>> Viana do Castelo
Branco é, Viana o põe?
Branco. Um branco sorrateiro, de morder pela calada. Um branco que é “basta”. Porém, silencioso, talvez a usar como arremesso contra a frustração, na intimidade da cabina de voto. Em Viana do Castelo há sinais de agonia, na devoção eleitoral. Aumenta a descrença de quem já passeou a democracia num andor, levando senhoras e senhores ao altar como quem carrega uma cruz. E milagres… nem vê-los. “As pessoas estão fartas do jogo político viciado, muito por culpa das governações à bloco central. A profecia do Saramago anda na boca de toda a gente”, alerta José Escaleira, do Instituto Politécnico da cidade, preocupado com uma ida às urnas que dê real significado à “peste branca” imortalizada pelo Nobel.
Entre duas eleições legislativas (2002 e 2005), a abstenção navegou à tona dos 40 por cento. No mesmo período, os boletins de voto imaculados quase duplicaram no distrito.
Se a isso juntarmos os resultados globais das duas últimas autárquicas, a subida também foi acentuada. Calma… não são ainda almas suficientes para eleger um deputado ou condicionar uma eleição camarária.
Mas o professor Escaleira já vê na folha branca “campo aberto ao aparecimento de salvadores da pátria”.
Talvez um geólogo tenha o dom de perceber e explicar as razões de tais tremores e temores à superfície. Dá-se o caso de haver um, em Viana, ainda por cima director do decano dos jornais de província, Aurora do Lima, bissemanário de “opiniões, memórias e afectos”, fundado em 1855 com varanda sobre uma rua onde habitualmente desfilam peregrinações religiosas e políticas, por vezes em abençoada comunhão.
Bernardo Barbosa recebeu o jornal em herança e não se comove particularmente com o facto. Para ele, o jornalismo está moribundo e o regime não destoa da fotografia. Habituado, por dever do ofício, a ler sinais vindos das profundezas da terra, julga-se também habilitado a ensaiar o seu próprio reportório de farpas e discorrer sobre as consequências de tantas e tão notórias quedas de anjos. “Os casos com o primeiro-ministro e as falcatruas dos banqueiros trazem-nos à memória os vampiros, que continuam a comer tudo e a não deixar nada”, afirma, categórico, sentado na sala nobre do Aurora, vigiado de perto por uns retratos de Ramalho Ortigão e de Camilo, antigos colaboradores do jornal.
Bernardo antecipa um aumento “consciente” dos votos nulos e brancos, nos próximos actos eleitorais. Ele próprio anda mergulhado em indecisões, já seco de ilusões. “Andamos todos um bocadinho fartos desta babugem do poder, das condecorações de família, deste desfile de padrinhos, madrinhas e afilhados.
E o povo detesta gente que fala meiguinho e de mansinho.” Daí às urnas, crê Bernardo, adivinha-se mais um prego “na sustentabilidade do regime democrático, que passa pelos piores momentos destes 35 anos”.
A POUPADINHA E O GASTADOR
Em Viana, reina ainda um PS absoluto. Mas teme-se um abalo sísmico, a dois tempos: 27 de Setembro e 11 de Outubro. Sócrates dificilmente repetirá a vitória de 2005 (três deputados em seis).
Já em matéria autárquica, Defensor Moura, o “mais-que-tudo” da população vianense, que preside à câmara há 15 anos, está de malas feitas para o Parlamento. “Deportado” ou deputado, a versão é ao gosto de cada socialista, dadas as incompatibilidades geradas no PS do distrito por causa do polémico referendo sobre a criação da Comunidade Intermunicipal do Minho-Lima.
Dele, a federação socialista disse o bom e o bonito. Ele, que não veste a pele de tais malfeitorias, vai, pois, na quota de Sócrates, arejar para São Bento, onde, em tempos, se sentou em representação do PRD.
Com escritório na Praça da República, o salão nobre de Viana, o advogado Rocha Neves reconhece aos vianenses, resignado, o direito de condenarem, sem recurso, a prática política: “A clubite ainda funciona, mas não tanto como noutros tempos.
O BE deverá congregar algum voto de protesto e o PCP só não conseguirá o mesmo por culpa própria.
A relutância de gastar beneficia Manuela Ferreira Leite, mas as pessoas olham-na como algo datado.
Sócrates tem um ar mais moderno, mas a ideia de que é gastador e menos honrado prejudica-o”, crê Rocha Neves, temendo que “a degradação da democracia ” entusiasme uns quantos… salazaritos.
“Há muito quem peça mão-de-ferro…”
NA TERRA DO LIMIANO
“Cortaram as asas à democracia como se faz a uma galinha. Queremos voar, mas já não nos deixam”, reclama Luís Tavares, dono do Rampinha, em Ponte de Lima, pequeno santuário de utopias por realizar. Há por ali incontáveis posters e retratos de Che, pinturas com o rosto de Zeca Afonso, um Lenine de perfil, emoldurado, registos da passagem de Camilo Guevara, filho do ícone, por este bar que é uma espécie de fórum local da rebeldia. Sem sectarismos, porém.
No verde da casa, tanto molha os beiços um comunista como o presidente da câmara, Daniel Campelo, CDS de sempre, visita habitual, e que está de saída da autarquia. O barbudo Luís, esse, não pede licença para o seu pensar, cedo ou tarde na noite: “Os espanhóis vêm aqui brincar com os euros e há gente nesta terra que nem dinheiro tem para uma sopa. Sabe o que lhe digo? Eles são os americanos da Europa e nós os mexicanos. E não nos livramos deste fado”, atesta, como quem ensaia o diagnóstico de um país. Entre a cegueira e a lucidez.
>> Leiria
Quando o porco roda é para todos
O oceano enche-se de “carneirinhos” brancos e os dois homens que se cruzam à porta do minimercado, no Largo da Palmeira, concluem que o mar não está grande coisa para a navalheira. O vento deste primeiro sábado de Setembro não afastou apenas aquele tipo de caranguejo.
Parece ter varrido também os veraneantes para fora de São Bernardino, Peniche.
Em contrapartida, trouxe os primeiros sinais de que as máquinas partidárias já se movimentam na campanha eleitoral em curso.
Corrija-se o lapso: em duas campanhas eleitorais.
“Puseram para aí uns panfletos nas mesas, a criticar o presidente da câmara, depois vieram os outros e colocaram papéis a desmenti-los”, comenta, de trás do balcão, enquanto serve cafés, D. Glória, assumida descrente da política e dos políticos. Curiosamente, a guerra de comunicados, contracomunicados e contra-contracomunicados entre o PSD local (terceira força) e a autarquia CDU trava-se em torno de um alegado encerramento de serviços, no hospital, uma medida que depende mais do Governo central do que da câmara e que já foi desmentida pela unidade de saúde…
Horas depois, no centro de Peniche, rodam, como manda a tradição, dois porcos no espeto. A voz de Tony Carreira invade a Praça 5 de Outubro e dois homens tentam cobrir um ecrã, montado num tripé, para que o brilho dos raios solares não impeçam o visionamento do Portugal-Dinamarca. Que ninguém falte à festa do candidato social-democrata, o empresário Luís Ganhão.
A partir de um primeiro andar com vista sobre a praça, três velhotes observam atentamente as andanças. A sala que serve de bar ao centro de trabalho do PCP está para eles como o camarote para os dois rezingões dos Marretas. Os comentários destes três não seriam menos corrosivos. Daquela janela, hão-de dizer, usufruem de uma perspectiva privilegiada sobre “a festa da reacção”.
“Podiam ter trazido a Zita Seabra”, ironiza José Correia Rocha, 75 anos. E se as conversas são como as cerejas, uma garganta humedecida ajuda a soltar a língua. Fala-se de política e da obra de António José Correia, o edil independente eleito nas listas da CDU. Quanto a resultados eleitorais, não se fazem grandes palpites.
“Mas as coisas parecem estar mais para o lado do Tó Zé”, arrisca Lídio Dias da Silva, 73 anos.
ALTA FIDELIDADE
Peniche é uma das poucas excepções que confirmaram a regra de um distrito de Leiria totalmente cor de laranja. Há quatro anos, António José Correia arrebatou a câmara, em nome dos comunistas da terra. Nesse mesmo sábado, em Papoa, entre um trago de água-pé nova e uma dentada numa bifana do suíno sacrificado (mais uma vítima da tradição) para assinalar o aniversário do Grupo Desportivo Independente cuja camisola Correia veste desde os anos 80, o autarca confidencia o desejo de uma “maioria reforçada”, a 11 de Outubro. O sucesso de um candidato autárquico depende mais dele próprio do que da sigla partidária. Mas essa também conta. Em São Bernardino, já havíamos encontrado um homem que põe a fidelidade ao partido acima do resto. É que José Jorge Oliveira, hoje com 61 anos, andou na clandestinidade e ainda se arrepia quando se lembra como largava a propaganda clandestina na estação de Moscavide, Loures.
Noutro extremo do distrito, em Alvaiázere, a sigla é igualmente incontornável. Se o distrito de Leiria nas legislativas de 2005, a única mancha laranja no mapa eleitoral de Portugal continental é o novo Cavaquistão, este município é o seu núcleo mais duro.
Pelo menos, é o que garantem as estatísticas eleitorais. Em 2005, seis em cada dez eleitores votaram em Paulo Tito Morgado, o gestor independente que gosta de vestir Dolce & Gabbana e se recandidata pelo PSD, depois de ter passado quatro anos a mudar literalmente tudo, na “capital do chícharo”.
O edil sente a reeleição assegurada. “Quem está no poder, só o perde por inabilidade”, diz, durante um piquenique organizado na Mata do Carrascal, para festejar o 30.° aniversário do grupo desportivo da terra (outro porco que não sobreviveu à tradição rodará no espeto mais ao final da tarde).
Foi aqui que, nas últimas legislativas, Pedro Santana Lopes obteve um resultado estrondoso: 64,51% dos votos melhor só mesmo na Calheta, Madeira, com 64,77 por cento.
DANÇA DE INDEPENDENTES
Mas se a fidelidade partidária pode ser incontornável, não é incondicional.
A volatilidade existe e marca, sobretudo, quem ambiciona um lugar elegível. Dois dos adversários de Paulo Tito Morgado saíram das fileiras do PSD: o seu vice-presidente, Abel Reis, que se candidata pelo CDS, e Teodora Cardo, uma presidente de junta eleita pelos sociais-democratas, que concorre agora à câmara pelo PS.
E se a dança por aqui é notória, o que dizer da capital de distrito? Em Leiria, a social-democrata Isabel Damasceno, presidente do município desde 1997, tem de ir às urnas sem o apoio da sua concelhia, que propôs outro candidato. Ela, que foi imposta pela direcção de Manuela Ferreira Leite. Isso explica, em parte, a ausência de bandeiras e outra parafernália de campanha quando, este domingo, percorreu as ruas da cidade, seguida por cerca de 200 pessoas, a fim de inaugurar a sua sede de candidatura. Isabel Damasceno rodeou-se à esquerda e à direita, de figuras locais, que, embora independentes, têm sido sempre conotados com outras forças políticas, nomeadamente o PS.
Quem chega a Leiria é recebido, logo numa das primeiras rotundas, por um enorme outdoor em que Isabel Damasceno se apresenta com excesso de maquilhagem e demasiado tratamento de photoshop, sobre um fundo azul. Ao lado, num outro cartaz, um José Sócrates em tamanho gigante dirige sorrisos ao mesmo eleitorado.
Aqui, torna-se claro que o caminho das autárquicas se cruza com o das legislativas de 27 de Setembro. Nos pequenos municípios, a coisa não parece tão óbvia. Em Alvaiázere, na frescura da Mata do Carrascal, tem-se a sensação de que a campanha para as legislativas é secundária. Coisa longínqua, uma espécie de realidade virtual difundida pelos media.
“Perinha” resume a situação em poucas e simples palavras.
“É nas autárquicas que se decide o que é mais importante: quem vai tomar conta cá da terra.”
>> Setúbal
Sim, senhoras presidentes
Entalada entre a banca do PS e um bar de mojitos e caipirinhas, a barraca do CDS/PP tem uma inscrição que promete: “Apoia quem trabalha que é o capital que menos falha.” Na Festa das Vindimas, em Palmela, vende-se muito vinho moscatel e uns quantos petiscos do distrito de Setúbal: tortas e queijos de Azeitão, pinhoadas de Alcácer, travesseiros de Coina… Mas, este ano, também há partidos e candidatos à escolha, no mercado.
Na minúscula rua dos prefabricados das forças políticas, os candidatos quase respiram uns para cima dos outros, não havendo maneira de se ignorarem. A CDU destaca-se, pois tem a vantagem de dispor de um LCD que debita discursos e cantilenas. Ao lado, o PSD acusa a ruidosa vizinhança e passa discreto, apenas com um cartaz e um vaso de lírios. Em frente, o PS impõe uma palavra, em letras garrafais: MUDA. Mas Palmela dificilmente mudará. E Ana Teresa Vicente, a comunista que lidera a autarquia, não se mostra muito preocupada com os adversários.
A grande incógnita de Setúbal passa, antes, por Sines, onde o PCP corre o risco de perder a autarquia. De resto, prevê-se a manutenção do domínio autárquico dos comunistas no “distrito mártir”, como lhe chama Pedro Brinca, 41 anos, director do site de informação Setúbal na Rede, que já entrevistou cerca de metade dos candidatos aos 13 concelhos. A lista tem de tudo: “Há as figuras nacionais; os profissionais da política; os que até gostam bastante do trabalho feito pelo seu opositor; os adeptos das teorias da conspiração, que só lançam suspeitas; e os que não têm noção de nada, mas são voluntariosos.
Há ainda os que só estão ali para marcar presença, para manter a ‘loja’ aberta, pois se a ‘loja’ fecha, perdem os clientes”.
Palmela, com os seus contrastes de campo e área urbana industrializada, é bem um espelho de todo o distrito. Para o Governo vota-se PS; para a autarquia CDU. A CDU detém dez das 13 autarquias (Alcácer do Sal, Grândola e Montijo, este liderado por Maria Amélia Antunes, são os concelhos socialistas). O BE vai crescendo e está à frente do CDS/PP. Aliás, no Barreiro, até o MRPP de Garcia Pereira ganha ao partido de Paulo Portas.
“A política morreu”, anuncia António Caleira, 70 anos, antigo chefe de linha de montagem da Movalto. Está morta, porque António já não acredita em ninguém, à excepção do seu PCP, naturalmente. “Aqui, o único que teria hipótese de ganhar era o Octávio Machado… se mudasse para a CDU. Como ele já está habituado às mudanças…”, diz, na galhofa.
O ex-futebolista e treinador de futebol, “palmelão de gema”, viticultor e fruticultor, garante que não mudou nada e que continua a defender a sua terra. Há quatro anos, com ele, o PSD atingiu uns históricos 17,4 por cento. Agora, sem ele, talvez perca o seu único vereador. Octávio mudou-se para o CDS/PP por causa de tricas partidárias. Diziam que ele era muito manso com Ana Teresa Vicente. O candidato receia os grandes investimentos previstos para o distrito. Diz que o TGV “vai prejudicar as vinhas” e não quer Palmela “transformada numa Amadora”.
“Palmela vai ficar no olho do furacão”, avisa Fonseca Ferreira, candidato do PS. O novo aeroporto de Lisboa, o TGV, a terceira travessia do Tejo, a plataforma logística do Poceirão, novas acessibilidades ferroviárias… a face de Setúbal vai mudar radicalmente.
Para o bem ou para o mal? Eleita há quatro anos com 50,4% dos votos, Ana Teresa Vicente parece inamovível. Tal como Maria Emília Sousa, em Almada, ou, noutro plano, Maria das Dores Meira, na capital de distrito.
DAVID CONTRA GOLIAS
Anda Paulo Pedroso esfalfado, de mercado em mercado, de empresa em empresa, de entrevista em entrevista, e Maria Emília Sousa ainda nem sequer começou a sério a sua campanha. É presidente há 24 anos e vai a caminho do seu sétimo mandato.
Ana Paula Palma, uma empregada doméstica de 49 anos, elucida: “Para o governo, voto PS; para a câmara, CDU. A Maria Emília é uma grande mulher.” Ana Paula gosta de ver os debates televisivos para as legislativas e está sempre do lado de José Sócrates.
Ao lado, Maria Teresa Gomes, 60 anos, empregada no comércio, chama todos os nomes a Manuela Moura Guedes.
Tinham ambas acabado de se cruzar com Paulo Pedroso, que passara com a sua comitiva, distribuindo beijinhos, canetas, panfletos e sacos. À porta do mercado, a caravana socialista pôs uma banda musical a cantar, ao vivo, o Venham Mais Cinco, de José Afonso. A rua é uma prova de fogo para Paulo Pedroso, que foi suspeito de pedofilia, no caso Casa Pia, e esteve preso quatro meses. E essa “difamação” vai pairando na campanha.
Mas para Ana Paula Palma, o que interessa mais é “acudir aos pobres”, elegendo o desemprego como a principal preocupação.
Tal como para Débora Carolina, 24 anos, jovem socióloga à procura do primeiro emprego. Uma do Feijó, a outra de Palmela, ambas habitantes deste “distrito mártir”. Alguém as ouve?