Até à última semana de novembro – são os dados mais recentes a que a VISÃO conseguiu ter acesso – já tinha havido 18 ataques em Cabo Delgado, o número mais elevado desde março de 2019. O número de deslocados internos, que tem estado a preocupar autoridades nacionais e internacionais, voltou a aumentar no seguimento da insegurança que não dá sinais de abrandamento. Em declarações à VISÃO, Carlos Almeida recordava que numa passagem por Mocimboa da Praia, ainda as casas fumegavam depois de mais um ataque ter incendiado dezenas de habitações, “as pessoas estavam com camas, trouxas, tudo às costas para saírem dali. É uma imagem que não se esquece”, nota o coordenador da ONGD Helpo em Moçambique.
Em entrevista telefónica, o responsável admitiu ainda que apesar de trabalhar há vários anos com comunidades de Mocimboa da Praia, há dois meses que a equipa da Helpo deixou de lá ir, por sugestão das autoridades que admitem já não ser possível garantir a segurança do território.
Tal como a VISÃO já deu conta, a violência em Cabo Delgado não tem dado tréguas e depois de um mês ou dois de abrandamento após o ciclone Kenneth (que atingiu terra a 25 de abri deste ano), continuou a recrudescer pela mão de grupos que ainda ninguém sabe exatamente quem são. Há já centenas de mortes a lamentar e milhares de desalojados que têm procurado abrigo em outras comunidades, sobretudo nas ilhas do arquipélago das Quirimbas. À ilha do Ibo, que terá sofrido uma destruição de cerca de 90% com a passagem do ciclone, não para de chegar gente, admite Carlos Almeida. O problema é que estes territórios não estão, também, preparados para um grande afluxo populacional, pelo que as consequências destas migrações poderão trazer mais questões a resolver do que soluções.
Em Nachintege, uma comunidade a cerca de 60 quilómetros da cidade de Mueda, há relatos de várias famílias que preferem dormir ao relento, debaixo de árvores ou de arbustos, por não se sentirem seguros em casa. Em outras localidades, a praia é a cama escolhida, com comunidades inteiras a não querer arriscar que os insurgentes lhes destruam as casas e lhes possam tirar a vida.
Província do gás
Recorde-se que a região de Cabo Delgado tem estado na mira dos investidores estrangeiros que se encontram atualmente a explorar as reservas de gás natural liquefeito da região. Empresas norte-americanas, italianas, francesas e indianas têm marcado presença no território, e ainda recentemente foi assinado mais uma concessão de exploração por um consórcio internacional que conta com companhias como a Eni, a Total ou a Exxon Mobil.
Os investimentos globais na região deverão rondar os 50 mil milhões de dólares e colocar Moçambique entre os principais produtores de gás natural liquefeito do mundo. Está, aliás, a ser também planeado o nascimento de uma nova cidade junto às zonas de extração, onde deverão viver 150 mil pessoas – incluindo os atuais 15 mil habitantes da zona, a peníncula de Afungi. A ‘cidade do gás’ está orçamentada em, pelo menos, €1,5 milhões, revelaram as autoridades moçambicanas durante a 6.ª Cimeira do Gás de Moçambique que aconteceu no mês passado.
Note-se que estes ataques de insurgentes têm atingido, em algumas ocasiões, estruturas das empresas presentes na região. No entanto, os responsáveis garantem que continuarão a levar a cabo os trabalhos, e afirmam não acreditar que haja vontade de atacar diretamente os negócios.
Escolas renascem dos escombros
Depois da passagem do Kenneth, e a entrar na época das chuvas, Cabo Delgado continua a enfrentar uma forte carência em termos de alimentos e de acesso a água potável, agravadas também por estes movimentos migratórios. E, ao contrário do que aconteceu na Beira, a esta região chegaram poucas ONG portuguesas e respetivas ajudas – não só porque não têm lá presença, mas sobretudo porque tinham gastado praticamente todos os recursos a tentar acudir às vítimas do Idai, esclarece Carlos Almeida. A Helpo e a Oikos Portugal conseguiram dar uma resposta praticamente imediata e a primeira já conseguiu reconstruir 14 salas de aulas das 477 que foram destruídas. “Até agora foram reconstruídas 22, o que significa que a Helpo reconstruiu mais de metade. Mais ainda nem conseguirmos recuperar 5% das que foram perdidas”, nota o responsável.
Depois do Kenneth, admite, “também um bocadinho a reboque do material que tínhamos recolhido para o Idai e de algum investimento que fizemos, fruto do dinheiro que angariámos para o ciclone Idai, conseguimos dar resposta a algumas comunidades um pouco mais afastadas do epicentro do Kenneth”, mas que ficaram praticamente destruídas e precisavam de assistência imediata. Foi o caso de Macomia e de Mucojo, exemplifica. Esta última comunidade foi, aliás, reportada como “inacessível” pelo Programa Alimentar Mundial (PAM), que há anos atua na região.
Ajuda escasseia, fome aumenta
Mas a verdade, continua ainda este antigo professor que trocou Portugal por Moçambique há 10 anos, é que o cenário pós-Kenneth já se confunde agora com a questão dos insurgentes e dos deslocados internos. “Houve uma grande reunião em maio, onde o governo provincial assumiu finalmente que havia um problema com malfeitores e pediram ajuda à comunidade internacional”. Quanto à ONG nacional, atualmente, “pouco ou nada consegue fazer – continuamos empenhados na fase da educação e já reconstruímos três salas no Ibo”, concluiu.
O pouco ou nada é relativo, uma vez que só na semana após o ciclone os três elementos da Helpo conseguiram distribuir cerca de 14 toneladas de mantimentos por entre os afetados. No entanto, os fundos já escasseiam e as operações, tanto na Beira, onde a Helpo ficará até março, como em Cabo Delgado, estão a terminar. Para já, os fundos chegam para terminar as três salas de aula que estão a ser reconstruídas, mas depois ainda não se sabe o futuro. “As pessoas têm um bocadinho a sensação de que os ventos passam e tudo fica bem”, lamenta Carlos Almeida.
As doações, como é natural, vão diminuindo ao longo do tempo, mas a curva é praticamente inversamente proporcional às das necessidades. É que também aqui tem sido impossível colher o que quer que seja de uma terra que ainda está a tentar sarar as feridas das inundações provocadas pelo ciclone, e milhares de pessoas salientam a falta de utensílios que lhes permita cultivar o que quer que seja ou mesmo cozinhar – mostram relatórios libertados pela Organização Internacional para as Migrações datados de novembro.