O anúncio foi feito este domingo, numa conferência de imprensa durante as comemorações dos 160 anos da primeira visão de Bernadette Soubirous, pela voz do bispo de Beauvais, Jacques Benoit-Gonnin. Ao seu lado estava o médico italiano Alessandro de Franciscis e três pilhas de papéis. “Trouxe-vos o dossiê de quarenta anos de dores”, disse, apontando para os documentos, o presidente do Comissão Médica de Lourdes, criada em 1883. “Sou o advogado do diabo.”
Alessandro de Franciscis olhou pela primeira vez para o processo de Bernadette Moriau em 2009. Esta irmã franciscana francesa dizia ter recuperado “milagrosamente” de uma grave invalidez física após uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, no ano anterior. O trabalho do médico seria, como sempre, procurar “a falha” eventual no seu dossiê clínico, recheado de exames de todo o tipo. “O nosso método de trabalho é muito rígido, não há espaço para o mirabolante”, disse agora à AFP. “Lourdes é reconhecido como um local de curas, não obrigatoriamente de milagres.”
Ao fim de quase dez anos de investigação, Franciscis e a sua equipa informaram o Comité Médico Internacional de Lourdes do “carácter imprevisível, instantâneo, completo, durável e inexplicável da cura” da freira francesa. Em novembro último, por ocasião da sua reunião anual, o comité confirmou a “cura inexplicável, no estado atual dos conhecimentos científicos”. E este domingo o bispo Benoit-Gonnin era todo sorrisos – a cura da freira, hoje com 79 anos, teve um carácter “prodigioso-milagroso” e acontecera “por intercessão da Virgem Maria”.
“A ciência ainda não explica”
O tema é “delicado”, começa por dizer à VISÃO o padre Anselmo Borges, sem, no entanto, fugir a ele. “Tudo é milagre, no sentido mais profundo da palavra”, nota. “Desde logo a nossa existência… Como é que nesta história gigantesca de 14 mil milhões de anos eu apareci?”, pensa em voz alta o teólogo e professor universitário em Coimbra.
“A palavra ‘milagre’ vem do latim (miraculum), significa algo de admirável”, lembra. “E às vezes acontecem coisas fantásticas. Como é que alguém foi generoso ao ponto de dar uma fortuna para acabar com o analfabetismo em África? Mas ‘milagre’, no sentido estrito, religioso, seria a suspensão das leis da natureza. Por exemplo, alguém a quem lhe tinha sido amputada uma perna e ela lhe aparece novamente – seria uma intervenção de Deus.”
Neste sentido estrito, este padre da Sociedade Missionária da Boa Nova não acredita em milagres. “Um milagre implicaria que Deus está fora do mundo e, de vez em quando, vem dentro para fazer algo por alguém. O que implicaria também ateísmo, porque é como se Ele estivesse fora e de vez em quando viesse dentro. E ainda por cima faz a uma pessoa e não faz por outra… Acredito que Deus é o Criador e está sempre infinitamente presente para promover o Bem, mas não suspende as leis da natureza.”
Em Lourdes aconteceu algo “de extraordinário”, de admirável, e a senhora que fique grata, “mas não foi um milagre no sentido estrito”, sublinha o teólogo, conhecido pelas suas críticas a diversos aspetos da doutrina oficial católica. “Nós é que ainda não conhecemos tudo aquilo de que a natureza é capaz. A ciência ainda não explica.”
“Chorei vários dias”
Bernadette Moriau é a primeira a dizer que a sua história lembra a do paralítico, contada na Bíblia, em que Jesus diz “Levanta-te, toma o teu leito e anda” e o homem pega na sua maca e começa a andar.
Filha mais velha de uma família numerosa humilde, de Rennes, no Norte de França, Bernadette entrou na congregação das Franciscana Oblatas do Sagrado Coração de Jesus aos 19 anos. Cinco anos depois, começava a sofrer com dores insuportáveis nas costas.
Os médicos diagnosticaram-lhe a síndrome do rabo de cavalo, uma condição neurológica rara que consiste na compressão de raízes nervosas da coluna vertebral. Entre 1968 e 1975, submeteu-se a quatro cirurgias, sem grande êxito. Em 1988, foi declarada inválida e, seis anos depois, começou a tomar morfina para conseguir andar.
“Por essa altura já sabia que nunca iria ter melhorias”, conta num vídeo disponível no site da diocese de Beauvais. Pelo contrário – a sua saúde não parava de se degradar. Em 2004, quando já usava um corpete rígido para se manter direita, ficou com um dos pés de tal maneira revirado que passou usar uma tala de ferro, 24 horas por dia.
A sua peregrinação a Lourdes aconteceu em julho de 2008, por ocasião da comemoração dos 150 anos das visões de Bernadette Soubirous. “Fui instada pelo meu médico assistente a acompanhar um grupo de doentes, e pensei ‘Por que não?’ Afinal, também me chamo Bernadette…”
Na basílica de Lourdes, diz ter sentido a presença de Jesus durante a bênção dos doentes, uma presença fortíssima que voltaria a sentir três dias depois, já na capela do convento. “Estava a rezar, na companhia de uma das irmãs, e foi como se estivesse em comunhão com Lourdes”, conta. “Eram 17h40”, recorda, com precisão. “Senti um bem-estar de todo o meu corpo, um relaxamento e calor. Voltei para o meu quarto e, lá, uma voz disse-me: ‘Tira os teus aparelhos’, e eu nem pensei no que se estava a passar, tirei tudo, num ato de fé”, conta no vídeo. “Como o paralítico, quando Jesus lhe diz ‘Levanta-te e anda’.”
Bernadette seguiu a ordem e rapidamente percebeu que conseguia mexer-se. Mais: o pé revirado há anos estava direito. “Nessa noite, parei com o neuro-estimulador e a morfina, sem qualquer ressaca. E desfiz-me em lágrimas. Chorei vários dias.”
Lourdes e as curas
O Santuário de Lourdes é um local de peregrinação muito procurado por doentes de todo o mundo. Numa das supostas aparições a Bernadette Soubirous, todas em 1858, a Virgem Maria terá pedido à miúda, então com 14 anos, que escavasse o chão da gruta, coisa que a rapariga fez, logo aí aparecendo água. Pouco depois, as gentes das imediações acorreriam à gruta, espalhando-se as supostas propriedades curativas daquela fonte natural.
Desde então, têm sido milhares as curas relatadas – mais de 7 mil apresentadas oficialmente aos responsáveis deste santuário mariano, mas apenas 70 aceites como milagres. O 69.º milagre foi confirmado em 2013, após a cura inexplicável de uma mulher italiana, que sofria de vários males.