Não há queixas novas, mas há males crónicos, agravados pelo cansaço dos profissionais e por um vírus da gripe que nem sempre cede à vacina. Junte-se-lhe a falta de aposta nos cuidados de saúde primários e temos o cenário de caos descrito pelos profissionais e doentes à VISÃO.
“Estamos programados para uma situação ideal e basta uma alteração, como a gripe, para a rotura. O que se destruiu em dois ou três anos, porque quisemos fazer um brilharete perante a troika, cortando mais do que nos era pedido, irá demorar décadas a reconstruir. Temo pelo SNS”, admite Carlos Cortes, presidente da secção regional do centro da Ordem dos Médicos, para quem “a fórmula Paulo Macedo não está a funcionar”.
Apesar de toda a insatisfação – menos trabalho em equipa devido à contratação de tarefeiros, horas extra pagas a metade, falta de tempo para os doentes -, o SNS foi mantendo o nariz à tona. Até ao dia em que não aguentou mais um esforço. O diagnóstico é transversal a todo o País e especialidades, como resume Fernando Cirurgião, diretor do serviço de obstetrícia do Hospital de São Francisco Xavier. “Está tudo reduzido ao mínimo. Médicos, enfermeiros, auxiliares. Não há ninguém nos bastidores. Ficámos um ano à espera de autorização para contratar um anestesista. Só na segunda-feira, 19, recebemos luz verde para celebrar contratos.”
A mesma “luz” começou agora a chegar a outros serviços, um mês depois de as mortes nas urgências terem começado a abrir noticiários. O ministro da Saúde, Paulo Macedo, anunciou várias medidas. Entre elas, o recurso a urgências privadas para tratar doentes do SNS e a contratação de 1 499 médicos e cerca de 2 000 enfermeiros, além de uma resposta há muito reivindicada pelos clínicos: o aproveitamento de especialistas reformados. Fonte do Ministério da Saúde garantiu ainda à VISÃO que as contratações poderão ocorrer em todos os centros hospitalares.
Mesmo assim, no INEM, onde a espera para atendimento telefónico chegou aos 102 segundos no dia 2 de janeiro, aguarda-se ainda pela abertura de um concurso externo para contratação de 70 novos técnicos operadores de telecomunicações e 85 técnicos de emergência. Isto apesar de, segundo fonte do Instituto de Emergência Médica, se ter registado “um acréscimo do número de chamadas de cerca de 20% face à média diária do ano de 2014, o que representa mais cerca de 700 chamadas diárias”.
Pedimos aos nossos entrevistados que definissem, numa palavra, o atual estado do SNS.
Ana Marques
42 ANOS
ASSISTENTE OPERACIONAL NA URGÊNCIA HOSPITAL S. FRANCISCO XAVIER
“Há quatro anos éramos 60 e agora somos 35, na urgência geral. O turno da manhã fazia-se com 14 técnicos e agora somos 8. No hospital havia 900 camas e agora são 800. Como não há vagas, os doentes acumulam-se na urgência, à espera. Normalmente, atendemos 170 doentes por dia. Agora, com a gripe, chegámos aos 230 e não houve reforço nenhum. Ficámos sem macas, porque estão todas em uso. E assim não conseguimos internar os doentes. Não damos resposta. A espera média de duas horas passou para sete a nove. Os doentes não deixam de ser transportados nem lavados, mas com atraso. Não conseguimos estar em todo o lado. Quando falta alguém, temos de seguir turno e não podemos dizer que não. No fundo, pedem-me disponibilidade total por 600 euros de salário. Há dois anos levei um soco de um doente que estava alcoolizado. Fiquei com o maxilar deslocado, mas pus gelo e continuei a trabalhar. É assim porque gosto de ajudar o próximo e porque chegamos ao final do dia e temos uma chefia que nos diz ‘Obrigado!’ Mas estamos a entrar em exaustão.”
DESESPERO
“Fiquei com o maxilar deslocado, mas pus gelo e continuei a trabalhar. Porque chegamos ao final do dia e temos uma chefia que nos diz ‘Obrigado!’ Mas estamos a entrar em exaustão”
Pedro Azevedo
29 ANOS
MEDICINA INTERNA HOSPITAL GARCIA DE ORTA
“Aqui praticamos medicina de guerra. A urgência foi dimensionada para 21 doentes e chegam a estar 60. Há pessoas amontoadas, internamentos que ocorrem por inteiro na urgência e doentes ventilados que deveriam estar nos cuidados intensivos. E também há muitas falsas urgências. Boa parte da urgência é assegurada por médicos sem qualquer especialidade e com pouca experiência, que pedem exames de forma indiferenciada. O que torna tudo mais moroso e mais caro. O problema começa nos centros de Saúde que não têm capacidade de atender todos os doentes e na central de consultas. Reconvertemos cada espaço em sala de consultas, até salas de arrumos. Mas aí não há aparelhos de medir a tensão, nem impressora para imprimir as receitas. Na minha consulta, sigo doentes que poderiam ser atendidos no centro de Saúde, mas como há um limite de prescrição imposto aos médicos de família, estas pessoas acabam por ter de ser vistas aqui.
Já fui chamado para duas paragens cardiorrespiratórias, ao mesmo tempo. Todos fazemos horas a mais. O pior é quando os doentes não reconhecem o esforço. Já me cuspiram na cara. Mas há quem nos agradeça. A filha de um bombeiro, que tinha sido aqui tratado, veio oferecer-me um extintor no aniversário da morte do pai.”
ENTROPIA
“A urgência foi dimensionada para 21 pessoas e chegam a estar 60”
Carlos Camacho
FILHO QUE ACOMPANHOU MÃE DOENTE DURANTE UMA NOITE NAS URGÊNCIAS HOSPITAL AMADORA-SINTRA
“A minha mãe, de 68 anos, sofre de asma desde pequena. No dia 2 de janeiro, por volta das 18 horas, deu entrada na urgência do Hospital Fernando da Fonseca com uma infecção pulmonar. Estava já a tomar antibiótico e foi lá por indicação do médico assistente. Queria que lhe tirassem uma radiografia, mas nunca chegaria a fazê-la. Teve um ataque de tosse na sala de espera, muito fria, e o corredor estava apinhado de macas, por isso deixaram-na ficar numa cadeira de rodas dentro da urgência. Atribuíram-lhe uma pulseira amarela e à meia-noite ainda não tinha sido atendida. Doíam-lhe as costas, sentia um mal estar tremendo que agravava a respiração.
Por volta da uma da manhã, o estado dela agravou-se e insisti com a enfermeira. Não queria ver a minha mãe a morrer ali.
Mandaram-na para a zona dos inaladores, mas como não havia lugar para ela, esperou mais 4 horas. Passei a noite a pedir auxílio para outros doentes. Quem vem sem acompanhante não tem ninguém que vá chamar ajuda e morre ali. Eram 5 horas e 15 da madrugada quando a minha mãe pôde, finalmente, receber oxigénio. Nessa altura, já nem conseguia ir à casa de banho, tal era o cansaço. Chegou aos inaladores a cambalear. É uma espera desesperada, mas nada disto se deveu a falta de profissionalismo. Eles são poucos e não têm mãos a medir. As auxiliares passavam por nós e queixavam-se de que nem havia lençóis para mudar as camas. Morreu uma pessoa à minha frente. Isto ultrapassa todas as regras básicas da dignidade humana. Com o problema crónico da minha mãe, estamos habituados a esperas, mas nunca como esta. Passamos a ser só mais um e isso choca. A minha mãe sobreviveu. E a quantidade de gente que não consegue?”
ESPERA
“Ultrapassa todas as regras básicas da dignidade humana. Passamos a ser só mais um e isso choca. A minha mãe sobreviveu. E a quantidade de gente que não consegue?”
Francisca Teixeira Lopes
28 ANOS
PNEUMOLOGISTA CENTRO HOSPITALAR LISBOA NORTE
“Faço 12 horas seguidas de urgência e nem tenho tempo de ir à casa de banho, às vezes nem de comer. É um ritmo alucinante e está toda a gente a fazer um esforço extra. Há semanas em que trabalho 60 horas. Não sobra tempo para estudar ou fazer investigação o que é essencial na nossa profissão. Ainda há uma grande solidariedade entre as equipas, mas estamos todos a atingir o limite, o que prejudica todos. Os especialistas não têm tempo para nos formar. Os doentes não recebem o atendimento que merecem. Em alturas críticas, de gripe ou legionela, ficamos sobrelotados. Na consulta, perdemos dez minutos a tentar abrir o programa de passar receitas. E depois é preciso abrir outro programa para as análises, outro para ver a lista de doentes… O computador é muito lento e a informação não é cruzada. Não temos acesso aos dados dos centros de saúde. Há uma espera de seis meses a um ano para uma consulta. Doentes com asma, Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, não podem estar tanto tempo sem serem vistos. Não consigo fazer o trabalho como gostaria e o que faço é a custo pessoal. Quando acabar a especialidade, não sei se terei lugar em Portugal. Poderei emigrar. Mas custa-me pensar que o País investiu tanto em mim para eu depois me ir embora.”
FRUSTRAÇÃO
“Não consigo fazer o trabalho como gostaria e mesmo assim o que faço é a custo pessoal”
José Manuel Esteves
57 ANOS
CIRURGIÃO MAXILOFACIAL HOSPITAL S. JOSÉ (LISBOA)
“Em vários momentos se elaboraram planos de contingência, a pensar em situações de crise. A gripe aparece todos os anos. Não é inesperada, sabemos que vão ocorrer casos. Não há razão para esses planos não serem acionados nesta situação atempadamente. O objetivo seria não deixar acumular tantas pessoas: eu não consigo ver os meus doentes porque não se consegue circular na urgência, com macas por todo o lado. Houve um aumento de 40% de doentes com pulseira laranja. São os muito graves. Este ano, a situação complicou-se ainda mais porque, como o vírus da gripe a circular sofreu uma mutação, está a afetar muito mais gente. E isso já se esperava: há alguns meses que os sindicatos vinham a pedir ao ministério para que se reorganizasse o espaço das urgências e se avaliasse o rácio de pessoal. Não é depois de a casa estar a arder que se tomam medidas. Além disso, continuamos a receber doentes de prioridade verde, ou seja, nenhuma, e que só nos chegam por causa do desinvestimento nos cuidados de saúde primário. Há ainda a questão do material… claro que responde aos parâmetros mínimos, mas antigamente era suíço e agora é sulcoreano. E sim, nos privados, a qualidade do que usamos é superior…”
PLANEAMENTO
“É preciso reorganizar atempadamente. Não é depois de a casa estar a arder que se tomam medidas”
Carlos Cortes
45 ANOS
PATOLOGISTA CLÍNICO CENTRO HOSPITALAR DO MÉDIO TEJO
“Este Centro Hospitalar é um paradigma da dispersão de recursos. Há três hospitais a 30 km uns dos outros: Abrantes, Torres Novas e Tomar. Os profissionais e os doentes andam de um lado para o outro, o que implica mais despesa. Os hospitais têm dificuldade em adquirir material, às vezes falta-nos medicação básica. Nunca sabemos se está disponível aquilo de que necessitamos, porque não há reposição de stock. E acabamos por passar mais tempo a tentar resolver estas situações do que a tratar dos doentes. Hoje, o grande problema dos médicos não é pensar na melhor estratégia terapêutica, mas saber se terá os meios para a levar a cabo. O que se transforma numa grande sensação de impotência. Os doentes não têm o mesmo atendimento nas urgências. Há menos médicos e os casos que aparecem são mais graves. Mas a solução não é reestruturar as urgências, é reforçar os centros de Saúde. Os profissionais emigram ou mudam para o privado não é por razões financeiras. É porque não se sentem bem com o juramento que fizeram.”
INACEITÁVEL!
“Hoje, o grande problema dos médicos não é pensar na melhor estratégia terapêutica, mas saber se terá os meios para a levar a cabo”
Inês Rosendo
33 ANOS
MEDICINA GERAL E FAMILIAR UNIDADE DE SAÚDE FAMILIAR DE SANTA COMBA DÃO
“Criámos esta Unidade de Saúde Familiar numa tentativa de rumar contra a maré e de facto isto parece um oásis, porque nos organizamos em função do doente, da sua disponibilidade: abrindo até às oito da noite ou ao sábado, por exemplo. Mas é cada vez mais difícil cumprir os objetivos que nos são impostos. Falta tudo: médicos, enfermeiros, administrativos. Uns emigram outros reformam-se. Como não temos tempo de ver toda a gente no centro de Saúde, vai tudo parar às urgências. Aqui temos uma população muito idosa, com muitas patologias e em consultas de 15 minutos, como nos impõem, é impossível prestar-lhes a assistência de que necessitam. E até está estudado: quanto mais tempo se dedica a um doente, menos dinheiro se gasta. Eu precisava de estar com os meus doentes. Ouvi-los, poder ajustar-lhes a medicação com calma. Sinto que não lhes presto o melhor serviço.”
LUTA
“Como não temos tempo de ver toda a gente no centro de Saúde, os doentes vão parar às urgências”
Pedro Aguiar
30 ANOS
ENFERMEIRO HOSPITAL S. FRANCISCO XAVIER (LISBOA)
e
João Damásio
47 ANOS
ENFERMEIRO HOSPITAL DE ABRANTES
“O que se está a passar é um alerta para o que temos vindo a dizer, que o sistema não está bem e é o espelho da impreparação. Há quatro anos, havia 96 enfermeiros no meu serviço. Hoje, somos à volta de 60. Em situações de pico, como agora, é impossível dar resposta. Com a crise dos últimos anos, tudo se complicou: os doentes chegam em pior estado. Muitas vezes, atrasam a ida à urgência. Ou então não tomam os medicamentos como deviam e em caso de doenças crónicas descompensam mais depressa. Com menos pessoal, o cenário é mais do que desolador, com corredores e salas cheias de gente que devia estar em observação mas acaba por ficar por ali, sem qualquer vigilância.”
(IN)Segurança
“O sistema não está bem: em situações de pico, como agora, é impossível dar resposta”
“Esta situação arrasta-se há muito tempo: nas urgências, um enfermeiro chega a ter 15 a 20 doentes a seu cargo. Não é possível criar-se qualquer relação terapêutica. Precisamos de reforço das equipas, mas a sério, e não com recurso ao outsourcing por 500 euros por mês. Aqui também faltam camas no internamento. Hoje, havia 33 doentes em macas. Já chegou a haver 78. Ficam por todo o lado, a tapar saídas de emergência, extintores. e pode ser por três, quatro, cinco dias. Até os bombeiros ficam ‘presos’, à espera que lhes libertem as macas. E nós estoirados: há 2500 horas de folgas para serem gozadas pela equipa de enfermagem…”
EXAUSTO!
“Com 20 doentes a cargo, não há qualquer relação terapêutica”
Ana Calado
36 ANOS
NEUROLOGISTA CENTRO HOSPITALAR LISBOA CENTRAL (SÃO JOSÉ E CAPUCHOS)
“Nos últimos anos, saíram do meu serviço cinco médicos, que não foram substituídos, de uma equipa de 12. Os doentes que eram seguidos na consulta ficaram sem médico e não sabemos quando poderão vir a ter. Não há qualquer hipótese de os distribuir pela equipa que sobra, já que estamos completamente sobrelotados, com tempos de espera de nove meses a um ano para uma consulta. É inadmissível! Estamos a falar de doentes com Parkinson, epilepsia. Que deviam ser vistos de três em três meses. Quando o doente me chega ao consultório, vem sempre revoltado, porque esteve demasiado tempo à espera. Gasto os primeiros cinco minutos a explicar o que se passa. E depois só sobram dez minutos as consultas não podem exceder os 15 minutos. O que é muito pouco, se tivermos em conta que muitos doentes têm dificuldade em mover-se ou falar. Mas o sistema não me permite mudar os tempos das consultas. É desumana a forma como tudo isso se processa. Sinto que não dou atenção suficiente às pessoas, só que não tenho forma de o contornar. Na urgência, há macas coladas umas às outras, a ocupar cada espaço vazio. Não conseguimos sequer chegar aos doentes. E há escalas de banco, nocturnas, em que está apenas um interno a trabalhar. No Hospital de São José recebemos doentes de todo o Sul do País e atendemos cada vez mais pessoas porque vários hospitais aqui à volta deixaram de ter urgência. Vêm do Algarve, do Alentejo, com problemas graves, como crises convulsivas, ou síndromes autoimunes, e acabam por ser vistas por um médico que ainda nem é especialista. O nosso trabalho, que devia ser de discussão dos casos, em conjunto, tornou-se solitário. Perigosamente solitário.”
SOLIDÃO
“Há urgências que são asseguradas por um único interno. Um médico que ainda não é especialista. É um grande risco”
José (nome fictício)
25 ANOS
TÉCNICO DE EMERGÊNCIA INEM LISBOA
“No dia 29 de novembro, entrei ao serviço de manhã. Já estava a acabar o turno quando entrou uma chamada para socorrer uma senhora de 67 anos com dificuldade respiratória. Quando recebemos o pedido, ela já estava à espera há uma hora porque não havia ambulância disponível. Levámos mais tempo a encontrar a casa porque a morada não estava certa e o GPS da ambulância não funciona. Nunca funcionou. A família estava revoltada. Se as pessoas estão mais de uma hora à nossa espera, vamos com medo que nos batam. Já aconteceu. A vítima estava crítica. Entrou em paragem cardíaca e pedimos apoio à central. O rádio não tinha rede e só consegui falar 5 minutos depois, ligando pelo telefone da viatura. A central mandou vir uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER). Se tivéssemos mais competências, não se entupiam tanto as urgências. Colocámos o oxigénio e estivemos 40 minutos quando as normas apontam para um máximo de 20 em reanimação. Ao chegar, o médico viu que já não havia nada a fazer. A senhora esperou por ser atendida pelo 112, pela ambulância, pela VMER e ainda esperou pelo delegado de Saúde, para declarar o óbito. Se tivéssemos chegado uma hora mais cedo… Saímos de lá já de noite, com a sensação de que se podia ter feito mais para a salvar.”
ESCASSEZ
“O GPS da ambulância não funciona. Nunca funcionou.”