A VISÃO falou com o catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa no dia em que o seu livro é apresentado, no Funchal, pelo ex-presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, Francisco Paulino, membro do Conselho de Cultura da UMa, e por Ricardo Cabral, vice-reitor da Universidade da Madeira.
VISÃO : Que sociedade temos hoje?
Eduardo Paz Ferreira: É difícil, hoje em dia, encontrar exemplos de sociedades decentes e justas. Depois da segunda guerra mundial, tínhamos uma geração solidária, que construiu o Estado Social, que num primeiro momento, foi inatacado, consensual. Depois, entrou em crise.
Tínhamos uma sociedade que se preocupava muito com todos os seus elementos e, em primeiro lugar, com os mais fracos e desprotegidos. Depois, instalou-se um espírito de individualismo e, em vez do interesse comum, passou a procurar-se o máximo consumo, um consumo cada vez mais caro e exclusivo e passou-se para níveis de desigualdade nos rendimentos e na riqueza semelhantes aos da revolução industrial.
Mas o mercado mudou…
Sim, a revolução tecnológica também veio ameaçar o mercado de trabalho. As regras são cada vez mais liberais, impostas. Os sindicatos perderam força, há menos negociação coletiva. Pensou-se que um mercado de trabalho mais flexível levasse a mais investimento, mas não há provas empíricas de que assim seja.
As pessoas estão cada vez mais desprotegidas e desorientadas e o Estado não tem vontade ou força para as apoiar. Fizeram-se privatizações ruinosas, parcerias público-privadas, o interesse público e o interesse privado misturaram-se de forma pornográfica – veja o caso de Durão Barroso [contratado para chairman da Goldman Sachs]. A política passou a ser uma estrada para o sucesso individual, e não para o serviço público. Ou veja Paulo Portas [que deixou o Parlamento para assumir o cargo de vice-presidente da Câmara de Comércio]. É uma promiscuidade que não ajuda e leva as pessoas a distanciarem-se da política.
E como é que isso se muda?
Eu sou um otimista. Ter a noção dos problemas também serve para os podermos resolver.
Vivemos o resultado de políticas erradas, conduzidas ao serviço dos interesses económicos. Há que mudar as regras, como diz Joseph Stieglitz no seu livro Rewriting the rules of the american economy, impedir a evasão fiscal – não das cabeleireiras, mas das grandes fortunas. Há que fazer com que as offshores sirvam para aliviar a carga fiscal dos mais desfavorecidos, permitindo ao Estado ter outro papel.
Está na Madeira, que se bate atualmente pela permanência da zona franca…
Na Madeira são uns meninos de coro, comparados com as verdadeiras offshore. A UE tem muitas, no seu seio – o Luxemburgo, a Holanda, o Lichtenstein… Portugal que não seja o primeiro a desarmar, quando há muito mais por onde desarmar.
Em 1930, Keynes dizia que, dentro de 100 anos, os seus netos trabalhariam 15 horas por semana e o resto seria dedicado à cultura, à família, ao lazer. E isto contando já com a evolução tecnológica. Esta deu-se, mas com uma distribuição perversa da riqueza, com muito consumismo, com as pessoas a preferirem trabalhar mais, acumularem stress, e depois correrem para os ginásios para combaterem esse stress.
Haja esperança que se consiga usar os robots, a inteligência artificial, para que os humanos possam redescobrir o prazer da família, dos amigos, da cultura…
Acredita que seja possível? Como?
Com uma mudança de valores, que não se induzem por decreto nem com disciplinas de educação cívica. São precisas lideranças e elites. Vivemos num mundo sem lideranças – o único líder que conheço é o Papa Francisco. Na UE é confrangedor.
É preciso todos fazermos o que devemos. O [José] Silva Lopes contava sempre a tese dos trouxas: havia pessoas sérias que viam os seus vizinhos enriquecerem e os filhos perguntavam-lhes: “pai, porque é que eles vão de férias para a neve? Porque é que o pai é um trouxa?” E os pais acabavam por ceder.
Tem de haver um combate sério à corrupção. É um problema que tem de ser encarado. Seriedade e valores também ajudavam…
É isso que passa aos seus alunos?
Dou Finanças Públicas e Direito Comunitário e gosto muito do debate com eles. Uma vez, dei uma aula sobre ambição. A maioria apresentou pontos de vista razoáveis, defendia que era legítima até ser nociva para os outros. Depois perguntei o que achavam de as notas [na Faculdade de Direito de Lisboa] não passarem dos 12 ou 13 valores, quando a escala era de 0 a 20. Eles riram-se, conformados. E expliquei-lhes que comigo a escala era de 0 a 20 e se houvesse professores para quem não fosse assim, eles tinham de estudar e se bater por isso. O mérito tem sempre de ser recompensado.
Vai adaptar a apresentação à realidade da Madeira, que está a atravessar um momento financeiramente difícil?
O livro é muito geral, nem é sobre Portugal. Mas a questão financeira não é só da Madeira.
A Madeira foi, durante muito tempo, uma sociedade marcada por uma enorme desigualdade, com uma grande miséria. Desse ponto de vista, e com todas as críticas, a Madeira está muito melhor. Lisboa tem é tendência a tratar a Madeira e os Açores como Bruxelas trata Lisboa.
O seu livro é apresentado, justamente, por Alberto João Jardim, que esteve à frente do governo regional durante quase 40 anos.
Este não é um debate que queira fechar numa área ideológica. No Porto, por exemplo, esteve presente Rui Rio…