Com o passar dos anos, o eleitorado americano tem-se tornado cada vez mais etnicamente diverso, graças ao crescimento de comunidades afro-americanas e hispânicas. Os dois grandes partidos – Democrata e Republicano – têm assistido a esta tendência com diferentes abordagens. Uma vez que esta reorganização demográfica tende a beneficiar o partido de Joe Biden, e não o de Donald Trump, uma das lutas dos Republicanos tem sido a de restringir o voto de pessoas destas comunidades.
Em 2018, estas restrições atingiram o Estado da Geórgia de forma particularmente impactante: o Republicano Brian Kemp, na altura candidato a governador deste Estado, foi acusado de bloquear o registo de voto de mais de 53 mil eleitores, dos quais 70% eram afro-americanos. Kemp acabou por vencer as eleições por apenas 55 mil votos, num total de 4 milhões. Entre várias vozes que se opuseram a esta supressão de eleitores, destacou-se a sua opositora direta na corrida: a candidata do Partido Democrata, Stacey Abrams.
A Geórgia nunca foi um terreno fácil para os Democratas. O último candidato presidencial deste partido a obter uma vitória neste Estado do Sul tinha sido Bill Clinton, em 1992. Em 2018, Abrams esteve perto de bater Kemp, mas perdeu por pouco – foi apenas em novembro de 2020 que Biden fez história ao voltar a pintar de azul o Estado do Sul dos EUA. No dia 5 de janeiro, também Raphael Warnock e Jon Ossoff bateram os Republicanos na Geórgia, nas eleições especiais para o Senado, garantindo uma maioria Democrata na câmara alta federal – em Washington D.C.. Apesar de Stacey Abrams não ter conquistado o lugar de governadora da Geórgia por apenas 55 mil votos em 2018, a ativista afro-americana é considerada a grande propulsora destas recentes vitórias Democratas.
O percurso de uma ativista singular
Stacey Abrams nasceu em 1973, em Madison, Wisconsin, e cresceu em Gulfport, Mississippi. Em 1991, iniciou o seu curso académico no Spelman College, uma instituição historicamente ligada a mulheres negras nos EUA, em Atlanta. Foi nessa mesma cidade que ela se começou a destacar enquanto ativista política. Mais tarde, veio a tirar um Mestrado em Políticas Públicas na Universidade de Austin, no Texas, assim como um curso de Direito na Universidade de Yale.
Na primavera de 1992, deu-se o momento de viragem para a carreira política de Abrams. Na altura, um caso de violência policial gerou uma forte polémica nos EUA: quatro polícias de Los Angeles foram absolvidos após espancarem Rodney King, um trabalhador afro-americano. A cidade explodiu em protestos, que se alastraram a vários pontos do país – incluindo Atlanta, onde Abrams já estava a organizar redes de estudantes para protestar contra a situação. Tal foi o seu impacto, que acabou sentada à mesa com o então Presidente da Câmara Maynard Jackson. A partir daí, o seu instinto político nato e a sua capacidade de mobilização levaram-na a cargos como Procuradora da Cidade de Atlanta e líder da minoria na Assembleia Geral da Geórgia.
Enquanto mulher negra, Abrams sempre fez parte do grupo demográfico que detém a maior percentagem de participação eleitoral dos EUA, mas uma das menores percentagens de ocupação de cargos políticos – em 2019, as afro-americanas representavam apenas 4% dos cargos executivos eleitos do país. Consciente desta injustiça, Abrams sempre teve em conta a necessidade de mobilizar e politizar minorias étnicas, de forma a garantir que não só votavam, como também participavam ativamente na vida política nacional.
Em 2013, uma decisão do Supremo Tribunal dos EUA deu um alerta a Abrams. No caso Shelby County v. Holder, os juízes consideraram inconstitucional uma provisão que ditava que os Estados não podiam mudar as suas leis eleitorais sem autorização. Perante a derrogação de uma lei que protegia a supressão de eleitores, Abrams decidiu criar o New Georgia Project, uma organização com fins não lucrativos dedicada a registar eleitores excluídos pelo sistema: jovens, mulheres, afro-americanos, hispânicos.
Passados quatro anos desta iniciativa, Abrams candidatou-se a governadora da Geórgia com o apoio da base de eleitores que a própria criara. Apesar de ter perdido a eleição por pouco mais de 50 mil votos, a sua equipa de campanha e aliados tinham registado mais de 200 mil novos eleitores nesse ano. Quando o New Georgia Project e o Fair Fight, outro projeto criado por Abrams após as eleições de 2018, voltaram à carga em 2020, foram capazes de quadruplicar os seus ganhos: registaram mais de 800 mil novos eleitores.
Esta conjunto de novos eleitores, que iam às urnas pela primeira vez na sua vida – composto maioritariamente por jovens afro-americanos, mas também por cidadãos mais velhos que nunca tinham sido chamados para votar – garantiu a vitória de Joe Biden no Estado da Geórgia, onde venceu por pouco mais de 10 mil votos. De acordo com as sondagens à boca da urna, 81% dos eleitores de minorias étnicas votaram em Joe Biden.
Um momento de viragem
A pequena margem de derrota de 2018 foi um sinal para Abrams de que as mudanças demográficas no Estado da Geórgia tinham chegado a um ponto de viragem – e a política sabia como vencer as próximas eleições. O seu argumento para convencer o Partido Democrata era simples: podemos ganhar mais eleições se formos buscar votos a eleitores de minorias que estão desligadas do sistema, em vez de tentar continuar a persuadir eleitores indecisos e moderados – na sua maioria, brancos.
Se a vitória de Biden em novembro veio a confirmar a teoria de Abrams, a mais recente vitória dos dois Senadores do Partido Democrata – que elegeu Raphael Warnock como o primeiro Senador negro deste Estado – não deixa espaço para dúvidas. A estratégia desenhada por Abrams não só se mostrou bem-sucedida, como também se apresenta como um modelo a seguir por todos os Estados com uma demografia semelhante à Geórgia, onde as minorias étnicas estão a crescer de ano para ano. Segundo o Atlanta Journal-Constitution, as minorias étnicas do Estado da Geórgia podem ultrapassar os cidadãos brancos em 2033 – resultando numa inversão das minorias.
Em abril de 2018, Abrams lançou a sua biografia política Lead From the Outside (“Liderar Por Fora”), onde afirma que o grande problema dos eleitores das minorias étnicas passa por se sentirem “auxiliares, e não essenciais” no processo eleitoral. Ao longo destes anos, a política norte-americana tem procurado mostrado a estes eleitores que o seu voto é decisivo, sem ser condescendente nem através de artifícios.
Não restam dúvidas: os créditos para as recentes vitórias Democratas devem ser dados, em larga medida, a Stacey Abrams e à rede de eleitores que a própria ajudou a criar ao longo dos anos. Agora, só falta saber para onde vai a política afro-americana no futuro. Depois de ter sido um dos nomes colocados em cima da mesa para Vice-Presidente de Biden (cargo que veio a ser ocupado por outra mulher afro-americana, Kamala Harris), fala-se numa possível candidatura à presidência americana. Resta esperar para ver.