A poucos minutos das 21 horas, Lisboa está em constante pára-arranca. Dentro de um táxi, tentamos chegar ao Largo do Carmo, local onde há 40 anos os populares ignoraram as advertências do Movimento das Forças Armadas para permanecerem em casa e saíram à rua, para assistir ao derrube da ditadura. No Príncipe Real estão reunidos vários grupos, mas em noite de jogo no Estádio da Luz e em véspera de feriado, é difícil assegurar o motivo daquela concentração. Ao volante, Alda Gil sintoniza outra estação de rádio, não gosta de futebol. Em 1974, tinha 15 anos e frequentava os escuteiros, mas só depois da revolução percebeu que cantava “músicas proibidas” nos acampamentos, como a “Grândola Vila Morena”.
Quase meia hora depois, chegamos finalmente ao destino. A iniciativa “Todos os rios vão dar ao Carmo”, que nasceu nas redes sociais e agregou centenas de cidadãos de mais de 20 movimentos e associações, prometia fazer desaguar no Largo do Carmo, em Lisboa, gente vinda de Cascais, da Margem Sul ou de Vila Franca de Xira. Estão dezenas de pessoas e alguns cravos, mas o movimento é tímido. “Acho que só chegam mais às 22 horas, os outros vêm do Rossio ou do Tribunal Constitucional. São várias correntes”, comenta um amigo com outro. No largo, mãos enrugadas seguram cartazes e jovens vestem rostos de Salgueiro Maia ou máscaras do ilustrador David Lloyd, popularizadas no comic “V for Vendetta”.
No centro está o CoroArt. As músicas têm a idade da revolução, muitos dos estudantes que ali estão nunca as ouviram. O primeiro batalhão de manifestantes chega à hora prometida, sem atrasos à portuguesa. São 22 horas e plataforma 15 de Outubro está em força e munida de tambores grita: “1, 2, 3, abril outra vez!”
Na linha da frente surgem imagens do primeiro e vice-primeiro ministros. Ao lado, duas estrangeiras comentam as figuras representadas e apontam para Paulo Portas, o apelido é dito com português inseguro. “Britânicas?”, “Não, somos holandesas”. Chegaram ontem a Lisboa e apesar de não terem viajado para assistir às comemorações de abril, sabem do que se trata. “Só não sabíamos a data, mas vossa revolução é do conhecimento geral”, dizem, convictas.
De voz lá no alto, questiona-se o porquê da Troika, as vozes multiplicam-se e as pessoas também. São oficialmente centenas. “Isto está tudo cheio de polícias, devem pensar que vamos mandar isto pelos ares”, diz uma civil ao telemóvel. À porta do convento do Carmo colocaram um caixão rodeado de velas. Lá dentro estão cravos vermelhos e brancos, e à volta há quem chore a morte da Constituição. A ideia partiu do Movimento de Revolução Branca que acredita que o Governo, por actos e omissões, perdeu soberania e devia ser punido. Miguel Pessoa Monteiro, integrante do movimento, lembrou que essa é condição do memorando da Troika. Na sexta-feira, 25, o funeral com a constituição da república portuguesa seguirá, numa urna em câmara ardente, até São Bento.
No chafariz, há largos minutos que se gingam as ancas e se sincronizam os aplausos, num momento em que se chega à conclusão que o Largo do Carmo continua pequeno, tal como há 40 anos atrás. Boinas, rastas, gravatas e peles pintadas, ali estiveram todos os rostos. Todos os rios já tinham desaguado naquele mar de gente. O PAN (Partido pelos Animais e pela Natureza) partiu do Largo de S. Carlos. Sofia Costa, porta-voz do partido disse estar na altura de um 25 de abril que nunca houve.
Várias fotografias históricas do 25 de abril estão ali expostas e são um ponto de partida para se discutir o presente e tentar consertar o futuro. Fala-se de salários, de marxismo, de eleições e de emigração. Mas Ema, de sete anos, ainda está longe de todas essas preocupações. Hoje teve aulas na primária mas, segundo a mãe, a esta hora da noite ainda tem muita energia. Para a VISÃO mostrou-se acanhada, mas não teve dúvidas em dizer que o que ali se vivia – não era uma festa, era uma “manifestação”.
Perto da meia-noite, tudo se junta mas os sons dispersam-se. Num extremo canta-se com afinco a “Grândola”, de ‘Zeca’ Afonso, do outro lado, Michael Jackson ecoa das colunas. Se os mais cansados aproveitam as cadeiras da esplanada para se sentar, os mais resistentes seguem o som dos tambores que chegam da fachada do convento. O grupo de jovens artistas sugou uma grande parcela do público que ficou ali ficou, mesmo depois das luzes se apagarem, à meia-noite.
As bombinhas de rua fazem das suas e abre-se mais espaço entre as pessoas. A maioria dos graúdos vai abandonando o largo, rumando ao concerto no Terreiro do Paço, mas ainda há muitos jovens a chegar. No chão, o cartaz “Dantes Pides, agora Podes”, esteve esquecido por uns minutos.
Caminhava-se para a uma da manhã e já não havia vestígios de uma manifestação no Largo do Carmo. Restava uma cerveja e talvez uma conversa pela noite dentro, ao som de “Should I Stay Or Should I Go”, dos The Clash. As cadeiras das esplanadas eram arrumadas e um empregado fazia alongamentos, depois de uma noite mais fatigante do que o usual, naquele largo pacato. Talvez esta noite de 24 para 25 tenha sido precisamente isso: um aquecimento para a revolução de hoje.