Até aos 20 anos, todos julgavam que iria ser pianista. Filho do professor, poeta e filósofo M. S. Lourenço, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, passou a infância em Londres e foi educado segundo os princípios daquilo a que se convencionou chamar “a alta cultura”.
Abandonou o piano, mas continua a gostar de música. Bach, para si, é a perfeição suprema. O seu primeiro romance, Pode Um Desejo Imenso (publicado em 2002 com a chancela dos Livros Cotovia, como quase toda a sua obra), tinha como protagonista um professor universitário cuja atração amorosa por um aluno quase igualava o seu fascínio por Camões.
Helenista, apaixonado pelo latim e pelo grego antigo, tornou-se conhecido do grande público por causa das suas traduções da Ilíada e da Odisseia, de Homero. Na semana passada, venceu o Prémio Pessoa 2016 pela sua tradução da Bíblia grega, a chamada Bíblia dos Setenta, uma tarefa homérica, cujo primeiro volume foi lançado pela Quetzal no início de setembro. O júri sublinhou-lhe o “rigor”, a “rara erudição” e “o modo como ao longo de quase duas décadas tem vindo a oferecer à língua portuguesa as grandes obras da literatura clássica”. Ele, como bom católico que já foi, agradeceu, naturalmente sentiu-se lisonjeado.
E, conforme diz nesta entrevista realizada em Coimbra, na sala de sua casa, cheia de livros e móveis que pertenceram a seu pai, explica como só esse afastamento da religião católica lhe permitiu traduzir a Bíblia dos primeiros cristãos. Fá-lo, avisa, de um modo diferente dos padres e dos teólogos que, ao longo dos séculos, tentaram tornar o texto sagrado mais “legível”. Ostinato rigore.
Ainda é católico praticante?
Sou agnóstico, no sentido em que não sei o que é Deus. Mas acredito que Deus existe. É um bocado difícil de dizer o que sou. Eu próprio, muitas vezes, não sei.
Já fui católico praticante, já fui católico não praticante, agora acho que sou alguém que apenas tem simpatia pelo catolicismo.
Afastou-se do catolicismo por causa da questão da sexualidade?
A sexualidade foi o motor que deu início a esse questionamento, mas não foi apenas isso que originou o meu afastamento. Até porque, hoje, conhecendo a Bíblia como conheço, acho que seria capaz de dar uma volta argumentativa para conciliar, de forma mais ou menos aceitável, a religião e a sexualidade. Claro que teria de admitir que, na Bíblia, existe uma condenação expressa da homossexualidade, embora, ao mesmo tempo, fosse capaz de encontrar argumentos para enquadrar essa condenação de uma forma histórica.
Seria uma espécie de resposta, para si, interior?
Não, o que não falta no mundo são homossexuais cristãos, católicos e protestantes. O mundo está cheio de pessoas que, dentro das suas igrejas, encontraram uma maneira de racionalizar essa contradição entre religião e sexualidade.
Então, qual seria a razão de fundo dessa argumentação? Quanto mais conheço o Novo Testamento, mais sinto um fosso entre aquilo que o cristianismo foi inicialmente e aquilo em que o cristianismo se tornou, com esta Igreja Católica, com esta hierarquia. Quando lemos o Novo Testamento com atenção, verificamos que nada disto é o que estava previsto. A argumentação cristã é que o Espírito Santo foi guiando os fiéis ao longo destes dois mil anos e que, portanto, a Igreja de hoje é consentânea com a vontade divina.
Imagino que tenha dificuldade em aceitar essa explicação.
Como historiador, tenho dificuldade em aceitar esta explicação e julgo que existe uma forte contradição entre aquilo que a Igreja é e aquilo que, no Novo Testamento, está previsto que ela seja.
Se a Igreja fosse mais parecida com aquilo que era nos séculos I e II, talvez eu me sentisse mais identificado como cristão. No início, a separação com o judaísmo também não estava assim tão marcada, os primeiros cristãos eram judeus, Jesus de Nazaré era judeu, Paulo era judeu. Eles não estavam a criar uma religião nova, estavam apenas a trazerlhe umas diferenças.
A humanizá-la?
A modernizá-la, a adaptá-la ao tempo em que viviam. Eles consideravam que havia muitas coisas que, naquele momento da vida deles, podiam ser atualizadas. Para usar a linguagem dos computadores, havia atualizações prontas para ser instaladas e Jesus e Paulo instalaram essas atualizações no judaísmo.
Começou a clivagem entre judeus e cristãos.
Sim, e a verdade é que nunca mais existiu um movimento para voltar a fundir as duas religiões. O judaísmo é atualmente uma religião minoritária, menos de um por cento da população mundial a professa, o que não deixa de ser espantoso se compararmos esses números com a sua importância cultural, histórica e civilizacional. O judaísmo é uma religião cujas ideias entraram nas cabeças de pessoas de todo o mundo.
Por exemplo, a ideia de um Deus único. Até o Islão, com aquela ligação à figura patriarcal de Abraão. É triste, por isso, quando vemos as tensões entre muçulmanos e judeus no Médio Oriente.
É tudo isso que lhe interessa quando se abalança neste trabalho homérico de traduzir todos os livros da Bíblia grega?
Voltar aos primórdios do cristianismo é, para mim, o maior fascínio neste projeto.
Interessa-me o entendimento da história da Bíblia. Tento ver as coisas com o sentido que, na altura, elas tinham. Com os olhos das pessoas que viram Jesus a ser crucificado. No Antigo Testamento, ninguém fala em cristianismo, a própria palavra cristão apenas aparece duas vezes.
O que existe no Antigo Testamento é a palavra via, era assim que as pessoas se referiam a esta nova coisa que tinha sido trazida por Jesus.
E essa via partia do judaísmo e, acreditavam os primeiros cristãos, seguia em direção a algo de novo?
Sim, em direção a um entendimento das coisas completamente novo. Sobretudo no que diz respeito à ideia de as pessoas serem todas iguais perante Deus. Para São Paulo, quando Deus olha para as pessoas, não está a dizer que este é judeu, aquele é grego, este é escravo, aquele é homem, esta é mulher. Deus olha para as pessoas por causa daquilo que elas são.
Uma ideia que, nos dias de hoje, continua a ser muito sedutora e a dominar uma boa parte da filosofia política.
E que está na base daquilo que tentamos defender nas democracias ocidentais.
A sua concretização é, porém, muito recente, basta pensarmos que a abolição formal da escravatura aconteceu no século XIX e que, ainda hoje, um número incontável de pessoas vive em situações de escravatura real.
Também foi na Bíblia que, pela primeira vez, apareceram histórias cujas personagens eram pessoas comuns, mulheres, pobres, desgraçados.?
Na literatura greco-romana, essas criaturas, pura e simplesmente, não existem. A Bíblia é uma narrativa em que o herói é filho de um carpinteiro e as restantes personagens são pastores e pescadores. Julgo que isso é muito revolucionário e interessa-me compreender como é que esse mundo greco-romano, no qual esse tipo de literatura era desconsiderado, se deixou conquistar. Podemos pensar que a mensagem de Jesus de Nazaré se dirigia aos judeus, mas o que ele acabou por conquistar verdadeiramente foi o mundo greco-romano, que não dava o mínimo de crédito a pescadores e a carpinteiros.
E porque é que, em seu entender, isso aconteceu?
Só posso pensar que, se calhar, a mensagem de Jesus é mesmo convincente. E não é preciso ser cristão para o sentir. A ideia de amar os inimigos, de fazer o bem a quem nos faz mal, todas essas ideias eram completamente o contrário de tudo aquilo que era dito em todo o lado.
Ainda hoje se trata de uma mensagem revolucionária?
Não tenho dúvida nenhuma. Se todas as pessoas pusessem em prática a mensagem de Jesus, em grande medida os problemas do mundo estavam resolvidos. A questão é que, ao longo destes dois mil anos, tem-se revelado difícil pôr em prática essa mensagem.
A Bíblia não é um livro de hoje nem de ontem, é um livro de amanhã.
Ao receber o prémio Pessoa, qual foi a primeira reação: receio, espanto, gratidão?
A primeira reação foi de estupefação, obviamente misturada com felicidade e gratidão. Fiquei atordoado durante horas depois de ter recebido o telefonema de Francisco Pinto Balsemão. Tive dificuldade em acreditar. Mas depois impôs-se o sentimento dominante de gratidão.
Imagino que veja o reconhecimento público do seu trabalho com extrema simpatia. Mas na realidade o prémio funciona como um incentivo ou como um fator de distração de um trabalho que exige máximo recolhimento?
Sinto que é um incentivo e também um voto de confiança nas línguas clássicas, grego e latim. O grego é a minha maior paixão e continuo convicto da importância do ensino do latim e do grego no ensino secundário e universitário.
Curiosamente, é muito melhor no inglês e no alemão do que no grego.
O inglês e o alemão são línguas vivas, línguas que eu falo e nas quais escrevo habitualmente. Já tentei aprender o grego de hoje, mas nunca consegui ficar muito competente. Por outro lado, a língua que amo é o grego antigo, é o grego de Homero e de Platão. Esse grego é que é a minha paixão. E, ao mesmo tempo, há uma coisa que me faz muita confusão: trata-se de uma língua que eu não posso falar e que, no entanto, fala comigo.
Sente-se mais como o tradutor que trai ou como o tradutor que ilumina o texto original?
Sou o tradutor menos traidor que existe.
Todas as palavras que tive de acrescentar, que estão subentendidas no texto mas que não estão explícitas, aparecem entre parêntesis retos.
E isso é uma diferença fundamental em relação a todas as outras bíblias. Os meus comentários servem, portanto, para explicar muitas coisas que, traduzidas apenas como estão no original, são incompreensíveis. E há muitas frases na Bíblia que o são, ninguém à face da Terra é capaz de as entender, nem o Papa.
O que temos é de reconhecer que elas são incompreensíveis e não reescrevêlas de forma a torná-las compreensíveis, como acontece nas bíblias que são feitas com o intuito teológico.
Não procura a beleza do texto?
Quando estou a traduzir, não. Deixo que o belo aflore naturalmente, mas não procuro fazer uma tradução bonita, procuro fazer uma tradução exata.
Quando o original é lindíssimo e eu, na tradução, consigo manter essa beleza, então, aí, fico muito contente, claro.
Vem dos seus pais, esse interesse pelas coisas belas?
Os meus pais fizeram um excelente trabalho, deram-nos a conhecer, a mim e à minha irmã, a literatura, a arte e a música, todas essas coisas importantes, bonitas e culturalmente relevantes.
É verdade que eles me deram tudo isso, mas também é verdade que havia da minha parte uma grande apetência por esse tipo de coisas. Acho que os pais devem ter essa atitude em relação aos filhos, embora não valha a pena obrigar uma criança que não gosta de música clássica a gostar.
A arte é mais bonita que a vida?
Não, ela existe na vida. A arte é uma das razões pelas quais eu penso que vale a pena estar vivo. Interesso-me pela vida porque existe arte, literatura e música, filosofia e religião. Sem essas grandes questões, a vida não me interessa nem tão-pouco vejo razões para estar vivo.
Sempre se expôs muito mais do que o seu pai, que era mais fechado, mais hermético.
Fico sempre um bocadinho perplexo com essa questão. As pessoas acham sempre que um homossexual está a expor-se quando sai do armário. Dá ideia que tem de ficar dentro do armário para não se expor. Ora, ninguém pede a um heterossexual para sair do armário…
Mas, como escritor, fá-lo de uma forma desarmante, inquietadora e, por isso mesmo, conquistadora.
Quando não estou a traduzir nem a escrever trabalhos académicos, gosto mais de escrever sobre as coisas e as pessoas que conheço.
Como aquele seu avô da Marinha Mercante sobre o qual já escreveu e que é uma autêntica personagem de um romance pícaro?
Percebo que, para quem lê, pode ser desarmante na medida em que a literatura portuguesa é avessa ao registo biográfico.
Valoriza-se muito a efabulação, mas a verdade é que eu não tenho jeito nenhuma para a efabulação. De todos os livros que escrevi, aquele de que gosto mais é O Lugar Supraceleste [2015], onde julgo que consegui a quadratura do círculo de não estar a escrever ficção, mas de escrever sobre os temas de que gosto em contexto de pequenas reflexões. Trata-se de um conjunto de 70 meditações sobre o meu pai, a minha mãe, o piano, o cravo, a ópera, a religião, a literatura francesa, a alemã e a inglesa.
Tudo aquilo de que gosta, em suma.
As coisas de que gosto e as ideias que tenho sobre a vida. Quando eu morrer, fico muito contente de ter escrito esse livro. É, por assim dizer, o meu testamento.
Como é que a academia, o meio universitário, olha para esse seu lado mais biográfico?
Não sei, não sei o que as pessoas dizem de mim nas minhas costas. Na minha cara, são muito simpáticas.
Porque é que quis sair de Lisboa e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa?
Estava um bocadinho cansado e, quando abriu o concurso da Universidade de Coimbra, senti que queria concorrer àquele lugar. Um dos problemas do sistema universitário português é o facto de os professores ficarem a vida inteira numa só faculdade. Noutros países, isso não acontece, sobretudo no mundo germânico e anglo-saxónico, onde é obrigatório fazer o que fiz.
É outra mentalidade e, por isso, há mais circulação de ideias.
Essa mudança profissional, no seu caso, também correspondeu a uma mudança de vida.
De faculdade, de casa, de cidade, de tudo.
No princípio foi difícil, o meu pai tinha acabado de morrer [agosto de 2009] e, nos dois primeiros anos que estive em Coimbra, tive dificuldade em lidar com essa perda. Uma vez ultrapassada, tenho–me dado muito bem em Coimbra.
Adoro ir a Lisboa, vou de comboio e, ao fim do dia, estou de regresso a casa.
Consegue concentrar-se mais no seu trabalho em Coimbra do que em Lisboa?
Muito mais. E, sinceramente, as condições de trabalho que tenho na Universidade de Coimbra são muito melhores do que as que tinha quando estava na Universidade de Lisboa.
Agrada-lhe mais dar aulas ou fazer investigação?
Ambas são necessárias. As aulas são muito importantes para mantermos um sentido do real, obrigam-nos a interagir com os alunos, a ter um discurso que faça sentido. Não posso ficar fechado no labirinto dos meus pensamentos. Esse é, aliás, um dos pavores que tenho, quando me reformar, quando chegar à idade em que terei de me reformar.
O que vai ser essa vida de estar isolado, só com os livros?
Sente-se próximo dos seus alunos?
Quando comecei a dar aulas tinha 25 anos, agora tenho 53 anos. E é óbvio que, à medida que vou envelhecendo, vai havendo um fosso cada vez maior entre mim e os alunos. Dou aulas a pessoas que têm 19/20 anos e torna-se claro que, para mim, chegar a elas hoje em dia já não é tão fácil como era quando comecei a lecionar. Não sigo as coisas que os meus alunos seguem, não vejo os filmes que os meus alunos veem, não ouço a música que os meus alunos ouvem.
Que tipo de alunos, hoje em dia, querem aprender Estudos Clássicos?
Converso muito com os meus colegas sobre isso. E é curioso que existe uma grande diversidade de padrão: uns vê-se mesmo que estão apaixonados pelo passado (são, por exemplo, muito convencionais na maneira de vestir); outros são completamente do seu tempo, têm rastas e piercings. O que noto é que, desde que vim para Coimbra, tive a sorte de ter tido alunos acima do muito bom, superlativamente bons, genialmente bons.
Na sua opinião, que papel está reservado aos intelectuais nas sociedades ocidentais que hoje temos?
Sem os intelectuais, o panorama das nossas sociedades seria muito pobre.
Entrar numa livraria e só ver best-sellers e livros de dietas seria um grande empobrecimento.
Sente que, de alguma maneira, pode cumprir esse papel?
Não, de maneira nenhuma. E, aliás, fico sempre espantado quando as pessoas julgam que eu sou um intelectual.
A palavra encerra em si um estatuto que eu não tenho.
E não lhe apetece ter um certo tipo de intervenção pública?
Nem sequer me vejo nesse papel de intervir publicamente, o papel que tem, por exemplo, Eduardo Lourenço que, além da sua atividade como ensaísta, também reflete muito sobre a atualidade política. Não é que eu esteja fechado numa torre de marfim, nada disso. Para estar ao corrente do que se vai passando, todos os dias leio três jornais online, dois ingleses e um português. Tenho as minhas ideias, as minhas opiniões. Mas não sinto que tenha um pensamento político, sobre aquilo que se está a passar em Portugal, na Europa e no mundo, que possa interessar a quem quer que seja. Sou apenas um professor, um tradutor, um escritor.
Entrevista publicada na VISÃO 1241 de 15 de dezembro