A eleição de Fernanda de Almeida Pinheiro, em dezembro do ano passado, como bastonária da Ordem dos Advogados (OA) – com 10 539 dos votos (59,26%) contra os 7 245 de Paulo Pimenta (20,41%) –, apanhou o setor de surpresa. A convidada desta semana do Irrevogável, podcast de entrevista da VISÃO, tem um percurso, no mínimo, pouco comum: depois de concluir o 12.º ano, adiou a entrada na faculdade porque a família não tinha possibilidades sócio-económicas. Foi trabalhar, como telefonista, rececionista e secretária de administração. E apenas aos 25 anos ingressou na universidade, em Lisboa. Em 1999, concluiu o curso e passou a fazer da advocacia a sua vida por inteiro.
Na semana em que completa dois meses como bastonária da OA, Fernanda de Almeida Pinheiro recorda a sua eleição como “uma vitória sobre aquilo que é a tradição da elite”. “No ano em que se assinalam 49 anos do 25 de Abril, com a chegada da democracia ao país e o acesso à educação, o que deveria ser normal é pessoas como eu terem a oportunidade de chegar, com maior facilidade, a cargos de liderança. Lamentavelmente, o meu exemplo chega tarde, pois, na maior parte dos casos, continuamos a eleger as mesmas elites para os mesmos lugares”, sublinha.
Fernanda de Almeida Pinheiro descreve a sua “história” como a “da cidadã e do cidadão comum em Portugal, pessoas que tiveram pais com uma vida muito frugal, convivendo com a pobreza profunda, como foi o caso da minha família, mas que se sacrificaram e transmitiram aos seus filhos valores de trabalho, de empenho, de estudo e de perseverança”. “É isto que deve ganhar em democracia. Quem tem de liderar o país, as profissões, são as pessoas que trabalham no seu dia-a-dia, que têm vidas comuns, que chegaram onde chegaram em circunstâncias de igualdade e transparência, e não porque têm um passado familiar de pessoas que exerceram essas profissões”, diz.
“Sociedades de advogados têm de cumprir a lei. É uma questão de direitos humanos”
Com um programa vasto, a nova bastonária vai apostar num mandato (2023-2025) que espera poder concretizar uma “efetiva” melhoria das condições de vida e de trabalho dos advogados, mas também de todos os agentes do “edifício da justiça” portuguesa. Sem papas na língua, Fernanda de Almeida Pinheiro aponta baterias para a situação dos profissionais das grandes sociedades, que “vivem em situação mais precária”, o que lhe tem valido um primeiro braço-de-ferro no cargo.
“Não tenho nada contra as sociedades de advogados, que têm um papel muito importante no país”, refere, enquanto, ao mesmo tempo, alerta para situações que considera “terem de ser corrigidas”. “Quando falamos de um advogado que cumpre o seu horário de trabalho, que presta o seu serviço nas instalações de uma sociedade, que esteja inserido numa sociedade, que trabalhe com os equipamentos dessa mesma estrutura, não estamos falar de uma prestação de serviço, mas de um contrato de trabalho. Existe uma coisa que se chama ‘presunção de laboralidade’. Se trabalhadores nestas circunstâncias, as sociedades têm responsabilidades sociais para com eles”, afirma.
Opinião que lhe tem valido críticas. A bastonária da OA defende-se dizendo que “esta posição não quer dizer que não gosto de sociedades, mas apenas que as sociedades têm de perceber que temos todos de aplicar regras de justiça básica”. “Exijo que se cumpra a lei”, completa.
“O machismo e o patriarcado estão muito enraizados nesta profissão”
Se o ‘choque’ com as sociedades de advogados tornou-se uma novidade, outras críticas a Fernanda de Almeida Pinheiro eram já expectáveis. A terceira mulher a ocupar o cargo de bastonária da OA – a primeira foi Maria Serra Lopes (1990-1992) e seguiu-se Elina Fraga (2014-2016) –, admite que “já esperava” que essa condição lhe trouxesse mais e maiores dificuldades. “O machismo e o patriarcado nesta profissão ainda estão muito enraizados”, aponta.
“A minha vida é sempre muito mais dificultada, e foi durante a campanha, por ser mulher. As pessoas parece que têm sempre mais dificuldade em aceitar as decisões de uma mulher. E isso acontece, por exemplo, quando tomo uma decisão, no âmbito das minhas atribuições, e, muitas vezes, há tentativas para ser demovida, apenas porque essas mesmas decisões estão a ser tomadas por uma mulher”, garante.
Na semana que ficou marcada pelo Dia Internacional das Mulheres, Fernanda de Almeida Pinheiro lamenta que, muitas vezes, “as críticas não são sobre o conteúdo” das propostas, mas “é o tom, a forma como me expresso, os gestos que utilizo, o cabelo ou mesmo a indumentária que uso – e já passei por isso – a serem criticados”. “Até mesmo a forma aguerrida como falo, muitas vezes, é vista como uma postura histérica, quando, na realidade, estou apenas a ser assertiva e a defender as minhas posições no âmbito das minhas funções”, explica. “E isso acontece muito mais às mulheres do que aos homens”, diz a bastonária.
“Os advogados têm de ter os mesmos direitos de todos os outros cidadãos”
Entre os problemas a serem resolvidos, Fernanda de Almeida Pinheiro aponta como prioridade a resolução do problema da Caixa de Previdência dos Advogados (CPAS), que “obriga” os advogados com mais de quatro anos de profissão a descontarem, no mínimo, €267,94, seja qual for o rendimento mensal, embora só garanta pensão e reformas, sem mais qualquer proteção social – como acontece com a Segurança Social.
Em 2021, os advogados, em referendo, afirmaram maioritariamente querer poder descontar para a CPAS ou para a Segurança Social. O tema foi bandeira de campanha da nova bastonária, mas o problema ainda não está resolvido. “Já foi requerida uma reunião conjunta entre a OA e as ministras do Trabalho e Segurança Social [Ana Mendes Godinho] e da Justiça [Catarina Sarmento e Castro], que admitiram ter consciência que este é um problema que tem de ser resolvido”, anuncia Fernanda de Almeida Pinheiro.
A bastonária da OA defende que “os advogados, solicitadores e agentes de execução têm de ter os mesmos direitos de previdência dos demais cidadãos deste país. Têm de ter direito a ter a mesma proteção na doença, na maternidade, no apoio familiar e na velhice, e neste momento não têm. Esta situação tem de ser resolvida e têm de ser encontradas soluções que permitam corrigir esta situação”, afirma, acrescentando tratar-se “de uma questão de direitos humanos e não laborais”
Numa primeira análise aos encontros com os membros do governo, Fernanda de Almeida acredita que “terá [em Catarina Samento e Castro, ministra da Justiça] uma parceira” para encontrar soluções para os desafios do setor.
“Decisões [de Menezes Leitão] no período de gestão não podem ser consentidas”
Já olhando para dentro de casa, ou seja, para a própria Ordem, a nova bastonária tem denunciado o que considera ser “a falta de transparência” do anterior mandato de Luís Menezes Leitão, depois de se saber que este terá dado ordem para promoções e aumentos salariais de funcionários da instituição, quando já sabia que não seria reeleito para o cargo.
“A meu ver, houve coisas que não podem acontecer. Entendo que há regras que têm de ser cumpridas, e, para mim, não faz sentido absolutamente nenhum que uma pessoa, depois de perder as eleições a que concorreu [Luís Menezes Leitão ficou pela primeira volta das eleições], possa tomar estas decisões. Têm de se aplicar as regras. E entendo que, durante o período de gestão, apenas podem ser praticados atos inerentes à gestão – tenho a certeza que aumentos salariais e promoções não podem ser consentidos”, refere.
Já sobre o relatório de atividades do triénio de 2020/22, entregue em janeiro passado pela ex-presidente do Conselho Superior, Paula Lourenço – que indicava existirem prescrições, desaparecimento de documentos, guerras internas e falta de meios na instituição –, Fernanda de Almeida Pinheiro não comenta, por tratar-se de “documento interno”. Ainda assim, admite que há uma casa para arrumar…