A Administração Biden, que entra em funções esta semana, tem vários desafios nas suas mãos – unir um país dividido depois de um mandato turbulento de Donald Trump, lidar com os impactos devastadores da pandemia da Covid-19 e restabelecer as relações com antigos aliados do país são apenas alguns exemplos dos temas que vão dominar a Casa Branca nos próximos meses.
Em entrevista à VISÃO, Allan Katz, antigo Embaixador dos EUA em Portugal entre 2010 e 2013, nomeado pelo Presidente Barack Obama, falou dos grandes desafios internacionais e domésticos da Administração Biden, assim como do futuro do movimento de Donald Trump. O Professor de Ciência Política no William Jewell College, no Missouri, que continua a passar temporadas em Lisboa, onde mantém uma casa, realçou a importância em perceber o futuro do Partido Republicano, sublinhou o internacionalismo da nova Administração Biden e ainda levantou a hipótese de uma possível visita do novo presidente americano a Portugal este ano.
Ao longo da sua campanha presidencial, Joe Biden afirmou que pretendia “restaurar a alma da América.” Com um segundo processo de impeachment a Trump em andamento, esta tarefa de unir a nação não fica dificultada?
O impeachment cria um novo conjunto de desafios para Biden, mas também representa algo importante para os próprios senadores Republicanos, que vão ter de decidir o futuro do seu partido. Nenhum senador se vai poder esconder, todos vão ter obrigados a tomar uma decisão: ou o Partido Republicano é pro-Trump, ou anti-Trump. Vários Republicanos reclamaram durante semanas que as eleições tinham sido roubadas quando, na verdade, eram eles que estavam a tentar roubá-las. Mesmo depois da invasão do Capitólio, na qual os senadores correram verdadeiro perigo de vida, 121 Republicanos votaram contra os resultados do Colégio Eleitoral do Arizona e 138 contra os da Pensilvânia, na Câmara dos Representantes. Oito senadores Republicanos votaram contra os resultados no Congresso. Ou seja, temos um grupo de pessoas que estão disponíveis a lutar pelo Trump, em qualquer cenário. No entanto, ao contrário do primeiro impeachment, ninguém está a defender que a invasão ao Capitólio não é uma ação condenável – os defensores de Trump apenas consideram que “como falta tão pouco tempo de mandato, um impeachment vai ser apenas disruptivo.”
A multidão que invadiu o Capitólio era composta por cidadãos que seguem cegamente várias teorias da conspiração. Como é que a Administração Biden planeia contrariar esta contrainformação?
Temos de ter em conta que estas teorias da conspiração foram, em grande medida, iniciadas e legitimadas pelo próprio Presidente dos EUA, o que lhes garante um certo grau de credibilidade. O simples facto de Trump deixar de ser Presidente retira este grau de confiança. Por outro lado, várias empresas dos EUA que apoiavam candidatos Republicanos vieram afirmar que retirariam o seu apoio a políticos que subscrevessem os pedidos de anulação das eleições – passou a haver consequências políticas para quem alimentasse estas teorias.
Mas as teorias da conspiração mantêm-se vivas entre os seguidores de Trump…
Eu divido a base eleitoral de Trump em três grupos. O primeiro grupo é composto pelas pessoas que pertencem a esses grupos de teorias da conspiração, de supremacia branca, mas que não costumavam participar no processo político dos EUA – até que Trump entrou em cena e alimentou estas teorias, trazendo estas pessoas para o processo pela primeira vez. O segundo grupo é constituído pelos “rejeitados da globalização”, que são pessoas com queixas justificadas, cativadas pelo discurso antissistema de Trump. Por fim, temos os verdadeiros Republicanos – pessoas que sempre votaram nesta Partido. Como, cá em Portugal, também temos pessoas que sempre votaram no PS ou PSD, independentemente do líder. Tendo em conta os eventos recentes no Capitólio, Trump pode vir a perder esta última base, dos Republicanos. Agora, o desafio de Biden é dar resposta aos problemas do grupo de pessoas deixadas para trás pela globalização, através da introdução de planos económicos eficientes.
Esses planos económicos passam por romper com as políticas protecionistas de Trump e reabrir o mercado norte-americano ao mundo?
Em geral, Biden terá uma abordagem internacionalista. A conversa com a Europa vai mudar, acredito que vá ser mais construtiva. A China, por outro lado, é um caso complicado para os EUA – a forma como Biden lida com a China pode ser a sua marca política internacional mais importante.
Trump apresentou uma postura combativa com a China. Esta será a abordagem de Biden?
Trump não foi o primeiro presidente que compreendeu que a China não se estava a portar bem. Em 2001, a esperança era que, com a entrada na Organização Mundial de Comércio, a China se portasse melhor – e, apesar de terem melhorado, não foi o suficiente. Ainda assim, Biden não será tão beligerante como Trump. Vai ser pragmático na relação com a China, mas também conseguirá ser muito duro. De certa forma, esta postura de Trump nos últimos anos pode ajudar Biden nos seus esforços diplomáticos.
Essa diferença de posturas dos dois líderes também poderá ajudar Biden nos seus esforços diplomáticos no Médio Oriente, em países como a Arábia Saudita e Israel?
Ao contrário de Trump, acredito que Biden não vá basear a sua relação com a Arábia Saudita na troca e venda de armas. Este país tem funcionado como um contrapeso para o Irão na região, por isso os esforços diplomáticos de Biden terão de ser calculados. Quanto a Israel, Netanyahu [Primeiro-Ministro de Israel] tem eleições à porta. Caso perca, acredito que será possível haver progressos diplomáticos em diferentes áreas entre os dois países. Independentemente disso e dos vários acordos celebrados por Trump com Israel, Biden sempre teve uma relação forte com o país – o Governo israelita vai confiar nele. E, apesar de Trump ter mudado a embaixada para Jerusalém de forma pouco sensata, acredito que esta se vai manter lá com a nova Administração.
E Biden vai assumir pessoalmente estas negociações internacionais?
Penso que o único entrave a Biden realizar mais viagens é a urgência em resolver a situação da Covid-19 a nível interno, nos EUA. Fala-se de uma viagem à Europa nos primeiros seis meses de mandato – talvez com uma passagem em Portugal, uma vez que está a presidir ao Conselho da União Europeia. Também ficaria muito surpreendido se não visitasse Israel no seu primeiro ano, como a maioria dos Presidentes dos EUA tem feito.
Trump criticou várias vezes a União Europeia e a NATO, em particular pela falta de investimento na segurança. O que é que a Europa pode esperar de Biden?
Biden terá uma abordagem totalmente diferente de Trump – apesar de a falta de investimento dos países europeus em segurança já ter sido realçada anteriormente, no mandato de Obama. Creio que Trump nunca percebeu realmente que esse dinheiro não ia diretamente para a NATO. Assim, Biden vai sublinhar a importância do artigo 5º do tratado da NATO [auxílio mútuo entre Estados-membros] e vai trazer os EUA de volta ao Acordo de Paris nas primeiras vinte e quatro horas do seu mandato. A Europa era o primeiro sítio para quem os EUA ligavam quando havia uma crise no mundo – e vamos voltar a esta lógica.
Tendo em conta esse regresso das antigas alianças, podemos esperar um papel ativo de Biden relativamente ao crescimento de movimentos de extrema-direita nas democracias ocidentais, que seguem o exemplo de Trump?
Fiquei muito apreensivo quando soube que, cá em Portugal, o candidato a Presidente do CHEGA está a receber apoios de políticos de extrema-direita de países como Itália. Não acho que seja o papel dos EUA interferir nas eleições de outros países, mas Biden terá certamente uma postura totalmente diferente da de Trump quando falar com líderes como Viktor Orbán [Primeiro-Ministro da Hungria]. Vai acolher com mais força líderes da União Europeia que respeitam os princípios democráticos.
E a nível interno, nos EUA, quais serão as grandes prioridades de Biden quando tomar posse?
O grande foco será o combate à Covid-19 – a testagem, a distribuição das vacinas e um grande pacote de apoio económico que irá avançar rapidamente, que pode variar entre 1.5 a 2 biliões de dólares, com cheques entregues diretamente aos cidadãos e a pequenas empresas. Acredito que tudo isto será implementado na primeira semana da Administração. Nos EUA, temos uma grande catástrofe nas mãos – Biden vai ter de reverter uma série de questões absurdas da Administração Trump, como a campanha contra o uso da máscara.
Ou seja, podemos esperar uma Administração que segue a ciência?
Não acredito que vejamos Biden a falar de hidroxicloroquina em conferências de imprensa. Na verdade, não o vamos ver a falar muito, de todo: vamos ouvir peritos e cientistas, como Anthony Fauci, David Kessler ou Ron Klain, que serão responsáveis pela ação e que têm uma larga experiência na área – o que não torna o desafio fácil, nem a resolução rápida.
Quando às políticas económicas de Biden, haverá uma aposta no comércio livre e abandono de políticas protecionistas?
Os acordos de comércio vão ser pontos importantes do mandato. Desde os anos 90, a NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) evoluiu de uma forma que ninguém podia antecipar. Penso que o Acordo Nuclear com o Irão também será abordado, dependendo da atitude dos iranianos. Estes acordos deverão ser tratados no final do primeiro ano, ou início do segundo ano do mandato. Internamente, vai ser realizado um investimento massivo de dinheiro nos próximos anos, para trazer a economia dos EUA de volta à sua potência máxima. Não ficaria surpreendido se a Administração Biden subisse o salário mínimo para 15 dólares por hora e avançasse para uma expansão dos fundos da “Secção 8”, que garante a distribuição de vales para a habitação dos cidadãos americanos.
Muitas dessas reformas de Biden estão dependentes de aprovação do Congresso, onde segura uma maioria de apenas 51-50. O que podemos esperar desta Câmara?
Tudo dependerá da postura dos Republicanos no Congresso – se serão contra todas as propostas Democratas, ou se será possível negociar com eles. É por esta razão que é importante saber se vai haver uma rutura entre Republicanos pró-Trump e anti-Trump. Não ficaria chocado se, caso o partido mantenha o seu apoio a Trump, quatro ou cinco senadores Republicanos abandonem o partido e fiquem independentes, o que pode alterar as circunstâncias do Congresso.
Uma das características mais marcadas de Trump foi a sua imprevisibilidade. Podemos esperar isso de Biden?
A maioria das pessoas que Biden trouxe para a sua Administração são “carreiristas” – e não digo isto num sentido negativo, mas positivo: estão muito familiarizados com os cargos que ocupam. Ainda podem tomar más decisões, mas estas serão tomadas com base em análises, não em impulsos. Há um sentimento generalizado entre os americanos: querem passar esta fase negativa à frente. Com a Administração Biden, podem não gostar de quem está a governar, mas sabem o que esperar deles.
Será esta a machadada final no movimento de Trump?
Penso que, ao longo dos próximos 12 a 18 meses, temos de estar atentos à evolução do Partido Republicano, se rejeita ou não Trump. Também será interessante perceber o que vai acontecer quando o sistema judicial se focar nas investigações de Donald Trump. Acredito que os seus apoiantes vão diminuir, graças à expulsão das redes sociais e de já não ocupar o cargo de presidente, o que lhe retira muito visibilidade. Trump vai ter mais dificuldade em comunicar com o seu eleitorado, apesar de, previsivelmente, manter sempre uma base. Por outro lado, temos de ter em conta que a fortuna de Trump cresceu graças à sua marca – e esta marca tornou-se tóxica. A maioria das pessoas não quer fazer negócios com ele. Pode vir a obter pequenas quantidades de dinheiro dos seus seguidores fiéis, mas não me parece que se venha a tornar mais convincente com o passar dos anos, em particular se o Partido Republicano se afastar dele.
E em Portugal, o que podemos esperar de Joe Biden?
Os dois países têm uma relação muito saudável há mais de 200 anos – e continuará assim. Acredito que os EUA procurarão trabalhar com Portugal, em particular nas áreas das energias limpas: o investimento do país no hidrogénio oferece muitas oportunidades para cooperação mútua. A força de ataque da NATO também continuará a ser relevante nas relações dois países. A verdade é que, até há 10 anos, os americanos não conheciam muito Portugal. Com o passar dos anos, o país veio a tornar-se numa grande atração para turismo dos EUA, que espero que regresse quando a pandemia da Covid-19 for ultrapassada.