Por toda a Internet surgem imagens daquela que se tornou a realidade ucraniana: a guerra. Sejam fotografias do exército em combate ou de civis nos esconderijos, o impacto das imagens é imediato e a partilha uma resposta recorrente. Contudo, nem todas as imagens são verdadeiras: muitas são, pelo contrário, manipuladas, ou de tempos (e mesmo contextos) diferentes.
Em 2013, o fotógrafo e investigador da London School of Economics Lewis Bush, focado no impacto da inteligência artificial no fotojornalismo, desenvolveu um conjunto de fotografias sobre uma invasão russa fictícia, segundo explicou num comentário escrito no The Art Newspaper.
As fotografias foram recriadas a partir de um videojogo e tinham como objetivo tentar perceber a forma como as notícias falsas eram divulgadas e ganhavam dimensão no meio online. Antes de lançar o projeto, Bush mostrou as várias imagens a um colega que assegurou ser “um experiente fotógrafo de conflitos” e “ele achou que eram fotos reais, tiradas numa zona de guerra”.
Embora o projeto tenha acabado por não ser lançado, uma vez que o autor não se sentia “confortável a criticar a desinformação quando estaria potencialmente a contribuir para a mesma”, as fotografias que desenvolveu ajudaram a comprovar o poder da informação falsa e como é fácil, mesmo para profissionais, confundi-la com a verdade.
Num mundo cada vez mais digital, o acesso a ferramentas de manipulação de imagem é também cada vez mais facilitado o que, aliado a uma facilidade crescente de partilha, pode resultar numa ameaça à verdade. De acordo com o relatório “Data never sleeps 5.0” da DOMO, 300 milhões de fotos são publicadas na Internet todos os dias. Será que conseguimos apontar o que é verdadeiro e o que é falso?
A invasão russa à Ucrânia é a primeira guerra a acontecer no continente europeu durante a era digital e, portanto, tem sido vivida de forma muito diferente dos conflitos anteriores. Hoje, estamos mais próximos dos eventos e conhecemos a realidade de outra forma. Com as atualizações ao minuto, as imagens que correm o mundo e os próprios testemunhos das vítimas publicados online estão agora nas palmas das nossas mãos.
Atualmente, não só somos detentores de uma grande quantidade de informação, como a experienciamos de maneira diferente. Sabemos o que está a acontecer, mas também temos a oportunidade de ver, através de fotos ou vídeos, esses acontecimentos. O impacto que a guerra entre russos e ucranianos tem suscitado no mundo parte também dessa experiência visual que aproxima as pessoas. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas o que acontece quando o que nos conta é mentira?
Ver para crer?
Segundo a autora do livro Visual Literacy: Learn to See, See to Learn, o ser humano tem uma melhor e mais imediata resposta aos impulsos visuais. “A menos que as nossas palavras, conceitos e ideias estejam presos a uma imagem, eles vão entrar por um ouvido, navegar pelo cérebro e sair pelo outro. As palavras são processadas pela nossa memória de curto prazo onde só podemos reter cerca de sete bits de informação (…). As imagens, por outro lado, vão diretamente para a memória de longo prazo, onde são gravadas de forma permanente”.
O ser humano parece, portanto, estar mais vulnerável às imagens, o que pode ser uma das justificações por detrás do grande fluxo de fotografias focadas no conflito russo-ucraniano a circular online. Ainda assim, e embora tenhamos tendência a procurar informação visual, é importante garantir que essa informação é verdadeira até porque no mundo do digital e do online até as imagens podem mentir e o mote de ver para crer já não é suficiente.
Um exemplo usado por Bush é o do Fantasma de Kiev, uma figura que tem ganhado muita dimensão nas redes sociais pela sua suposta coragem ao combater o exército russo. A identidade do piloto não é conhecida, sabe-se apenas que é um ucraniano que terá derrubado seis aviões militares russos apenas nas primeiras horas do conflito. Várias fotografias dessa misteriosa figura têm corrido a Internet, acompanhadas de aplausos e agradecimentos ao piloto, tendo sido mesmo considerado um “herói” num dos vídeos mais divulgados nas redes sociais, no qual é possível ver um avião, supostamente pilotado pelo Fantasma de Kiev, a cruzar o céu.
Embora a ideia de um herói num tempo de necessidade seja boa, alguns dos vídeos utilizados na sequência partilhada pela página “Ukraine” são, na verdade, retirados do videojogo Digital Combat Simulator World, uma experiência interativa de simulação de voo. Apesar de não ser uma representação fidedigna da realidade, o tweet conta com mais de 13 mil partilhas e 79 mil gostos. O vídeo foi, inclusive, partilhado pelo próprio Ministério da Defesa Ucraniano com a descrição “MiG-29 (avião alegadamente pilotado pelo Fantasma de Kiev) das Forças Aéreas das Forças Armadas destrói o sem igual Su-35 dos ocupadores russos”.
Uma outra foto que, supostamente, revela a identidade do Fantasma tem também sido amplamente partilhada nas redes sociais. Apesar de ter tido um grande número de partilhas, já foi provado que a foto não é real, mas antes o resultado de uma manipulação feita com recurso ao recorte e sobreposição de imagens, visível pelas linhas irregulares que definem o pescoço do homem identificado como o Fantasma.
Neste caso concreto, a imagem foi alvo de alterações feitas no computador não correspondendo, por isso, a uma representação transparente da realidade. No entanto, mesmo quando são usadas fotografias verdadeiras de eventos reais, basta que estas sejam colocadas fora de contexto, acompanhadas, por exemplo, de uma descrição enganadora para contribuírem para o fluxo de desinformação que percorre a Internet.
Um exemplo disso é um vídeo partilhado no Twitter que alega representar a destruição de equipamento russo em solo ucraniano, mas que corresponde, na verdade, a filmagens de 2020 da Síria, segundo a BBC. De facto, não seria correto afirmar que as imagens – entretanto já removidas da rede social – foram manipuladas, mas uma vez que estão a ser usadas no contexto errado, podem ser consideradas falsas.
O contexto prova ser, portanto, também muito importante e, ao averiguar se uma fotografia é ou não verdadeira, não basta confirmar se terá sido alvo de algum tipo de manipulação, mas também se está a ser utilizada no contexto certo.
No vasto mundo da Internet, existem tanto imagens falsas de supostos avanços do exército ucraniano, como existem também do russo e, embora todas elas contribuam para o fluxo de desinformação que existe sobre este conflito, algumas podem ter uma origem diferente. No seu texto, Bush refletiu sobre as razões que podem dar origem à desinformação e à sua partilha. Dessa partilha de informação falsa sobre o misterioso Fantasma de Kiev – cuja existência ainda não foi confirmada – , o fotógrafo retirou uma “lição importante”: “Nem todos os exemplos de desinformação são obra de atores malignos ou bots criados por trolls. Muitas vezes, as pessoas estão simplesmente a procurar uma história empolgante e querem partilhá-la com os seus seguidores”.
Algumas das informações falsas em torno do conflito russo-ucraniano tornaram-se polémicas devido a acusações de pretenderem ser uma forma de propaganda e, embora talvez o possam ser, Bush refere que nem sempre é esse o caso. Ainda assim, e seja qual for a intenção, o fotógrafo sublinha que “espalhar fotografias mal atribuídas e histórias falsas torna mais difícil encontrar e partilhar fotografias e vídeos de eventos importantes e verificáveis”. Numa época que já foi nomeada como sendo a era da desinformação, torna-se crucial saber identificar o que é ou não verdade.
Como pode identificar informação falsa?
Antes de partilharmos uma imagem ou vídeo, devemos primeiro descobrir a sua origem e certificarmo-nos da sua veracidade. Eis algumas etapas que ajudam a impedir a partilha de desinformação:
-Procurar pormenores dos vídeos e imagem
Todos os vídeos e imagens são acompanhados por um conjunto de informações que nos permite saber quando e como esses ficheiros multimédia foram desenvolvidos. Para verificarmos esses dados, podemos fazer o download do ficheiro e, através do Adobe Photoshop, por exemplo, examiná-lo. Existem também, em alternativa, programas de metadata online que acedem a estes pormenores automaticamente.
É importante ter em atenção que algumas redes sociais como o Facebook apagam, muitas vezes, este tipo de pormenores das fotos e vídeos que são publicadas nas suas plataformas. Nesse caso, podemos fazer a requisição do ficheiro original ou recorrer a sites de fact checking e verificar se já terão analisado a imagem ou vídeo em questão. Alguns exemplos de sites a visitar: Australian Associated Press, RMIT/ABC, Agence France-Presse (AFP) e Bellingcat.
-Técnica de reverter a imagem
Esta técnica, conhecida em inglês como “reverse image search”, permite verificar outras plataformas onde os ficheiros já tenham sido previamente publicados, no caso de se tratar de uma imagem ou vídeo reutilizado. Para colocar em ação esta técnica basta recorrer ao Google Images ou ao TinEye.
No entanto, algumas estratégias são, por vezes, aplicadas numa tentativa de enganar estes motores de busca como inverter a imagem em qualquer direção.
-Olhar com mais atenção
Ao ver qualquer vídeo ou imagem, procure olhar com atenção para detalhes como as horas que surgem nos relógios de quem aparece ou a direção da luz de forma a verificar se corresponde à hora do dia que é apontada. Isto também permite perceber se o ficheiro foi manipulado ou reutilizado.
-Onde? Quando? Porquê? E quem?
Fazer estas perguntas a si mesmo pode ajudar a chegar a conclusões importantes sobre a imagem ou vídeo em causa. Onde foi tirada a foto/vídeo? Quando foi tirada a foto/vídeo? Porque é que foi tirada a foto/vídeo? Quem tirou a foto/vídeo?
Se não tiver certezas de algumas das respostas a estas perguntas, não partilhe as informações, principalmente se não tiverem sido publicadas por uma fonte oficial e confiável como é o caso de uma organização verificada.
-Interagir
Caso encontre de facto conteúdo manipulado ou colocado fora de contexto, deixe nos comentários as suas suspeitas ou contacte uma das organizações de fact checking.