São precisos “menos de nove mil euros por mês para fazermos o que tem que ser feito”, começa por dizer à VISÃO Ana Oliveira, a gestora de projetos da Médicos do Mundo Portugal, responsável pelo campo de Ndjena, a 30km da vila de Nhamatanda, na Beira, que dá apoio a 410 famílias vítimas da violência do ciclone Idai. Desde agosto que a MdM Portugal assegura a gestão deste centro, tal como a VISÃO noticiou na altura, e esperava poder ficar no terreno pelo menos durante 10 meses. No entanto, não foi possível reunir mais dinheiro. “As pessoas vão-se esquecendo”, lamenta Ana que revela ainda que algumas empresas se tinham comprometido com a doação de material ou de infraestruturas na Beira, mas que acabaram por nunca se concretizar.
É, no entanto, de sorriso no rosto e sem perder a energia, no entanto, que esta médica de Saúde Pública, professora na Universidade do Algarve e gestora de projetos da MdM conta como têm sido estes meses pós-Idai. “Já vejo os nossos Técnicos de Saúde, que no fundo são os médicos que existem em Moçambique, a fazer coisas em que no início nem pensavam. Como, por exemplo, um historial clínico”, revela. Já há também o hábito de visitas domiciliárias, as pessoas com algum tipo de deficiência ou doença mental estão a ser acompanhadas regularmente e participam em projetos criados especialmente para elas, e têm-se multiplicado as conversas sobre necessidades de nutrição e regras básicas de higiene.
Têm sido, continua, meses muito intensos, de muita formação, com vários médicos de diferentes especialidades a dar formação e apoio às mais de duas mil pessoas que vivem no centro, e que têm sido fundamentais para a recuperação de uma região que ficou totalmente devastada. A responsável chegou há cerca de 48 horas a Portugal e está já a preparar a próxima viagem – onde terá que dar a notícia de que se acabou o financiamento. “Temos três objetivos principais”, explicava Pedro Monjardino, responsável da Médicos do Mundo Portugal em Moçambique à VISÃO há uns meses. “a prestação de cuidados de saúde às populações, a elaboração de ações de sensibilização e a capacitação de profissionais locais” que são maioritariamente a primeira linha de intervenção. É por isso que interromper a formação é quase como dar três passos atrás depois de se ter dado dois à frente em tão pouco tempo.
Se, há um mês, numa conversa com a VISÃO, Monjardino acreditava que ainda seria possível ficar na Beira pelo menos até fevereiro, agora Ana Oliveira reduz esse tempo. “Vamos sair no próximo mês porque eu tenho que preparar a saída. Até isso tem que ser feito com tempo”.
Questionada sobre quanto dinheiro seria preciso para ficar mais um ano no terreno, aquele que seria o tempo ideal para fazer o acompanhamento completo de recuperação, Ana é rápida a responder: “Com 100 mil euros ficávamos mais um ano. Isto significa dar consultas, fazer formação, levar voluntários e manter a equipa de oito pessoas que temos atualmente”. Para isto contribui, esclarece, o facto de não terem que pagar viagens, uma vez que o programa de doação de milhas da TAP reverte para a Médicos do Mundo, permitindo que médicos e enfermeiros viagem entre Lisboa e Maputo graças aos passageiros que abdicam das suas milhas.
![Médicos do Mundo](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/11/15637978M%C3%A9dicos-do-Mundo.jpeg)
Consultório do campo dos Médicos do Mundo. Sala foi construída recentemente
D.R.
Ajudas dispersas
Logo após o ciclone atingir a Beira, em março deste ano, cerca de 250 Organizações Não Governamentais (ONG) nacionais e internacionais ativaram os seus planos de emergência e marcaram presença na região para ajuda imediata. Mais de um milhão de pessoas terão sido afetadas pela tempestade e o número de mortos nunca foi fechado oficialmente, mas estima-se que tenha passado largamente a barreira do milhar. Na ocasião, Portugal (e o mundo) uniu-se em várias campanhas de angariação de fundos e ações de solidariedade para prestar ajuda imediata. No entanto, com o passar do tempo, aconteceu aquilo que alguns responsáveis já temiam na altura: o esquecimento e a consequente falta de apoio às organizações que, não tendo outra fonte de receita, sobrevivem apenas das doações que recebem. A ONU e o Governo moçambicano estimam que seja ainda necessários 3 mil milhões de euros para recuperar o país.
Em Portugal, por exemplo, a VISÃO sabe que o facto de entretanto ter sido criado, pelo Instituto Camões, um concurso destinado a financiar projetos de Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) nas áreas nos domínios da saúde, educação e segurança alimentar como contributo para a reconstrução pós-ciclones – acabou por canalizar alguns dos apoios das empresas nacionais para essa linha, o que poderá ter afastado algumas doações diretas.
“Tal intervenção foi uma resposta à disponibilidade manifestada pela sociedade civil e pelo setor privado para contribuir financeiramente para o auxílio às vítimas dos ciclones, e procurou conciliar as manifestações de apoio com intervenções que vão ao encontro às reais necessidades sentidas no terreno”, explicou fonte oficial do Instituto Camões à VISÃO, numa declaração por email.
“O concurso foi aberto a 1 de agosto de 2019, tendo o período de apresentação de candidaturas terminado a 30 de setembro. Os resultados serão publicitados até 31 de dezembro do corrente ano”, revela ainda a mesma fonte.
“Os projetos que vierem a ser apoiados contribuirão para a recuperação, reconstrução e apoio às populações mais afetadas e promoção da resiliência dessas comunidades, subjacentes a uma lógica de correlação entre a ajuda humanitária e o desenvolvimento (nexo ajuda humanitária-desenvolvimento), concorrendo para a redução de riscos de catástrofes”.
Uma das organizações que se candidatou a este financiamento foi a Fundação Gonçalo da Silveira (FGS), que logo na altura do Idai revelou à VISÃO que só iria para o terreno pelo menos uns seis meses depois de ele ter passado – precisamente para fazer face às ausências que, referia Teresa Couceira, decerto se fariam sentir. “Sabemos que o apoio é de alguns milhares de euros, mas ainda não está nada fechado”.
Entretanto, continua Teresa Couceiro, só recentemente é que foi para o terreno Marta Monteiro, que assume o cargo de gestora de operações na Beira para um projeto conjunto da FGS, da Fundação Fé e Cooperação e da organização VIDA – Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano. Para esta primeira fase dos trabalhos, que implica a recuperação e uma escola na comunidade de Manga Mascarenhas, as três associações contam com um orçamento de 115 mil euros e estão atualmente a candidatar-se a projetos e a prosseguir com a angariação de donativos para conseguirem manter-se no terreno durante mais dois anos.
![Médicos do Mundo_Beira](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/11/15637979M%C3%A9dicos-do-Mundo_Beira.jpeg)
Sala de espera
D.R.
O que ganha quem doa?
Logo depois de o ciclone ter atingido a costa moçambicana, houve várias empresas que ofereceram milhares de euros em material de emergência, medicamentos e até em fretes de aviões civis que se deslocaram àquele país com equipas de ajuda humanitária e bens essenciais para acudir os sobreviventes. No entanto, passado o período de emergência, houve uma natural redução da atenção dada às necessidades do país.
Recorde-se que qualquer empresa que faça um donativo a uma organização com que tenha como fim a ajuda social, até ao limite de 8/1000 do volume de vendas e /ou prestação de serviços no exercício, pode ver esse custo ser considerado em valor correspondente a 140% do donativo. No mesmo sentido, qualquer particular que faça uma doação a uma destas organizações pode deduzir 25% do valor oferecido em dinheiro na sua declaração de IRS.
![Médicos do Mundo_Beira_sala](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/11/15637980M%C3%A9dicos-do-Mundo_Beira_sala.jpeg)
A construção feita com ajuda de particulares para quem Ana ligou a pedir dinheiro
D.R.
Época da fome, época de ajuda
Quando Ana Oliveira percebeu que a empresa que lhe tinha garantido a construção de um posto de saúde no centro de acolhimento não ia cumprir com a sua promessa, decidiu pôr mãos à obra. “Liguei para algumas pessoas e pedi dinheiro. Eu também doei algum e conseguimos construir o posto. Quer dizer, pelo menos temos uma espécie de sala de espera e assim”, revela enquanto nos mostra orgulhosa as fotografias.
“Fizemos um posto com o material que tínhamos à mão e com o que conseguimos comprar e, portanto pelo menos está resistente à chuva que vai começar agora”. Mas não é sistema pedir aos amigos que contribuam para coisas que são urgentes, nota – “nem posso esperar que me continuem a dar”, atira com uma gargalhada. Daí que espera que até ao fim do ano possa ter boas notícias no que concerne a algumas doações mais avultadas que permitam à organização manter-se em Moçambique. Até porque, lembra, “estamos a entrar na chamada época da fome”, onde toda a ajuda é ainda mais essencial.
Recorde-se que há cinco anos que a Médicos do Mundo Portugal não tinha presença naquele país. A equipa nacional foi substituir a congénere espanhola em agosto, para que esta pudesse voltar à sua missão em Cabo Delgado, de onde saiu para prestar ajuda de emergência na Beira.
* notícia corrigida a 22 de novembro de 2019, com informação retificada sobre as linhas de financiamento abertas pelo Instituto Camões (e não pelo GREPOC como, erradamente, anteriormente referido). Aos visados nessa incorreção, pedimos desculpa. Atualiza ainda com declarações de fonte oficial do Instituto Camões.