Na Aldeia da Coelha, Cavaco Silva tem por vizinhos Oliveira Costa e Fernando Fantasia, homens-fortes da SLN. Um loteamento que nasceu à sombra de muitas empresas e off-shores. A escritura do lote do Presidente da República não se encontra no Registo Predial de Albufeira. O próprio não se recorda em que cartório a assinou. Um dos promotores da urbanização, velho amigo e colaborador de Cavaco, diz que a propriedade foi adquirida “através de um permuta com um construtor civil”.
Depois de uma ação de campanha em Loulé, na passada quinta-feira, 6, Aníbal Cavaco Silva, 71 anos, aproveitou a proximidade para descansar, de noite, na sua casa da Gaivota Azul, em Albufeira. A azáfama da chegada captou a atenção de alguns vizinhos. É sempre assim quando ali “chega o Presidente”.
Vista da rua, a casa de férias da família Cavaco Silva não revela muito. Foi construída (o projeto é do arquiteto Olavo Dias) para preservar a intimidade. Uma parede alta serve de contraforte, e esconde os três pisos com seis quartos (cinco são duplos) e seis casas de banho, a piscina e mais de 1 600 metros quadrados de área descoberta. A rua é, ela própria, interdita a quem não seja morador, nem “pessoal autorizado”. Ao lado da propriedade há uma guarita da GNR, com um guarda em permanência.
Cavaco Silva e a família usam a casa desde o verão de 1999. Mas isto é quase tudo o que se sabe, ao certo, sobre a mudança da célebre vivenda Mariani, em plena confusão de Montechoro, para o lote 18 da Urbanização da Aldeia da Coelha, um seleto bairro de apenas 20 lotes. O registo entregue por Cavaco no Tribunal Constitucional refere a propriedade e identifica a sua matriz (18173). Mas a matriz não consta nem dos registos da Conservatória do Registo Predial de Albufeira, nem do cartório notarial (recentemente privatizado) daquela sede de concelho algarvio.
Torna-se, assim, impossível consultar a escritura pública da aquisição daquele lote. Contactado pela VISÃO, o staff do Presidente da República começou por aconselhar-nos uma consulta aos registos prediais de Albufeira. Já o fizeramos.
Depois de alguma insistência veio a resposta: Cavaco “não se recorda”, responde fonte oficial à VISÃO, da data ou local onde a escritura foi celebrada. Terá sido antes de 1999, uma vez que Cavaco adquiriu apenas o lote de terreno, tendo construído a casa posteriormente.
O único interveniente deste processo que se recorda da transação é o amigo de infância, e ex-adjunto de Cavaco, quando este era primeiro-ministro, Teófilo Carapeto Dias: “A casa foi adquirida através de uma permuta de terrenos com um construtor civil.” Mas Carapeto Dias não sabe quem é o referido vendedor. E Cavaco Silva, de novo perante uma pergunta da VISÃO, optou por não confirmar, nem desmentir, esta informação.
A razão para a boa memória de Carapeto Dias é fácil de explicar. Ele era um dos proprietários, ainda que de forma indireta, dos terrenos da Coelha. Essa história será contada adiante.
O COMEÇO: ‘OFFSHORES’ DE GIBRALTAR
Por agora, convém afastarmo-nos da casa Gaivota Azul e percorrer as três ruas da urbanização.
Ali, a dois passos, fica o lote 15, a casa de Fernando Fantasia, administrador de empresas do universo da Sociedade Lusa de Negócios, como a Pluriholidays e a Opi 92. O lote 14 é do próprio Teófilo Carapeto Dias. O 12, em frente, pertence à Refi, uma empresa de António Cardoso Alves, advogado, sócio de Carapeto. O lote 8, já na rua perpendicular, está registado em nome de Maria Yolanda Oliveira Costa, a ex-mulher do criador do BPN.
Convém, agora, explicar esta coincidência de tantos conhecidos em duas ruas de um aldeamento em Albufeira.
Em 1993, enquanto ainda trabalhava como assessor administrativo no gabinete de Cavaco, em São Bento, Carapeto Dias adquiriu, com outros sócios, duas sociedades offshore que controlavam a Galvana Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda, empresa que promovia a Urbanização da Coelha. Os offshores chamavam-se Griffin Enterprises Limited e Longin Limited e tinham sede no paraíso fiscal de Gibraltar, Reino Unido.
O loteamento já estava em curso, promovido por dois cidadãos dinamarqueses, que trabalhavam para uma empresa de Copenhaga que viria a abrir falência, a Handelsselskabet Danmark. Eram eles Ejler Schmidt (entretanto falecido) e Jens Peter Jepsen (paradeiro desconhecido). Mas o investimento dos dinamarqueses estava num beco sem saída, com dívidas várias e uma ameaça de penhora das Finanças. Aí surgiu uma sociedade, o Grupo Fonseca, de portugueses, que resolveu o imbróglio.
Como? Ficando com os terrenos (alguns já em fase adiantada de construção) em troca da salvaguarda de consequências criminais para Schmidt e Jepsen.
O Grupo Fonseca não era uma sociedade registada, com escritura, sendo antes aquilo a que um advogado chama de “sociedade irregular”. Entre os seus membros estava Carapeto Dias. Cardoso Alves, mandatado pelo grupo, foi à Dinamarca negociar com os credores da empresa falida, o banco Baltica, russo.
Voltou com a posse das offshores que controlavam a Galvana.
Em Portugal, os dinamarqueses (que tinham subtraído dois lotes para si) assinaram uma procuração irrevogável, dando plenos poderes a António Olímpio Albuquerque, do Grupo Fonseca, para agir em seu nome.
Albuquerque, mandatado, negociou a venda dos lotes 14 e 12 a Teófilo Carapeto Dias e à Refi, de Cardoso Alves, por 20 mil contos (100 mil euros), em 1993. Foram estes os primeiros compradores, ainda que, simultaneamente, donos das offshores que controlavam todos os lotes.
Os dois dinamarqueses não gostaram.
Processaram o seu procurador por burla e abuso de confiança. Os processos 151/95 e 135/95 do 1.° e 2.° Juízo, respetivamente, do Tribunal de Loulé, detalham esta história.
De recurso em recurso, os dinamarqueses perderam todas as ações até ao Supremo Tribunal de Justiça. Não havia dúvidas, para a justiça portuguesa, de que estes tinham assinado uma procuração que tornara legal a venda dos dois lotes.
O MEIO: EM NOME DAS FILHAS
Nasceu torta, a urbanização da Coelha.
Mas foi-se endireitando, com alguns ilustres moradores. Teófilo Carapeto Dias admite que fez convites a potenciais interessados. A sua agenda de contactos é bastante rica. Teófilo é o mais antigo amigo pessoal de Cavaco Silva.
Foi parceiro de brincadeiras infantis em Boliqueime (terra natal de ambos), de namoros adolescentes na praia dos Olhos de Água, e da seriedade adulta do Palácio de São Bento, onde era mais do que um vulgar assessor. Mandava mais que os ministros, dizem relatos da época.
Era ele quem conhecia, melhor do que ninguém, os humores do chefe do Executivo. “Há dias”, escrevia a VISÃO, em 8 de julho de 1993, “um ministro mais brincalhão aproximou-se de Carapeto Dias e perguntou-lhe: ‘O que acha se eu contar ao primeiro-ministro aquela anedota sobre o castigo que o São Pedro deu a Madonna, condenando-a a aturar Cavaco Silva no céu?’ Resposta do assessor: ‘Já lha contei eu.'” Foi esta relação “tu cá tu lá” com Cavaco que esteve na origem do convite que lhe fez para adquirir um dos lotes da Coelha.
“Na altura”, lembra Carapeto, “ele não era primeiro-ministro, nem candidato a nada”. De facto, o atual Presidente deixara São Bento, em outubro de 1995, e perdera as presidenciais, para Jorge Sampaio, em janeiro de 1996.
Foi, assim, numa fase de afastamento da vida pública que Cavaco adquiriu, alegadamente através de uma permuta de propriedades, o lote 18. Aí mandou construir a Casa da Gaivota Azul, assim chamada porque uma amiga oferecera a Maria Cavaco Silva, que o colocou à entrada da casa, um azulejo de Júlio Pomar onde figura uma gaivota com asas azuis.
Cavaco estava tão afastado da política que fez, na nova casa, uma inusitada (para o seu feitio) festa de réveillon, em 2000.
Dois anos depois, em dezembro de 2002, o lote 8 era comprado por José Oliveira Costa. Segundo a investigação judicial ao BPN, o banqueiro terá pago a casa com verbas do próprio banco (via Banco Insular de Cabo Verde, um “veículo financeiro” por onde circulavam operações fictícias). Ou seja, sem gastar nada de seu. Mais: terá declarado a compra, na escritura, por 150 mil euros, mas terá pago à anterior proprietária (entretanto falecida), 362 500 euros, poupando cerca de 15 mil euros de sisa.
Mais tarde, já durante o escândalo público que envolveu o banco, em 25 de março de 2008, Oliveira Costa passou para a sua mulher, Maria Yolanda, a titularidade do lote, no processo de “partilha subsequente à separação de pessoas e bens”.
A casa está abandonada, e fechada desde então. Os vizinhos garantem que só voltaram a ver, muitas vezes, Oliveira Costa “na televisão”. Esta não foi a única transmissão de propriedade na Coelha. Teófilo Carapeto Dias, que comprou o lote em 1992, passou, em dezembro do ano passado, a propriedade para a sua filha, celebrando simultaneamente com ela um contrato de “usufruto vitalício”.
O mesmo fez Fernando Fantasia. Com uma diferença. A filha comprou à empresa OPI 92 (que era detida pelo pai e pela SLN), em dezembro de 2007, o lote 15. No mesmo dia, o pai contratualizou o “usufruto vitalício” com a filha. Por 20 mil euros, segundo a escritura. Fantasia, recorde-se, era o acionista das empresas Opi 92 e Pluripart, ambas em sociedade com a SLN, que adquiriram os terrenos da herdade de Rio Frio, Alcochete. Uma aquisição concluída poucos dias antes do anúncio da localização, nas imediações, do futuro aeroporto de Lisboa. O gestor foi chamado a uma Comissão de Inquérito Parlamentar sobre o caso e classificou como “insinuações” a acusação de que teria tido acesso a informação privilegiada sobre a nova localização do aeroporto (antes previsto para a Ota). Entre os defensores de Alcochete estavam vários empresários e dirigentes do PSD.
O FIM: DE 100 A 750 MIL EUROS
Sem contar com a compra de Cavaco Silva, cujo valor se desconhece, por não se saber o paradeiro da escritura, os lotes da Aldeia da Coelha variaram muito de preço.
Para áreas semelhantes, há desde casas compradas por 100 mil euros (Teófilo Carapeto Dias e Cardoso Alves, em 1992) até à casa de Eduardo Catroga (que não faz parte do loteamento inicial, mas confina com a de Cavaco) por 750 mil euros.
Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco, e o negociador do PSD para o último Orçamento do Estado, comprou a sua casa em 2003, ao alemão Adolf Potshke.
Meses antes, Oliveira Costa comprara a sua por menos de metade: 362 500 euros.
A discrepância é ainda mais evidente na avaliação patrimonial que as Finanças fazem das propriedades. A de Catroga vale 52.322 euros. A de Oliveira Costa vale 158.690. A de Cavaco Silva está avaliada em 199.469 euros. A de Fernando Fantasia (que não tem piscina) em 307 440 euros.
Teófilo Carapeto Dias ainda guarda as plantas do seu empreendimento.
Na conversa com a VISÃO, ao telefone, apresta-se a verificar as áreas, ao detalhe.
Interrompemo-lo, quando lia Fernando Pessoa, sentado na casa da Aldeia da Coelha, onde reside. Dispõe-se a falar, ainda que tenha um juízo sobre as perguntas que lhe fazemos. “O objetivo destas coisas é emporcalhar o Cavaco”, diz, agastado com tantas notícias sobre o BPN.
A campanha eleitoral está a ser marcada pelo assunto. Na última vez que por ali passou, na noite de quinta-feira passada, depois de uma ação em Loulé, talvez Cavaco tenha reparado na porta enferrujada do número 8, a casa que pertenceu a Oliveira Costa.