Uma Europa a uma só velocidade, com todos dentro de Schengen e do euro. No discurso da União, proferido esta quarta-feira no Parlamento Europeu, Jean-Claude Juncker apresentou um sexto cenário para o futuro da União Europeia (UE), com uma integração mais profunda que alguns entendem ser um passo em frente no longo caminho para uma federação europeia. Na lista de prioridades aparece uma união económica e monetária mais forte, com a criação da figura de um novo ministro das Finanças europeu, uma proposta que conta com algumas reticências de Portugal. “Essa expressão pode criar, nos nossos interlocutores, a ideia de que é um ministro das Finanças da Europa que manda no orçamento nacional. Isso não é verdade, nem é esse o objetivo”, defende Augusto Santos Silva, numa breve conversa com a VISÃO. Quanto à polémica da “Europa se estender de Vigo a Varna. De Espanha à Bulgária”, como disse Juncker durante o discurso, o ministro dos Negócios Estrangeiros responde que foi “um mero lapso”, sem consequências.
Portugal identifica-se com o sexto cenário proposto por Jean-Claude Juncker, de a Europa a avançar a uma só velocidade?
O discurso do Presidente Juncker corporiza e desenvolve o quinto cenário, com algumas inovações, dos cenários previstos no Livro Branco. Avançarmos todos, na mesma direção, sempre achamos que era o cenário ideal. Mesmo que não fosse cumprível tal e qual devia ser o nosso referencial, o nosso horizonte. O presidente Juncker propõe que todos possam aderir ao euro, convoca todos a aderir ao espaço Schengen. Portugal não tem nenhuma objeção a isso. E o discurso, em geral, parece muito positivo. Em primeiro lugar porque faz muitas propostas, em segundo porque é muito optimista e em terceiro porque é um discurso mobilizador.
Uma das propostas é a fusão do Presidente da Comissão e do Presidente Conselho…
É uma discussão que não é prioritária. A proposta de fusão dos dois presidentes implicaria mudanças institucionais profundas. Tomamos nota, mas não é aquilo que nos parece imediatamente realizável.
Também é uma crítica à criação de uma figura muito recente, o de Presidente do Conselho, e de como o modelo não está a funcionar.
O Presidente Juncker entende que a experiência da existência das duas figuras não produziu os efeitos positivos na dimensão esperada.
Concorda?
Não é uma questão central, nem prioritária para Portugal. Acompanharemos certamente o debate que se vai fazer. Esse não é o nosso ponto essencial. O ponto principal é haver uma capacidade orçamental própria da zona euro. O Presidente Juncker propõe que ela se faça no âmbito do orçamento comunitário, nos orçamentos da UE a 27. É um problema. A nossa proposta é reforçar a capacidade orçamental da união.
Com que objetivo?
Para que haja mais apoio ao investimento e à convergência e mais capacidade da zona monetária para reagir a choques externos. Nunca se sabe quando precisaremos de enfrentar choques externos, alguns deles assimétricos. E devemos estar preparados para isso. A progressiva transformação do Mecanismo Europeu de Estabilidade num verdadeiro Fundo Monetária Europeu, a constituição de um Tesouro Europeu, a edificação de instrumentos de apoio ao investimento, à convergência e à estabilização macroeconómica quando é necessária… tudo isso nos parece consensual hoje e prioritário.
E a criação de um ministro da Economia e das Finanças?
A consequência deste processo de robustecimento da união monetária há-de ser o robustecimento paralelo da figura que hoje está repartida entre o Presidente do Eurogrupo e o comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros. Percebemos a proposta do Presidente Juncker que é, basicamente, fundir a atual presidência do Eurogrupo com o atual comissário europeu numa única figura em tudo análoga à que existe hoje para a Política Externa. Hoje à senhora Mogherini não lhe chamamos ministra dos Negócios Estrangeiros, mas Alta Representante da UE para a Política Externa e de Defesa. E basicamente é, ao mesmo tempo, vice-presidente da Comissão Europeia e Presidente do Conselho de Negócios Estrangeiros e do Conselho de ministros da Defesa. Faz um papel de coordenadora do esforço europeu em matéria de Política Externa e da Defesa. Não vejo dificuldade, pelo contrário, vejo vantagem que este modelo que provou bem no domínio da defesa e da política externa seja replicado, com as adaptações necessárias, para o domínio do orçamento comunitário e das Finanças comunitárias. Dá coerência. Já tenho muitas reservas, até do ponto de vista comunicacional, a que se lhe chame ministro das Finanças europeu.
Porque?
Basta que se fale com pessoas e ouvir alguns eurodeputados para perceber que essa expressão pode criar, nos nossos interlocutores, a ideia de que é um ministro das Finanças da Europa que manda no orçamento nacional. Isso não é verdade, nem é esse o objetivo. Quem manda no orçamento nacional é o Parlamento e quem o executa é o Governo.
E quanto à criação de um Fundo Monetário Europeu, qual é a posição nacional?
Estamos de acordo. O BCE trabalha no limite das suas competências. E um instrumento que clarificasse – que o BCE faz política monetária e o FME organiza o apoio financeiro aos Estados, quando necessário – é um ponto positivo.
O Presidente Juncker disse, por outro lado, que a Europa precisa de defender os seus interesses estratégicos. Em particular quando o investimento estrangeiro é, muitas vezes, controlado por outros Estados.
O que o Presidente Juncker diz é que deveria haver um quadro europeu que permitisse avaliar riscos para a segurança nacional de certos investimentos extra-europeus. Não é a mesma coisa que dizer que haja um qualquer mecanismo que permita, ao nível dos 27, avaliar se deixa ou não. Não se trata disso.
No discurso, Juncker deu mesmo exemplos, entre eles o investimento em infraestruturas energéticas como o da REN em Portugal. E defende que deve haver “transparência, escrutínio e debate” sobre esses investimentos.
As questões de segurança nacional são umas. E há vastíssimos domínios da economia onde uma espécie de problema de segurança nacional se põe. Esse debate já começou e a expressamos a nossa opinião através do primeiro-ministro. Recomendamos muita cautela na evolução de mecanismos que, rapidamente, se podiam tornar formas protecionistas de intervenção na lógica económica. Mas estamos completamente abertos para esse debate, que começou com o Presidente Macron, sobre a possibilidade e utilidade de criar, ou não, um mecanismo de escrutínio europeu sobre certos investimentos.
Outra ideia de Macron é a existência de eurodeputados de listas transnacionais no Parlamento Europeu, que Juncker parece subscrever. Concorda?
Subscrevo a proposta apresentada ao Parlamento Europeu, cujo relator é aliás um eurodeputado português. É uma solução muito equilibrada, porque permite corrigir alguns problemas de desproporcionalidade que hoje existem, permite que nenhum país perca eurodeputados e deixa margem para avanços no sentido de uma lista transnacional.
O Presidente Juncker disse que a UE estava de “vento em popa”, mas identificou alguns problemas a Leste no cumprimento das regras de um Estado de Direito. Não referiu a Polónia, mas ficou subjacente. Preocupa-o esta tendência?
O Estado de Direito, para um país europeu, não é um opção, é uma obrigação. É uma comunidade de democracias. No nosso caso específico de europeus há uma regra básica que decorre de cumprir com um Estado de Direito: as decisões do Tribunal Europeu de Justiça têm de ser respeitadas. É um processo, com várias fases, e que devemos gerir com prudência.
A ideia que a frase de que a Europa se estende de “Vigo a Varna”, como disse Juncker no discurso, foi apenas uma gaffe geográfica?
Um mero lapso. Não há nenhuma outra interpretação.