Entre o morno e o quente, com episódios de tensão, um ou outro momento insólito e uns pós de circo pelo meio. Assim foi o primeiro debate quinzenal no Parlamento com a presença do novo primeiro-ministro, ao fim de 33 dias de governo, que acabou por chocar mais com os partidos ideologicamente mais próximos do que com os que lhe estão mais distantes.
Luís Montenegro começou por endereçar uma “palavra de solidariedade” a Robert Fico, primeiro-ministro da Eslováquia, hoje baleado, condenando “este ato hostil à democracia”, antes de se apresentar como alguém que “decide e faz”, desfiando as iniciativas do primeiro mês de governação: início das negociações com professores, forças de segurança e no setor da saúde, intervenções na gestão dos fundos europeus “para acelerar as aprovações”, aumento do complemento solidário para idosos, nova estratégia de habitação e, claro, o novo aeroporto, a terceira travessia do Tejo e a linha de alta-velocidade, anunciados esta terça-feira.
O primeiro a interpelar Montenegro foi Pedro Nuno Santos, enquanto líder do maior partido da oposição, que perguntou “com base em que estudo é que anuncia ao País a decisão de aumentar a capacidade do aeroporto Humberto Delgado de 38 para 45 movimentos por hora”. Face à resposta do primeiro-ministro, que se limitou a dizer que o líder do PS “é o primeiro a perceber” a necessidade de aumentar a capacidade do aeroporto, uma insistência: “Não respondeu. Há algum parecer ambiental ou de segurança? O presidente da Câmara de Lisboa aceita esse aumento? Apresente-nos o estudo ou o parecer.” “Esteja descansado que as minhas decisões estão fundamentadas”, respondeu Montenegro.
Pedro Nuno Santos voltou a pedir da palavra, acusando o oponente de ter feito um “grave” discurso “de descalabro das contas públicas”, associado à governação anterior, que foi desmentido pelo Comissário Europeu para a Economia e pelo presidente do Eurogrupo. Montenegro considerou que esta era uma leitura “exagerada”. “Não houve nenhuma narrativa de descalabro das contas públicas. A verdade é que em janeiro tínhamos um excedente de €1.100 milhões, em fevereiro baixou para €700 milhoes e em março foi negativo de €259 milhões. Seria um descalabro se se mantivesse assim ao longo do ano, mas felizmente mudou o governo e as despesas extraordinárias do anterior governo pararam. O governo tem capacidade para chegar ao fim do ano com excedente.”
Pedro Nuno lançou-se de seguida à habitação, listando uma série de medidas do programa Build to Rent que já constavam do Mais Habitação, do governo PS. “O que é bom já estava no Mais Habitação, o que é mau é novo e da sua responsabilidade.” Montenegro respondeu com uma provocação: “Não vou prometer, como o senhor deputado fez que, nos 50 anos do 25 de Abril todos os portugueses vão ter uma casa digna.”
Chega “está mais socialista do que os socialistas”
Coube a André Ventura a intervenção seguinte, para censurar o governo, que tomou posse o mês passado, pela lentidão nas medidas. “Passaram 10, 15, 20 dias, e…”. Imediatamente se ouviram gargalhadas da bancada do PSD. “Não se riam, que quem está em casa não acha graça. As listas de espera continuam a aumentar no País inteiro. Disse que em 60 dias ia resolver tudo. Qual é o plano?” Antes de passar a palavra, Ventura ainda criticou o alívio fiscal, “que nem dois cafés paga”. “Não é um alívio fiscal, é um remendo fiscal. O Chega nunca fará nenhum acordo que não tenha esta premissa: quem ganha menos tem de ser mais beneficiado, porque os ricos safam-se a si próprios.”
Luís Montenegro atacou Ventura, dizendo ser “curioso” que as propostas do Chega nem eram “muito desconformes” com as do governo, mas que hoje tem uma política fiscal mais próxima do PS do que do PSD. “Está mais socialista do que os socialistas.”
Aguiar-Branco teve, entretanto, de admoestar Ventura, que decidiu fazer um dos seus números políticos, falando diretamente para as galerias, em vez de se dirigir aos membros do governo, aos deputados e ao próprio Presidente da Assembleia da República, como ditam os regulamentos. O líder do Chega admitiu ter-se excedido, antes de rematar perguntando a Montenegro o que ia fazer pelos polícias.
“Não tenho sobre mim o culto da personalidade que o senhor tem sobre si”, retorquiu o chefe do governo. “Acredito que nas galerias estão cidadãos que votaram em várias forças políticas, e se o critério que utiliza para aferir a proximidade dos políticos e do povo é quem tem mais votos, quem tem mais legitimidade nesta câmara sou eu, o líder da coligação que ganhou as eleições. Talvez o senhor deputado esteja numa trajetória ascendente, mas um dia vai ser descendente. Quando há um ano eu disse que não fazia um acordo de coligação consigo, o senhor disse que o Chega ia ultrapassar o PSD, mas o povo português deu-nos uma vitória eleitoral.” Quanto aos polícias, “estamos à mesa das negociações neste momento com os seus representantes”. “O senhor nao é o representante dos polícias portugueses.”
O Presidente da Assembleia ainda teve de voltar a repreender Ventura, quando este tentou mandar calar os deputados do PSD – “Senhor deputado, sou eu que dirijo os deputados” –, antes de o líder do Chega pegar num dos seus temas favoritos: a imigração. “Diz que não quer portas escancadas, mas isto continua uma balbúrdia.”
Montenegro prometeu que iria mudar em breve regras da imigração, mas aproveitou para recriminar o Chega pelo seu posicionamento “infantil e imaturo”.
“Luxo no centro, classe média na periferia”
Sem surpresas, o embate menos violento de Montenegro foi com Rui Rocha, ainda que o líder da IL tenha deixado bem vincado o posicionamento ideológico do seu partido, criticando o alívio fiscal, nomeadamente por deixar de fora a classe média/alta, apelidando-o de “miserável”. “Quem faz um esforço no trabalho merece uma compensação justa, mas parece que as pessoas que hoje ganham menos não podem aspirar a mais. Que reformas vamos fazer para que o alívio fiscal possa, no futuro, trazer notícias diferentes?”, questionou, lamentando ser “estigmatizante que quem ganha um bocadinho mais não tenha um alívio.” Rui Rocha pôs ainda em causa a previsão do governo de um crescimento económico de 2,5% em 2025, face às previsões mais recentes apontarem para 1,9% a 2%.
Montenegro sublinhou que o modelo de intervenção fiscal está sustentado numa “baixa generalizada dos impostos”, que inclui a isenção de IMT para jovens até aos 35 anos e de impostos nos prémios de produtividade até ao limite de um vencimento mensal”. “Traz um acréscimo de rendimento a uma franja da população fustigada pelo aumento de impostos. Estamos a valorizar o trabalho.” Disse ainda que mantinha a previsão de crescimento de 2,5% em 2025.
Já Mariana Mortágua voltou ao tema do aeroporto, para tentar saber que contrapartidas haveria para a Vinci, a concessionária, lembrando que o chairman da ANA é José Luís Arnaut, destacado membro do PSD. A líder do BE abordou ainda a habitação, acusando o governo de querer “habitação de luxo no centro das cidades e as classes médias na periferia”, e a imigração: “Há imigrantes com mais de um ano de descontos, mas que não conseguem receber um documento de regularização. O Estado funciona como cobrador de impostos, mas não consegue regularizar estes casos. Propomos que se crie um grupo de missão para regularizar todas as situações no prazo de um ano. Não resolve a xenofobia, mas pode resolver este problema.”
Montenegro garantiu que ainda não havia iniciado qualquer negociação com a Vinci, mas, face à insistência de Mortágua, perguntou qual a solução alternativa para financiar as obras. “Não devemos fazer esta negociação? Deve ser o Orçamento do Estado a financiar as obras?” Quanto a José Luís Arnaut, “não falo com o doutor há muito tempo, nem vou falar nos próximos tempos.”
“Foi uma demissão por cada dez dias”
Paulo Raimundo fez a intervenção mais ideológica da tarde, aproveitando as obras associadas ao aeroporto para culpar o governo de querer beneficiar os “grupos económicos”, num discurso lido. “Tudo serve para o negócio de uns poucos. O governo tem sido rápido nas exoneracões e nos compromissos com os grupos económicos, mas não é assim na resolução dos problemas que os portugueses enfrentam. Não há uma medida que trave o aumento das rendas. Acha ou não que a banca e os fundos imobiliários devem ser chamados a contribuir para enfrentar a situação que o País enfrenta?”
Luís Montenegro reconheceu uma diferença de fundo para o PCP, que “não confia na sociedade, na capacidade do setor privado e social, na iniciativa das pessoas”. “Não é apenas o Estado que conseguirá resolver os problemas de acesso à saúde.” A banca e os fundos imobiliários, acrescentou, “fazem parte da solução”. Na habitação, “atuaremos do lado da oferta e da procura”. “Para isso, precisamos de um sistema financeiro, claro que sim.”
Isabel Mendes Lopes, do Livre, acusou o governo de ter como palavra de ordem “demissão”, listando as “muitas demissões sem se perceber o porquê”, o que “gera uma instabilidade de que o País nao precisa”. Montenegro realçou que as demissões foram apenas quatro, apresentando vários números que, claramente, haviam sido preparados para responder ao PS – que, no entanto, não levantara a questão. “A montanha pariu um rato. Foi uma demissão por cada dez dias. Somos muito comedidos. Em 2016, quando o PS assumiu funções, houve 273 demissões de dirigentes nos primeiros três meses e 28 nomeações em 15 dias. Claro que as mudanças vao continuar a acontecer. Obviamente que, com a mudança de governo, há muitos dirigentes da administração pública que até tomam a iniciativa de pôr o lugar a disposição. Muitos fizeram-no e nós não aceitámos.”
O Livre ainda voltou a intervir, agora através de Jorge Pinto, para criticar o aumento da capacidade do aeroporto Humberto Delgado (“É insustentável que milhares de pessoas tenham a sua saúde e qualidade de vida afetadas pelo ruído”) e ironizar com os previsíveis atrasos nas obras do novo aeroporto. “Que garantias nos consegue dar que daqui a dez anos não voltamos a discutir o aeroporto e não corremos o risco de o renomear aeroporto de Santa Engrácia?”
Seguiu-se Inês Sousa Real, que também apontou ao aeroporto, disputando com o Livre o campo ecológico. “É uma solução ambientalmente desatrosa e financeiramente irresponsável. O clima mudou e as políticas têm de mudar.” A porta-voz do PAN mencionou ainda “a perda de uma das mais importantes bacias de água doce” e “a destruição de 250 mil sobreiros”, devido ao novo aeroporto.
Luís Montenegro disse estar disponível para mitigar os efeitos da infraestrutura, mas não deixou de vincar as diferenças para Inês Sousa Real. “O que deseja é que não haja aviões nem aeroporto, e aí não estamos de acordo.”
“Birra”
Na reta da meta, com as intervenções de CDS e PSD, chegaram, naturalmente, os elogios. “O governo está efetivamente a governar e a cumprir o seu programa, não obstante a coligação negativa dos socialistas do PS e os cheguistas do Chega”, disse Paulo Núncio. O líder parlamentar do CDS, no entanto, entusiasmou-se talvez demasiado e deixou escapar uma frase que provocou o riso no plenário. “O governo fez mais em 30 dias do que o PS em oito longos anos de governação.”
Finalmente, Hugo Soares ocupou a posição de ponta-de-lança de Montenegro, chutando sem freio à oposição, que disse sofrer de “esquizofrenia”, sobretudo o PS e o Chega, que se “juntaram para ver qual dos dois é mais papista do que o papa”. “Os socialistas exigem ao governo que, em 33 dias, resolva o que não resolveram em 8 anos. O Chega fez uma campanha inteira a apontar ao socialismo, a combater o socialismo, e passa a vida a querer governar com o PS. Devíamos estar a falar da grande traição do Chega ao seu eleitorado.”
O líder parlamentar do PSD ainda foi buscar um post de João Galamba ao X/Twitter, que minutos antes escrevera, em comentário ao início do debate, que era “evidente” a necessidade de reforçar a capacidade do atual aeroporto de Lisboa. “O ex-ministro que sucedeu a Pedro Nuno Santos! En-ten-dam-se!”
Na sua intervenção final, Luís Montenegro elegeu o Chega como alvo. “A vossa birra é expressão da vossa imaturidade política. À boleia da vossa birra face ao ‘não é não’, os senhores deputados não conseguem dizer ‘sim’ ao interesse nacional, ao interesse das pessoas. Os senhores deputados só estavam mesmo preocupados com os tachos.”
Aplauso de pé do PSD, ruidosa indignação na bancada do Chega. E Aguiar-Branco teve de voltar a intervir para acalmar a casa.