1- QUAL A FRONTEIRA ENTRE PROVOCAÇÃO E BLASFÉMIA?
“Devemos deixar a liberdade ofender a fé dos crentes do Islão, degradando a imagem do seu profeta ou a liberdade de expressão prima sobre todas a outras considerações? Manifestei, na altura [da publicação das caricaturas de Maomé], o meu sentimento de uma contradição intransponível, ainda para mais sendo eu dos que se opõem à profanação de lugares e objetos sagrados “. A preocupação do sociólogo e filósofo Edgar Morin, expressa no Le Monde, seria também partilhada por Dominique Moisi (professor e autor do livro A geopolítica da emoção), que considerou, no Project Syndicate, que alguns cartoons eram uma “perigosa e desnecessária – e politicamente irresponsável – provocação”.
Mais à frente, falaremos da liberdade de expressão e da liberdade de se sentir ofendido. Para já, fiquemo-nos com as palavras do imã da mesquita de Lisboa, sheik Munir, que faz notar que “Moisés foi alvo de provocação e blasfémia; Jesus também” para lembrar que o profeta reagiu pacificamente, muitas das vezes até ignorou. “Temos de adotar essa atitude”, apela. À blasfémia (que “é denegrir propositadamente”) e à provocação (“algo que não tem tanta intensidade”), insiste o imã, há que “responder racionalmente ou ignorar.” “Facilmente se passa da crítica, salutar em qualquer situação, para a afronta fácil e gratuita”, reflete Paulo Mendes Pinto, diretor da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona. Mas “tal como temos de dar o direito à liberdade de expressão, também temos de dar o direito à liberdade a se sentir ofendido.” Questiona-se: “A blasfémia será um direito? De consciência, sim, plenamente. E de prática pública? Também, mas tal como o cidadão tem direito ao seu bom nome, também os coletivos o devem ter.” E conclui: “A afirmação da liberdade de blasfemar implica uma assunção da superioridade do não religioso face ao religioso. É uma herança neopositivista que em nada fomenta o diálogo e a paz social. A Europa terá de enfrentar esta questão, encontrando um equilíbrio construtivo.”
2 – OS EUROPEUS VÃO TORNAR-SE MAIS INTOLERANTES?
Três granadas e pelo menos um tiro foram lançados contra uma mesquita de Le Mans, no Sudoeste de França, e vários disparos de arma de fogo atingiram uma sala de oração muçulmana em Port-La-Nouvelle, a menos de 80 quilómetros da fronteira espanhola. O jornal alemão Hamburger Morgenpost, que reproduziu caricaturas do profeta Maomé do Charlie Hebdo, foi alvo de um ataque incendiário. E a Al Qaeda já avisou que a França “irá pagar o custo da violência nos países muçulmanos”. Os ataques cibernéticos, esses, são incontáveis.
Três dias antes da Marcha pela República, a mesquita Central de Lisboa acordava “manchada” por um ato de vandalismo. Numa parede, havia sido pintado “1143”, o ano que marca a independência de Portugal, muitas vezes usado por grupos neonazis e xenófobos.
“Portugal mantém-se nesse limbo, entre imagem de são convívio, ‘povo de brandos costumes’, e algumas boas práticas”, garante Paulo Mendes Pinto. Mas não deixa de sinalizar que “se estivermos atentos ao que se diz nas conversas de café, no metro, veremos que há um olhar muito preconceituoso que precisa de ser trabalhado e educado.” Em suma, refere, “É difícil dizer que os europeus são tolerantes. Os europeus sempre bateram todos os recordes nesse campo. Das crueldades da luta contra as revoltas escravas, ao modus operandi do regime de Hitler, passando pelas Cruzadas e terminando na forma como nos séculos XVI ao XX se aniquilaram populações indígenas um pouco por todo o mundo… Não podemos dizer que somos tolerantes no nosso ADN.”
3 – HÁ FORMA DE EVITAR ESTE TIPO DE ATENTADOS?
“Tal como se apresentam as ameaças atuais do terrorismo, o risco zero não existe. O objetivo é sempre minimizar o risco, pelo que, sendo constante, implica forte investimento na prevenção”, isto é, na tentativa de o identificar atempadamente para evitar os atos terroristas.
A cartilha é partilhada pelos serviços e forças de segurança de Portugal e da Europa. E dias depois do ataque ao Charlie Hebdo, já os ministros da Justiça e do Interior da União Europeia combinavam uma reunião “de emergência” (que deverá ter lugar no início de fevereiro) para discutir o reforço das medidas de proteção dos cidadãos e do território europeu. Será debatido o Tratado de Schengen (sendo certo, segundo fonte diplomática, que há a “tentação de reforçar ou modificar Schengen por razões nacionalistas e populistas”) e o controlo das fronteiras, a forma de melhorar a coordenação de políticas, a colaboração conjunta, a troca de informações (três áreas unanimemente consideradas vulneráveis, garante fonte diplomática), a afetação de meios, o controlo da imigração e dos movimentos dos combatentes estrangeiros. E ainda, mas não menos importante, será abordado o reforço da luta contra os vetores de radicalização as tecnologias de informação e comunicação “que permitem consolidar, à escala global, não só os objetivos e ideologia como também a eficácia operativa do terrorismo jihadista global”, segundo escreveu Hermínio Matos, investigador do Centro de Investigação do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ICPOL), no anuário Janus de 2014.
Farah Pandith, ex-representante especial da comunidade islâmica no “ministério dos Negócios Estrangeiros” americano, questionou e respondeu, na CNN: “Como é que o EI e a Al Qaeda estão a construir os seus exércitos? Estão a construí-los com recrutas. Temos de parar o recrutamento”. Esse, que passa, em grande medida, pelas novas tecnologias.
4 – PORTUGAL CORRE RISCOS?
“Nenhum país da União Europeia está imune a situações idênticas às que ocorreram em França, na passada semana”, disse à VISÃO fonte da área da segurança interna, que garante: “Para lhe fazer face, existe trabalho integrado e coordenado, a nível europeu e interno, destinado a minimizar, ao máximo, a possibilidade deste tipo de ocorrências.” O problema é que como escreveu Hermínio Matos, que além de investigador do ICPOL é doutorando em História, Defesa e Relações Internacionais o fenómeno terrorista internacional, pela sua “natureza polimórfica e imprevisível”, constitui “um desafio ao desenho e implementação de estratégias de prevenção e resposta contraterrorista “. Perante a janela de oportunidade (quatro ou cinco anos) que existe entre a captação de potenciais membros e a implicação direta em atividades terroristas, devem ser gizadas, refere o investigador, “estratégias de prevenção da radicalização que contemplem, também, o envolvimento ativo da comunidade muçulmana, em particular através dos seus líderes”, visando “erigir narrativas de contrarradicalização que anulem o ímpeto, a profundidade e o alcance de discursos extremistas violentos”.
Só que, como expôs Olivier Roy (filósofo e politólogo especialista em Islão) no Le Monde, na sequência dos acontecimentos de dia 7 em Paris, e ao interrogar-se sobre a ligação entre o Islão e a violência, foi despertada a questão “qual o lugar dos muçulmanos, em França?” É um problema existencial, prosseguiu, porque recai “sobre a coesão da sociedade francesa, quer a vejamos como ameaçada por uma presença muçulmana que vai além do simples fenómeno demográfico (e é, agora, a opinião dominante) ou ameaçada por uma islamofobia exacerbada pelo terrorismo de alguns”. Em Portugal, a comunidade islâmica não tem mais do que 50 mil pessoas.
5 – A CAMINHO DA ISLAMOFOBIA?
Entre quarta-feira, 7, dia do atentado contra o Charlie Hebdo, e segunda, 12, foram registados 54 atos (21 “ações” e “33 ameaças “) antimuçulmanos em França, anunciou à agência AFP Abdallah Zekri, presidente do Observatório contra a Islamofobia do Conselho Francês do Culto Muçulmano, com base em dados do Ministério do Interior francês. Nos primeiros nove meses de 2014, as autoridades francesas haviam recebido 110 queixas relativas a ações e ameaças (menos 48 que o mesmo período de 2013). Mas 2015, com mais de 50 atos em apenas cinco dias, vem complicar as estatísticas.
Por toda a Europa nascem focos anti-islâmicos. O mais conhecido é o Pegida (um movimento que se autoproclamou Patriotas Europeus contra a Islamização da Europa), que desde setembro reúne, todas as segundas-feiras, milhares de pessoas que desfilam em Dresden com o objetivo de sensibilizar para a crescente influência da religião muçulmana na Europa. Na segunda-feira, 12, reuniu 25 mil manifestantes. Também no Facebook se multiplicam as páginas seguidoras do Pegida por pouco não chegam às 100 e a maior comunidade tem mais de 140 mil seguidores. Áustria, Holanda e Noruega, por exemplo, já têm as suas manifestações agendadas para breve. A página de Portugal, que proclama “o povo contra a islamização da Europa” já tem 74 “likes” e o Pegida Hispânia (Portugal&Espanha), conta 141 membros.
6 – MAIS SEGURANÇA IMPLICA MENOS LIBERDADE?
Em França, o plano Vigipirate (instrumento central do dispositivo de luta contra o terrorismo) foi elevado ao seu nível mais alto (alerta atentado) depois do ataque ao Charlie Hebdo. Na segunda-feira, dia 12, as autoridades francesas mandaram mais de 10 mil homens (militares e das forças de segurança) para as ruas, com a missão de vigiar e proteger pontos considerados sensíveis. Foram ativadas as células de crise, as Forças Armadas saíram em reforço das ações (civis) de vigilância, os serviços de socorro postos em alerta, foi decretada a interdição de estacionar junto a escolas, a deteção de explosivos juntou-se às técnicas de controlo de pessoas e bens. Mas estas foras algumas das medidas adotadas, que se vieram juntar a muitas outras.
Em Portugal, as autoridades estão “mais vigilantes, mais atentas”, e apesar nenhum país estar imune, “não há factos nem indícios que as levem a um aumento imediato dos níveis de segurança”, disse à VISÃO fonte estatal.
Mas a evolução constante das ameaças do terrorismo implica ajustamentos legislativos. E tendo em conta os contornos globais do fenómeno, muitos desses ajustamentos decorrem de compromissos internacionais. Serão estas as questões que serão abordadas no próximo Conselho de Ministros da Justiça e Assuntos Internos da UE (que deverá ocorrer no início do próximo mês) e no encontro de alto nível que Barack Obama está a promover, em Washington (a 18 de fevereiro), com o intuito de coordenar um combate global contra o terrorismo que cresce a nível doméstico.