O que seria, se um dia, as mulheres pudessem ficar prontas para o prazer, sem atender às complexas e misteriosas ligações entre a mente e o corpo? A pergunta vale milhões para o admirável mundo da indústria farmacêutica, na era pós-Viagra, iniciada há quinze anos. Entre a realidade do atrativo negócio das pílulas masculinas (sildenafil, tadalafil e nordenafil) e a ficção do comprimido milagroso para acabar de vez com as frustrantes “dores de cabeça” femininas, vai uma distância tão grande como a que separa os preliminares do clímax.
A avaliar pelas estimativas das disfunções sexuais – a disfunção do desejo hipoativo (HSDD), ou falta de libido, afeta 10 a 15% das mulheres entre os 20 e os 60 anos -, os laboratórios têm pela frente um mercado promissor. Os investigadores, na sua maioria homens, ainda estão a apalpar terreno, mas o agito já começou. A empresa holandesa Emocional Brain – e o seu fundador, o cientista Adriaan Tuiten – foi a primeira a acionar o marketing, após os primeiros resultados dos ensaios clínicos para a Lybrido (o nome de marca da candidata ao título de “viagra feminino”). Em declarações ao New York Times, Tuiten mostrou-se confiante na aprovação da marca pelas autoridades de saúde americanas, ainda este ano, e até 2016 quer ver a molécula no mercado. O comprimido “dois-em-um” para ativar o fluxo sanguíneo na zona genital e, ao mesmo tempo, a recetividade do cérebro delas aos estímulos sexuais, funciona pela ação conjunta da enzima fosfodiestase tipo 5 e da testosterona. Se o plano der certo, a primeira pílula para o desejo feminino promete revolucionar os paradigmas amorosos. Talvez mais, até, do que a pílula contracetiva, que separou o sexo da reprodução, há meio século.
A culpa é do cansaço
As evidências científicas sobre as “drogas do prazer” sugerem que, em matéria de receitas sexuais, não há almoços grátis. António Palha, psiquiatra jubilado do Hospital de S. João, no Porto, e membro da Sociedade Europeia de Sexologia, descodifica: “Duvido que venha a haver uma pílula capaz de atuar em todas as frentes do desejo, a biologia, o sentimento e a emoção.” O médico lembra que os fármacos usados até agora para aumentar a vasodilatação (genital) e a testosterona em pensos transdérmicos (atua nos centros do desejo) acabaram por não dar grande resultado. E enumera uma série de fatores antieróticos, inimigos do desejo: depressão (e efeitos secundários dos antidepressivos), ansiedade, fobias, preocupações laborais, falta de tempo e ambiente para a intimidade. “A maioria das mulheres que atendo tem prazer e orgasmo durante as férias, mas passa a não ter quando volta à rotina e às pressões quotidianas.”
A psicóloga Ana Alexandra Carvalheira, também investigadora do ISPA e autora de vários artigos científicos na área da sexologia, considera que a maioria dos problemas de libido não são disfunções sexuais ou situações anormais. “Uso a metáfora do caleidoscópio: basta um pequeno toque no tubo para a figura se alterar, porque a sexualidade é multidimensional.” A especialista está a par das últimas novidades, da Lybrido e seus concorrentes, ao dispositivo Eros-CTD (à venda na internet), para estimular o clitóris e aumentar do fluxo sanguíneo na zona genital, através de sucção, mas ironiza: “Além de caro (algumas centenas de euros), faz o mesmo que o sexo oral ‘como deve ser’.” E acrescenta: “O desejo diminuído (ou hipoativo) não é sinónimo de disfunção ou doença como a indústria faz crer, para criar uma necessidade e vender tratamentos.”
O mais recente estudo da investigadora, sobre o desejo no masculino, acaba de ser aceite para publicação no Journal of Sexual Medicine. Os resultados dão que pensar: “A falta de desejo, queixa mais comum no universo feminino, está a aumentar no masculino, sobretudo entre os 30 e os 40 anos e em homens jovens, e referem o stresse profissional e o cansaço como principais causas.” É justamente esta faixa etária que mais acorre às consultas de terapia sexual e aconselhamento conjugal, reconhece a psicóloga Madalena Cunha, do projecto Intimamente, da Associação para o Planeamento da Família, lançado há três anos.
Mais erotismo, s.f.f.
Nas últimas três décadas, foi o boom das próteses penianas, a chegada dos comprimidos vasodilatadores para a erecção, e o investimento no estudo das rotas do prazer da mulher que se lhe seguiu. Nos últimos cinco anos, o consumo de medicamentos para a disfunção eréctil continuou a aumentar: de 788 mil embalagens vendidas em 2007, para 1 561 mil, praticamente o dobro, em 2012, segundo o Infarmed. Porém, como frisa o psiquiatra Júlio Machado Vaz, “os medicamentos para melhorar a erecção não estimulam o desejo, como, erradamente, se pensa.” O foco das pesquisas volta a centrar-se no homem, no que o leva a “não estar sempre pronto”. De resto, o mito do macho latino foi a crença mais identificada nos homens, nas pesquisas realizadas pelo SexLab da universidade do Porto (os resultados preliminares serão apresentados no congresso mundial de sexologia, previsto para setembro, no Brasil). Crenças do tipo “já não tenho idade para o sexo” ou “não se deve ter fantasias enquanto se faz amor” ou a escassez de pensamentos eróticos parecem ter um efeito distrativo durante a experiência do ato e comprometer não apenas a resposta mas o interesse sexual em si. Ou seja, não é só uma questão de química, lubrificação e musculatura. E há quem defenda, como a sexóloga canadiana Lori Brotto, que a falta de “apetite” tem menos a ver com libido e mais com o tédio (o feminino, em particular).
Para homens e para mulheres, a programação para o desejo “por controlo remoto” é, por enquanto, uma utopia. Entretanto, os medicamentos que exigem receita médica e não têm comparticipação caminham, paredes meias, com o universo florescente das sexshops. No top de vendas para fins recreativos, abundam cremes, gotas e gel mas também os produtos à base de nitrito de isopropilo, ou Poppers, substância tóxica e inalável, popularizada nos anos oitenta, e que parece estar de volta, com designações e preços sugestivos. À VISÃO, alguns dos estabelecimentos contactados garantiram aconselhar os clientes a fazer uso moderado (a molécula interfere com outros vasodilatadores e aumenta o risco de desmaio, pela diminuição acentuada da pressão arterial). Por ser ilegal para consumo humano, é publicitado como ambientador e, até, indicado para limpar CD e aparelhos de música… A revolução de paradigmas amorosos pode estar mesmo em curso, mas não será apenas querer ser bom (ou boa) na cama, à custa de comprimidos e acessórios mágicos. Por melhor que seja a música, é a alma de quem toca que pode fazer a diferença.
Top 5 da falta de apetite masculino
Cansaço ou fadiga 50,8%
Stresse profissional 49,4%
Passividade da parceira 27,7%
Conflitos relacionais 25,2%
Monotonia 24,2%
Fonte: Correlates of men’s sexual interest:
a cross-cultural study (amostra portuguesa com 2 863 homens)