“Começou”.
Os pais de Anna Moshkiuska, 23 anos, puseram fim a uma noite que já estava a ser turbulenta, por volta das 6:00 – “dormi muito mal nessa noite [24 de fevereiro], como se estivesse a sentir que algo estava errado. Os meus pais só me disseram “começou” e eu automaticamente percebi o que tinha começado”. Depois disso e até ao presente – a fila da frente na manifestação de apoio ao povo ucraniano, na rua da embaixada da Federação Russa, em Lisboa – é simples condensar as horas: “a vida mudou. Ficámos agarrados à televisão à espera de notícias” dos avós, tios e primos, que ficaram na cidade natal, Khmelnitsky, a cerca de 500 quilómetros da fronteira com a Polónia, por onde fugiram algumas das mulheres da família com as crianças. Outras não quiseram, como a avó, que tenciona ficar para tratar dos feridos e fazer comida.
A última vez que Anna, a irmã e os pais estiveram na Ucrânia foi no natal de 2019. Por causa da pandemia de Covid-19, não conseguiram lá voltar entretanto e agora é só nisso que pensam. A viver em Lisboa desde os quatros anos, para onde o núcleo familiar se mudou, depois de o pai ter arranjado trabalho numa empresa de equipamentos de ar condicionado, onde ainda está empregado, a estudante de arquitetura da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa sempre pensou em regressar ao seu país de origem. “Nunca ninguém está preparado para uma guerra. Há muitas pessoas a morrerem e eu quero que o meu país seja seguro”, lamenta, num português perfeito. Embrulhada numa bandeira ucraniana, com uma grinalda de flores na cabeça, não desarma durante as três horas que dura a concentração.
Foi convocada, nas redes sociais, pelas juventudes partidárias do CDS, IL, PSD, PS e PAN, e todos os partidos responderam ao apelo (à exceção do PCP e do Chega, o último por não ter sido convidado). A manifestação foi sobretudo um ponto de encontro entre portugueses – que quiseram demonstrar a sua solidariedade para com a segunda maior comunidade de emigrantes em Portugal (são cerca de 40 mil a viver em território português e um quarto já tem dupla nacionalidade) – e ucranianos. Muitos insultos a Putin, muitos “obrigados” para Portugal e pedidos de ajuda, sob a forma de alimentos, dinheiro, armamento. A maioria dos apelos dirigidos à União Europeia (UE), para que não se acanhe em aplicarr sanções reais à Rússia, nomeadamente, retirando o país invasor do sistema global de comunicações bancárias e financeiras SWIFT, que abalaria com efeito imediato a economia russa.
“Eu percebo tudo. Percebo a estratégia da UE e da NATO”, tenta mostrar-se compreensivo Ireneu Teixeira, 47 anos. Nasceu em Angola, mas foi adotado cedo pelos transmontanos e, como é casado com uma ucraniana, chefe de cozinha no Bairro Alto, tem família no epicentro do conflito. Tenta, mas não consegue – “percebo, mas não há nada que me conforte, quando há pessoas a morrer. A UE está a demorar demasiado tempo”. “Não há tempo”, repete incessantemente, motivado por uma guerra que não lhe é distante: a mulher, sob o efeito do calmante xanax, quer ir para o seu país “agarrar numa arma e lutar”; ele também não o exclui. Aqui, não tem descanso. Desde a primeira investida das tropas separatistas, que não consegue dormir, está viciado nas notícias sobre a guerra – “nem sequer consigo ir deitar o lixo fora” – e a imparcialidade que a profissão de jornalista tanto lhe exigiu, desde 1995, “é impossível agora”. É jornalista desportivo, trabalhou no jornal “O Jogo” e, tem feito comentário para a CNN, sem esconder o seu envolvimento. Pois, “quando falo da Ucrânia, estou a ver a cara de todos os meus amigos e da minha família”.
A família vive na região de Chernihiv, no norte do país, onde os russos já hastearam a sua bandeira e de onde chegam imagens de civis a tentar parar tanques com as mãos. “A minha família foi bombardeada hoje. A casa do meu sogro foi bombardeada”, diz. Os sogros não estavam em casa, mas foi para os destroços que voltaram entretanto, disseram-lhe na última vez que conseguiu fazer uma chamada com a família – “não têm como sair de lá, como pedir asilo”.
Para Ireneu Teixeira e para a mulher, o momento é de “uma impotência muito grande”. Mas Ireneu tenciona lutar com as armas que tem aqui e agora: ao longo de todo o tempo que durou o protesto pacífico era vê-lo a percorrer a faixa do início da manifestação para trás e para a frente, vezes sem conta, com o telemóvel ao alto, a fazer um direto para as redes socias com uma mão e com a outra a enxugar as lágrimas com a bandeira da Ucrânia, que traz presa ao pulso. “Eles assim ao menos sabem que não estamos parados, que estamos a pedir ajuda. A minha prima está a no hospital a tratar dos feridos 24 sob 24 horas. Ela já viu o meu direto. Sabe que estamos aqui”.
Perante a impotência, é isso que cerca de quatro mil pessoas (nas estimativas da polícia) fazem na Rua Visconde de Santarém – dizem que estão aqui, cada uma à sua maneira. O músico Salvador Sobral trouxe um pequeno teclado, uma meia azul e outra amarela e cantou, em ucraniano. “Como não sei o que mais posso fazer, vou cantar que é o que sei”, admitiu, antes da homenagem ao povo que recebeu uma torné sua em julho do ano passado. Os portugueses André Pereira, músico, e Bernardo Fonseca, poeta, trouxeram cravos e ouviram a “Grândola” com sotaque ucraniano. “Eu ando sempre com a minha liberdade ao peito. Estou cá para apoiar a paz, a liberdade e estou cá contra a guerra”, explica o segundo e André Pereira remata: “o povo pode não ter acesso ao sistema de sanções, mas tem o poder de coagir e exigir mais”.
Partidos de mãos dadas
A ouvir estes pedidos estiveram elementos de todos os partidos (menos PCP e Chega). A esquerda e a direita portuguesa, num gesto simbólico, deram as mãos para passarem uma mensagem comum: a Rússia tem de ser travada e os ucranianos ajudados. Estiveram ainda presentes os líderes partidários da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo; do PAN, Inês Sousa Real; do BE, Catarina Martins e do Livre, Rui Tavares.
Para além de Putin, quem ficou com as orelhas a arder foi a Europa dos 27, que “tem sido lenta”, notou Catarina Martins. “É importante que, em todo o mundo, os povos se levantem para dizer não à guerra, para dizer que a invasão russa à Ucrânia tem que parar e que é inaceitável”, continuou a bloquista, criticando o espaço dado aos “oligarcas russos para pôr a salvo os seus bens”. Rui Tavares não destoou e deixou duas opções: “ou um tirano decide que países devem existir, ou vivemos um futuro europeu de unidade democrático”. Inês Sousa Real sugeriu começar por pedir ao “Tribunal Penal Internacional que julgue Putin pelos seus crimes” e Cotrim de Figueiredo que se defenda a liberdade, acima de tudo.
Seja pelas redes socias, pelos órgãos de comunicação social ou pelo Presidente da República a solidariedade portuguesa hoje chegou à Ucrânia. Marcelo Rebelo de Sousa esteve ao telefone com o presidente, Volodymyr Zelensky, para reiterar a “condenação veemente” às ações de Putin, que começou a fazer ameaças nucleares, nas últimas horas. Este sábado, o Governo português anunciou também que vai enviar para Ucrânia material militar, atitude que não passou ao lado a muitos ucranianos presentes na manifestação, e que pedem mais um esforço no envio de produtos básicos, como comida e medicamentos.
“Eles precisam muito disto lá. É, por isso, que aqui estou: para dizer ao mundo inteiro que a Ucrânia precisa de ajuda”. As palavras são de Emine, 35 anos, natural da Crimeia, mas a viver em Portugal há oito, desde que a Rússia invadiu o seu país. Lá era jurista, aqui é costureira. As duas filhas, Maria, 8 anos, e Júlia, 6, ao seu lado, visivelmente assustadas com o programa de domingo à tarde, só conhecem a realidade portuguesa, mas a mãe já lhes explicou o que se passa com os seus familiares que vivem na Ucrânia, e com quem Emine não consegue falar há dois dias, e as duas filhas entregaram as suas poupanças para enviar para um país que pouco conhecem, mas que também lhes está no sangue.