos. Depois fui cozinheiro e chef durante 28 anos. Não tinha dinheiro, nem poder, mas mesmo nessa época, em que ainda não havia o fenómeno dos chefs-celebridade, o estilo de vida do cozinheiro num restaurante decente era bom: tínhamos comida, bebida e mulheres.”
Massimo Botura
“No final de 1994 abri o Osteria Francescana. Os primeiros tempos foram muito, muito complicados. Foi o período mais difícil da minha vida, porque o restaurante estava sempre vazio. A tradição em Itália é quase uma religião, é intocável, e poucas pessoas compreendiam o que eu queria fazer.”
“Houve uma altura em que estava pronto para largar tudo e ir para Londres, mas a Lara [sua mulher] convenceu-me a dar mais um ano ao restaurante. E um dia, por causa de um engarrafamento no trânsito, um homem ligou a fazer uma reserva. Gostou muito do jantar e, no final, disse-me que poderia ler na revista L’Expresso o que ele achara do restaurante. Era crítico gastronómico e escreveu uma crítica maravilhosa. No final desse ano recebemos a primeira estrela Michelin”
Alain Ducasse
“Em 1984 sobrevivi à queda de um avião, fui o único dos cinco passageiros. Tinha 27 anos e, meses antes, recebera a minha segunda estrela Michelin. Pensaram que eu não voltaria a andar ou a ver. Estive internado um ano no hospital e fui operado mais de uma dezena de vezes. Queria estar em forma em duas semanas mas foram precisos três anos.”
“Mesmo enquanto estive no hospital, nunca deixei de trabalhar. Continuei a cozinhar na minha cabeça, a criar pratos e menus. Foi uma decisão preliminar para o que veio a seguir: tive de inventar uma nova forma de ser chef. Fisicamente não tinha outra hipótese, naquela altura dependia de outras pessoas.”
Ljubomir Stanisic
“Também tive o meu próprio ‘pesadelo na cozinha’. No 100 Maneiras de Cascais passei por uma falência de merda, perdi muito dinheiro, uns 350 mil, 400 mil euros, que tive de pagar durante seis ou sete anos, mas aprendi mais com esse fracasso do que com o sucesso que veio depois.”
“Fechei-me num casulo durante um mês. Nem casa tinha, estava a viver com um casal amigo. Eles davam-me dinheiro, eu ia ao mercado, e comecei a cozinhar a toda a hora. Passava por uma crise de autoconfiança tão grande que precisava de acreditar que era bom cozinheiro. Quando perdes um negócio, começas a duvidar de tudo.”
“Tinha 13 anos quando a guerra rebentou em Sarajevo. Passadas três ou quatro semanas deram-me uma arma. Tive um curso rápido em dois minutos. Vi um primo ser abatido por um sniper mesmo ao meu lado. Estávamos num pasto grande, muito bonito, só ouvíamos uns zumbidos: fu… fu… fu… Não sabíamos que eram balas. Levou um tiro num olho e saiu-lhe pela tampa da cabeça, ficou com o cérebro a dançar no chão. Foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. Não é uma história bonita de se contar.”
José Avillez
“Quando comecei a trabalhar mais a sério tinha dias em que dormia duas, três horas, e não conseguia aguentar-me em pé. Só não chorava porque não tinha forças para chorar.”
“Tenho dois filhos, o Zé e o Martinho. Houve temporadas em que passava 15 dias sem os ver, eles até pensavam que eu estava a viajar. Um dia, o mais novo chamou-me ‘o pai do mano’. Isso bateu-me forte, não tinha percebido que eu era pai dele.”
“É impossível ser-se adorado sem se ser odiado. O ódio e o amor estão muitas vezes perto. Tenho os meus haters, escrevem-me cartas a chamar-me filho da puta. Houve um que me insultava porque tinha lido um artigo sobre o meu cozido à portuguesa e queixava-se de que a dose era muito pequena. Não levo essas coisas a peito.”