Comecemos pelo Partido dos Monstros Chalupas. O seu líder, Grande Uivo da Esperança, dificilmente será um dos 650 deputados que irá sentar-se nos bancos verdes na Casa dos Comuns (a câmara baixa do Parlamento). A mesma sorte terá o Conde Cara de Caixote do Lixo. No entanto, isso não os impede de terem imensa piada e fazerem propostas alucinadas, como a nacionalização da cantora Adele, proibir que os croissants custem mais de uma libra ou que os antigos primeiros-ministros (aqueles que estejam vivos, e há oito) sejam obrigados a cumprir o serviço militar obrigatório. O sentido de humor e a excentridade fazem parte integrante dos britânicos e ninguém pode levar a mal que, entre os 392 partidos registados haja uma diversificada oferta ideológica e de entretenimento para todos os eleitores. Com um pormenor adicional: em campanha eleitoral, e esta durou apenas seis semanas, cada candidato e cada movimento afirma o que lhe apetece porque também não é verosímil que alguma vez entre em vigor, no Reino de Carlos III, a legislação que o principal partido nacionalista de Gales, o Plaid Cymry, gostaria de ver aprovada: criminalizar os políticos que mentem ou fazem falsas promessas. A intenção seria credibilizar o debate político e melhorar a relação entre governantes e governados; sucede que esta iniciativa está condenada ao fracasso e não existe em parte alguma do mundo. Portanto, não é de estranhar que os dirigentes e os militantes do Partido Conservador afirmem que Londres está prestes a ser a “capital planetária da imigração clandestina” e que o Labour continue sem explicar como vai construir 12 mil novas prisões, renacionalizar os caminhos de ferro contratar 6500 novos professores, resolver definitivamente as reinvindicações dos médicos em início de carreira, erguer 1,5 milhões de casas de baixo custo, ou fazer com que a sexta maior economia do mundo cresça a um ritmo de 2,5% ao ano até ao final da legislatura.
Assim sendo, como é que alguém pouco conhecido, com uma taxa de popularidade de 30% e com quase metade da população (49%) a considerar que ele não é de fiar – os dados são da consultora YouGov – consegue ser primeiro-ministro? Como é que um indivíduo discreto, tímido, sem pinga de carisma e descrito há cinco anos pela Economist como um “chato” [“dull”], se prepara para conquistar uma maioria histórica para o Partido Trabalhista e impor uma derrota humilhante ao Partido Conservador, a formação criada há quase dois séculos por Robert Peel e que já foi também comandada por Benjamin Disraeli, Winston Churchill ou Margaret Thatcher?
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Antes das respostas relacionadas com o escrutínio desta quinta-feira, 4 de julho, vamos às origens da misteriosa e polémica personalidade, filho de um operário e de uma enfermeira. Nascido há 61 anos num bairro modesto do sul de Londres, os pais, ambos militantes do Partido Trabalhista, chamaram-lhe Keir Starmer, para homenagearem um dos fundadores do Labour (James Keir Hardie). Apesar de ser muito bom aluno e ter um excelente ouvido para a música (aprendeu a tocar violino, flauta e piano), para desgosto dos progenitores, o pequeno Keir tinha uma paixão incontrolável pelo desporto rei. O seu sonho era jogar na equipa do Arsenal. Até que um dia, quase no final da adolescência, percebeu que o seu futuro não estava no futebol. Primeiro elemento da família a ingressar na universidade, fez toda a educação em escolas públicas e, após se formar em Direito, em Leeds, ganhou mais uma bolsa para continuar a estudar em Oxford.
Especula-se que a personagem de Mark Darcy, do filme, Diário de Bridget Jones, (interpretada por Colin Firth) é inspirada em Keir Stermer
Em 1987, o jovem doutor Starmer inicia uma brilhante carreira como jurista, envolve-se nas grandes causas sociais contra a revolução neoliberal de Thatcher, especializa-se em direitos humanos e assume – por norma, pro bono – a defesa de vários condenados à pena de morte, nos países da Commonwealth. A sua reputação chega ao conhecimento de uma jornalista, Helen Fielding, que decide lançar-se nas lides literárias. Quando ela publica o Diário de Bridget Jones, depois adotado ao cinema e protagonizado por Renée Zellweger, especulou-se que a personagem de Mark Darcy (interpretada por Colin Firth) era inspirada em Keir Stermer. O advogado da vida real era solteiro e as suas proezas nas salas de audiência já eram relatadas nos tablóides, mas nunca ninguém confirmou que fosse ele o desajeitado galã a inspirar um dos maiores êxitos hollywoodescos do início do século. Keir deixara para trás as simpatias trotskistas e era um leal funcionário de sua Majestade Isabel II. Uma biografia não autorizada, The Starmer Project – A Journey to the Right (O Projeto Starmer – Uma Viagem para a Direita), da autoria de Oliver Eagleton, acusa-o de ser uma figura ambiciosa e ambivalente, que foi igualmente capaz de representar agentes acusados de violência policial, soldados envolvidos em crimes na Irlanda do Norte e espiões do MI5 que sequestraram indivíduos suspeitos de terrorismo com o propósito de colocar estes últimos nas masmorras de Guantánamo. A verdade é que os bons ofícios do causídico nascido em Southwark, junto ao Tamisa, lhe permitiram chegar ao topo do Crown Prosecution Service (o equivalente a Procurador Geral da Coroa), cargo que desempenhou entre 2008 e 2013, sendo logo a seguir recompensado com o título de cavaleiro da “honorabilíssima Ordem do Banho”, pelo então príncipe de Gales (atual rei Carlos III), razão pela qual pode e deve ser tratado como Sir. Aliás, é curioso como a generalidade da imprensa britânica, do Times à Economist, passando pelo Sun e pelo Financial, o trata com toda a deferência e, como manda a tradição mediática anglosaxónica britânica, aconselhou os eleitores a voltarem nele – quanto mais não seja por ser um mal menor.
O resultado está à vista. Resultado. Salvo qualquer surpresa ou cataclismo de última hora, o novo primeiro-ministro vai chamar-se Keir Starmer, o Labour deve duplicar o número de deputados e obter cerca de 420 lugares (bastam 326 para a maioria absoluta), enquanto os conservadores se habilitam ao pior desaire eleitoral das últimas décadas.
Ou seja, amanhã, sexta-feira, por volta da hora do chá, já depois de ter ido ao Palácio de Buckingham e estar devidamente instalado com a mulher e os dois filhos menores no número 10 de Downing Street, deve ter a sua equipa ministerial definida e cumprir o seu ritual de desligar das tarefas oficias, para se dedicar por inteiro à família.
Durante a campanha, entre outros mimos, os tories acusaram-no de querer ser um chefe de Governo a tempo parcial e, à moda de Trump, puseram-lhe o cognome de Sir Sleepy (Senhor Soneca, numa tradução livre e eufemística).
Muito provavelmente um sinal de desespero do partido que governou ininterruptamente desde 2010 e cujo balanço está longe de ser famoso. “Os sucessivos governos conservadores fracassaram naquele que deve ser o objetivo de qualquer administração – deixar o país em melhor estado do que aquele em que o encontraram”, escreveu o Daily Telegrah. A sorte dos tories é de tal forma previsível que o chefe de campanha do partido e vários dirigentes apostaram quantias mais ou menos avultadas na própria derrota, dando origem a uma investigação judicial que envolve até um dos guarda-costas do Rishi Sunak. Como uma desventura nunca vem só, Sunak pode ficar na história como o único primeiro-ministro em funções a perder o seu círculo eleitoral e não conseguir sentar-se no Parlamento.
As estatísticas podem ser cruéis: 7,6 milhões de doentes nas listas de espera do NHS; 4,5 milhões de crianças na pobreza; 2,5 milhões de pessoas que dependem de três mil bancos alimentares para não passarem fome; recuo de 4% do PIB devido ao Brexit; salários estagnados e inferiores aos que se praticavam há década e meia; os impostos mais elevados desde o fim da Segunda Guerra Mundial e um rendimento anual dos contribuintes que é, em média, 12 mil euros mais baixo do que acontece em França ou na Alemanha. Keir Starmer assevera que não aumentará a carga fiscal das famílias, que vai investir na saúde, na educação, na segurança e nas infraestruturas, e que os seus exemplos são Clement Atlee (primeiro-ministro entre 1945-1951) e Harold Wilson (1964-1970 e 1974-1976), dois dos melhores governantes na história do Reino. O mais provável é que não tenha sequer direito aos costumeiros 100 dias de estado de graça.