Trinta e cinco milhões. Anualmente, perdem-se trinta e cinco milhões de anos de vida, em todo o mundo, devido à mortalidade provocada pelo suicídio. A estimativa é do Global Burden of Disease, que calcula o impacto global das mais variadas causas de morte e é promovido pelo Institute for Health and Metrics Evaluation, uma instituição norte-americana financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates.
No início de fevereiro, a organização divulgou um estudo que analisa a evolução do suicídio em 195 países – incluindo Portugal – entre 1990 e 2016. As conclusões mostram uma quebra de quase um terço da mortalidade a nível internacional. Objetivamente, o número absoluto de suicídios cresceu 6,7% mas, proporcionalmente ao aumento da população mundial, a taxa diminuiu 32,7 por cento. Em 26 anos, o número de casos decresceu de 16,6 para 11,2 vítimas por cada 100 mil habitantes.
Portugal consegue estar abaixo dos dois dígitos, como indica a taxa padronizada. Em 2016, registaram-se 7,3 óbitos por cada 100 mil habitantes (enquanto a média europeia ronda os 11). No ano seguinte, houve um ligeiro aumento, mas não foi significativo – registaram-se oito mortes por cada 100 mil habitantes (em números absolutos, traduz-se em 1 061 suicídios).
Os dois Estados mais populosos do planeta – a China e a Índia, com cerca de 1,3 milhões de habitantes cada um – contribuíram substancialmente para a inversão das estatísticas. Juntos, somaram 42,2% dos suicídios contabilizados em 2016, ano em que se mataram 817 mil pessoas em todo o mundo. A China conseguiu uma diminuição de 64,1% e a Índia de 15,2%, ao longo de um quarto de século.
Em ambos os países, a taxa de suicídio entre as raparigas jovens é anormalmente alta. De acordo com um estudo de 2002, dois terços das chinesas que haviam cometido tentativas de suicídio tinham casamentos infelizes e dois quintos eram vítimas de violência doméstica. A maior liberdade por elas conquistada estará a ajudar a contrariar os números. O mesmo poderá estar a acontecer na Índia.
Os jovens entre os 15 e os 29 anos exigem especial atenção, já que o suicídio é a segunda principal causa de morte nesta faixa etária. A psicóloga clínica Maria Gouveia defende a aposta na prevenção dentro das escolas e, claro, junto dos pais. A docente do ISPA nota um aumento do número de adolescentes com comportamentos autolesivos, “que podem ser uma porta de entrada para as tentativas de suicídio”, alerta. “É preciso desmistificar a ideia de que quem vai ao psicólogo são os ‘loucos’. Quando estes comportamentos fazem parte da vida do adolescente, só uma intervenção psicoterapêutica pode ajudar a pará-los e a prevenir recaídas.”
Melancolia rural
“No fim da adolescência, existe um pico de ideação e tentativa de suicídio”, corrobora o diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, “mas os atos consumados são muito menos do que entre os idosos”. A taxa de mortalidade por suicídio acima dos 75 anos é quatro vezes superior à média nacional.
No entanto, os mais velhos também estão a contribuir para o declínio deste comportamento a nível mundial. A diminuição da pobreza e o acesso facilitado a cuidados de saúde são apontados como os principais motivos para o decréscimo do suicídio nos idosos.
O psiquiatra Carlos Braz Saraiva destaca um aspeto preocupante a nível nacional: “O fenómeno tem-se verificado cada vez mais cedo. Agora, em vez de ser aos 55 anos, é a partir dos 45 que começam a aparecer mais casos.” A perda de estatuto social, associada à crise económica, poderá estar na base do impulso dos chamados adultos tardios.
É entre os homens que o suicídio é mais elevado – os dados internacionais dão conta de 15,6 óbitos do sexo masculino por 100 mil habitantes, enquanto no sexo feminino a média é de sete. Em Portugal, o comportamento suicidário dos homens é três vezes superior ao das mulheres.
Ao contrário do que defendia o sociólogo Émile Durkheim, um dos grandes teóricos do suicídio no século XIX, os laços sociais não estão necessariamente mais protegidos em ambiente rural. A urbanização também terá contribuído para a diminuição do suicídio na China e na Índia – é mais fácil escapar de uma relação abusiva numa cidade do que numa aldeia. Além disso, costuma ser mais difícil aceder a meios letais em meio urbano. Também em Portugal esta tendência global faz eco. O isolamento, alimentado pela desertificação do Interior, é um dos principais fatores de risco. Carlos Braz Saraiva chama-lhe a “solidão melancólica do mundo rural”.
A geógrafa Paula Santana, do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Coimbra, conduziu um estudo, em 2015, que ilustra o aumento do risco de morte por suicídio nos municípios rurais e a sua diminuição nos urbanizados, sobretudo no continente. Esta oposição urbano-rural poderá estar associada a fatores económicos e sociais, como maior proximidade a cuidados de saúde e um nível mais elevado de literacia em saúde mental nas cidades.
Apesar de a tendência estar mitigada, continuam a verificar-se menos casos no Norte do País. “A tradicional oposição Norte/Sul tem raízes culturais fortes, continuando a região Norte a ser, no geral, mais conservadora e católica”, explica a investigadora da Universidade de Coimbra. No Sul, o Alentejo mantém-se como uma das regiões europeias com taxas mais altas de suicídio. Em 2016, registavam-se 19,1 suicídios por cada 100 mil habitantes, muito acima da taxa bruta nacional desse ano (9,5). A Sociedade Portuguesa de Suicidologia está atualmente a estudar as possíveis razões para este comportamento nesta região geográfica. O envelhecimento, o agnosticismo, a facilidade de acesso a meios letais são algumas das hipóteses.
Crises mortais
A estabilidade económica também se revela um fator importante. Os desempregados têm uma probabilidade de cometer suicídio 2,5 vezes superior à dos trabalhadores com emprego. A crise financeira de 2008 terá causado um aumento de 10 mil suicídios nos Estados Unidos da América, no Canadá e na Europa Ocidental (entre 2007 e 2010).
No estudo Suicídio em Portugal: determinantes espaciais num contexto de crise económica, a investigadora Paula Santana também verificou uma forte associação entre o suicídio e os períodos de maior instabilidade económica, coincidindo o seu aumento com os resgates financeiros a Portugal do Fundo Monetário Internacional (em 1983 e 2011). Em municípios com maior privação socioeconómica, o risco de mortalidade é 50% mais elevado.
O psiquiatra Ricardo Gusmão alerta para a importância de analisar estes dados com precaução: “A grande maioria das pessoas com doença aguda ou crónica, não psiquiátrica, não se mata e muito menos a maioria das pessoas desempregadas. O que se passa é que um pequeno grupo de pessoas afetadas por doenças psiquiátricas, nomeadamente depressão, e com história de comportamento suicidário prévio, quando impactadas negativamente por acontecimentos de vida marcantes, como a doença crónica ou a perda de rendimento, fica em risco acrescido de suicídio. Estas pessoas deveriam receber mais apoios sociais, além dos cuidados formais.”
Habitualmente, quem comete suicídio tem problemas de saúde mental, ainda que não diagnosticados, sendo o mais comum a depressão. Carlos Braz Saraiva avança com um número: “Nove em cada dez suicidas têm doenças psiquiátricas.” Fausto Amaro sublinha, no entanto, que não existe uma relação de causa e efeito: “Quem tem depressão tem maior risco de cometer suicídio, mas isso não significa que o vá fazer. Há fatores de proteção, como a família e os amigos.”
Proximidade e inclusão. Ambas são palavras-chave na prevenção do suicídio. “As pessoas precisam de ter vínculos à rede social e familiar, se não os tiverem o risco de passarem ao ato é muito maior”, alerta Carlos Braz Saraiva. O docente da Universidade de Coimbra dá um exemplo simples: “É muito importante as pessoas terem a oportunidade de cuidar. Às vezes, basta terem um cão ou um gato para assumirem o papel de cuidadoras e se sentirem úteis, reforçando a autoestima.”
EUA são exceção
“Não há uma varinha mágica para resolver o problema”, lamenta o diretor do Plano Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier. “A prevenção é apenas um dos elementos importantes. Também depende do acesso aos serviços de saúde mental e da deteção ao nível dos cuidados primários. O combate do estigma associado à doença mental é igualmente determinante.”
O psiquiatra admite que “uma parte importante das propostas do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio não foi implementada”. Uma das prioridades é facilitar o acesso aos cuidados de saúde dos pacientes com depressão. “Passa-se muito tempo entre a manifestação dos sintomas e o momento em que as pessoas pedem ajuda. Isso tem de mudar”, defende.
Miguel Xavier reconhece o papel essencial dos cuidados primários de saúde na deteção da depressão, “mas não é em consultas de dez minutos que as pessoas vão falar de suicídio…”, lembra. Além disso, alerta para a especificidade da saúde mental: “Não se pode estar passivamente à espera dos doentes. Se uma pessoa tem uma fratura, de certeza que vai ao hospital, mas grande parte de quem tem ideação suicida não vai procurar cuidados, daí a importância das equipas comunitárias de saúde mental, que funcionam em rede e identificam as pessoas em sofrimento.” A criação das redes comunitárias, que já funcionam em vários serviços de saúde do País, é a única medida do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio contemplada no Orçamento do Estado deste ano. Miguel Xavier admite que “o investimento está muito abaixo da carga suportada pela saúde mental”, mas não considera a suborçamentação um problema exclusivamente nacional: “É assim mundialmente.”
A grande exceção na tendência global de queda dos suicídios são os Estados Unidos da América. Desde 2000, o número de suicídios aumentou 18 por cento. Atualmente, acontecem 12,8 óbitos por cada 100 mil habitantes no país – enquanto na China se registam sete. Além dos nativo-americanos, também os homens brancos, de meia-idade, com baixo nível de instrução e residentes em áreas especialmente afetadas pela recessão económica fazem parte dos principais grupos de risco. Num país com uma lei de porte de arma especialmente permissiva, metade dos suicídios são cometidos com armas de fogo, com um potencial letal muito superior a outros métodos.
O suicídio é surpreendentemente impulsivo, sobretudo entre os mais novos, daí a importância de dificultar a concretização do impulso. A venda de medicamentos em pequenas quantidades ou a disposição dos comprimidos em blisters, em vez de frascos, dão tempo à pessoa para reconsiderar. Também o acesso a pesticidas tem sido cada vez mais restringido em várias regiões do mundo. A literacia sobre saúde mental é igualmente fundamental para identificar sintomas de desespero, como dizer que já não se anda cá a fazer nada. “Um dos mitos sobre esta matéria é o de que não se deve falar sobre suicídio. É falso. Devemos falar e ouvir as pessoas, aconselhando-as a procurar ajuda especializada. O que não devemos é desvalorizar os seus problemas ou censurá-las”, explica Fausto Amaro.
No final do ano passado, o Reino Unido criou um Ministério para a Prevenção do Suicídio. Uma medida que Maria Gouveia vê com bons olhos: “Desde logo, para combater o estigma associado à doença mental. Por outro lado, é o reconhecimento de um problema e isso é importante. Seguramente que se passará a falar mais de todos os fatores de risco”, remata.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia destaca a subnotificação do número de casos em Portugal, “apesar de ter melhorado muito”, sublinha. “Muitas vezes, as famílias procuram que a causa de morte não seja registada como suicídio devido ao estigma social e a questões de ordem religiosa”, admite Fausto Amaro. O sociólogo acredita que 10 a 20% dos casos não serão contabilizados, tal como acontece noutros países.
A psicóloga Maria Gouveia é, por isso, prudente na análise das estatísticas internacionais: “Temos de ser cautelosos com a afirmação de que existe uma tendência de queda. O número de vidas perdidas continua a ser muito elevado e nem sempre a causa de morte é registada como tal. É preciso que se façam mais autópsias psicológicas para se distinguir o que é ou não um acidente.” Ainda há demasiadas vidas por resgatar.
Pedir ajuda
Persistem alguns mitos sobre o suicídio que é urgente desfazer:
– As ameaças devem ser levadas a sério, em vez de serem consideradas simples chamadas de atenção
– Quando alguém sobrevive a uma tentativa, permanece em risco e precisa de acompanhamento especializado
– O suicídio nem sempre é impulsivo, muitas pessoas falam da sua intenção antecipadamente
– Apesar de haver uma correlação forte, nem sempre quem comete suicídio tem problemas de saúde mental
– É importante conversar sobre o tema de forma responsável e aconselhar as pessoas a procurarem psicólogos ou psiquiatras
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