Um instante de miúdos a jogarem à bola, na Guiné Bissau, valeu um World Press Photo a Daniel Rodrigues, em 2013, e, desde então, o fotógrafo português nunca mais parou de viajar pelo continente africano, expondo realidades nem sempre bonitas de ver – e, com o seu olhar especial, cruzando a crueza da realidade com uma certa melancolia, de arrecadar prémios internacionais. Esta semana foi distinguido em Barcelona como Fotógrafo Ibero-Americano do Ano no concurso de fotografia documental POY Latam, um dos mais prestigiados do mundo, pelo seu conjunto de trabalhos realizados ao longo de 2016, em Moçambique, Malawi, Marrocos e Mauritânia, com um salto ao Irão e à Turquia.
Recebeu a notícia em São Tomé, no meio do mato – cada vez mais, o seu habitat natural. “Os prémios são bons porque me permitem continuar a fazer o que mais gosto”, conta ao telefone, no final de mais um dia intenso ao serviço do New York Times. O diário norte-americano contratou-o e é hoje a principal fonte de sustento do fotógrafo de 30 anos, da Póvoa do Varzim, que há apenas quatro anos não conseguia trabalhar em Portugal e vendera até já as suas máquinas para sobreviver.
O Prémio POY é atribuído desde 1944 pela Universidade de Missouri, Columbia, nos EUA, que tem um dos mais antigos e prestigiados cursos de fotojornalismo do mundo. Em 2011 passou a atribuir-se, de dois em dois anos, o POY-Latam, celebrando o trabalho dos fotógrafos da América Latina e da Península Ibérica. Em 2015, Daniel Rodrigues recebera já uma menção honrosa na categoria de Fotógrafo do Ano e em 2016 ficou em terceiro lugar. À terceira foi mesmo a sua vez – e entre os muitos profissionais de excelência distinguidos (veja aqui os prémios) não há mais nenhum português.
Entre as 40 fotografias de Daniel Rodrigues analisadas pelo juri internacional há, sobretudo, o seu olhar sem filtros sobre a realidade africana. Dos albinos perseguidos em Moçambique e no Malawi às sardinhas que dançam na mão de um menino, no maior mercado de peixe da Mauritânia.
Pedimos-lhe que escolha uma. É quase tão difícil como sugerir a uma mãe que diga qual é o filho de quem gosta mais, mas ele acaba por selecionar uma imagem nunca antes publicada, de um elefante-fêmea atacado por caçadores furtivos, na reserva do Niassa, em Moçambique. Só ali, foram mortos 10 mil elefantes na última década. A este ritmo, daqui a cinco anos não restará mais nenhum.
Passou 15 dias muito duros a (tentar) acompanhar os fiscais no terreno – os primeiros três sentado num banco de pau, à espera de (mais) uma autorização que teimava em não aparecer. “Há realidades que ninguém quer que sejam mostradas.”
Quase todas estas reportagens agora premiadas foram feitas já com um cliente assegurado (publicou no New York Times, Washington Post, Courrier, Expresso e Visão, entre outros) mas aquela que trazia na cabeça há cinco anos ainda não tinha destino certo. Quando viajou pela primeira vez para África, um continente que se haveria de colar à sua pele e à sua alma, tinha como destino a Guiné (onde faria a imagem que lhe valeu o World Press Photo) mas fez escala na Mauritânia. Apaixonou-se à primeira vista pelo Iron Train, um dos maiores comboios do mundo, que cruza o deserto do Saara transportando minérios – e o que mais faça falta, desde burros a cabras, de apeadeiro em apeadeiro. “Não hei-de morrer sem fazer esta viagem de comboio”, prometeu a si próprio. Cumpriu o sonho no ano passado mas a experiência esteve perto de se tornar um pesadelo.
“Eu sabia que ia ser difícil mas foi bem mais duro do que poderia imaginar. De dia estava imenso calor, à noite gelávamos. E aquele pó de ferro, muito fino e preto, entranha-se em tudo. Levei uns óculos de natação, a achar que me iriam proteger, mas nem um dia duraram, Toda a gente naquele comboio usa lenços e turbantes mas é uma guerra inglória. Depois de regressar a casa, e de ter tomado três banhos, ainda tinha pó preto a sair dos ouvidos.”
Esses três banhos só aconteceram depois de ter aterrado em Lisboa e de ter corrido para apanhar um comboio para o Porto, que partia meia-hora depois do seu avião ter tocado no solo da Portela. Passara 10 dias sem um duche, sem entrar em nada parecido com uma casa de banho. Estava coberto por uma pasta negra, entranhada nas unhas, nos ouvidos, no nariz, nos cabelos.
Sabia que estava sujo mas, quando se sentou no lugar que o seu bilhete indicava, não tinha bem noção do impacto que o seu cheiro iria ter no passageiro do lado. Dois minutos bastaram para que o homem, de forma meio envergonhada, lhe pedisse desculpa, mas tinha mesmo de trocar de lugar… “Claro, eu também faria o mesmo!”, disse-lhe a rir.
As histórias por trás de cada reportagem, de cada foto, vão sendo desfiadas ao telefone, entrecortadas por gargalhadas espontâneas ou momentos de comoção genuínos. Há pouco espaço para outras histórias na sua vida mas ele não se queixa do cansaço das viagens (este ano ainda só “parou” 20 dias em Portugal, 10 deles em trabalho) nem de uma vida mais solitária, de país em país, de mochila às costas. Foi aqui que ambicionou chegar, desde sempre, e o seu sonho esteve quase a escapar-lhe, como grãos finos por entre os dedos. Mas mesmo quando tudo parecia perdido, ele não desistiu. Foi recompensado e agarrou a oportunidade que a vida lhe deu com todas as suas forças. E não vai largar. “Enquanto o meu corpo me permitir, não me imagino a fazer outra coisa.”