E se o seu banco tivesse de lhe pagar em vez de lhe cobrar juros pelo seu empréstimo à habitação, como tem feito até agora? Imagina-se a viver num mundo em que, apesar de dever dinheiro ao banco, na prática, ele é que tem de lhe pagar por isso? Não chegámos a isso, mas podemos estar perto. Pela primeira vez, a Euribor a um mês estreou-se num valor negativo (-0,002), no dia 19 de fevereiro e começou esta semana a -0,008. A três e seis meses e a um ano continua em terreno positivo, mas em queda.
Em Portugal, serão poucos os empréstimos associados à variação mensal da taxa de juro. A maioria está indexada à Euribor a 3 ou a 6 meses. Se, nesses prazos, a taxa vier a fixar-se em terreno negativo, os bancos terão de fazer uma revisão das regras de cálculo das prestações de muitas famílias e empresas com créditos habitacionais, pessoais, ao consumo ou ao investimento, que utilizam a Euribor como principal indexante.
Como o capital emprestado está habitualmente garantido, uma taxa de juro negativa não deverá traduzir-se em perdas para o banco. A solução passará por descontar o juro negativo no spread, ou seja, na margem de lucro que o banco obtém com o empréstimo (e que é uma das componentes da taxa final de juro a pagar pelo cliente).
Nos contratos mais antigos, com spreads muito baixos – de 0,2% e 0,3% -, poderá não ser possível descontar totalmente o valor negativo do juro. Um exemplo: se a Euribor a 3 meses se fixar em – 0,4% e se o spread for de apenas 0,3%, a taxa de juro anularia a cobrança do spread e o cliente pagaria apenas a parte do capital em dívida ao banco. A Deco entende que a Euribor negativa deve ser descontada até ao limite do spread e não para além dele, uma opinião que é partilhada por alguns economistas com quem a VISÃO falou. Caso contrário, seria o banco a ter de pagar ao cliente devedor…
À exceção do BCP, que pretende aplicar uma Euribor igual a zero aos clientes mesmo que a taxa de juro entre em terreno negativo, os bancos ainda não se pronunciaram. Preferem aguardar pelas indicações do Banco de Portugal. Um porta-voz adiantou à VISÃO que o banco central está “a analisar o impacto desta evolução quer no equilíbrio das relações entre os clientes e os bancos, quer na rentabilidade das instituições.”
Enquanto a Europa segue atenta a evolução da Euribor nos prazos mais longos, importa saber como chegámos até aqui. É que no início da crise, em 2008, a taxa de juro fixava-se entre os 4 e os 5 por cento.
Juros negativos
Uma inflação muito baixa na Europa (em dezembro e janeiro foi mesmo negativa…), especialmente nos países, como Portugal, mais afetados pela austeridade, uma economia que teima em não crescer e uma taxa de desemprego que não dá tréguas são os maiores flagelos da zona euro. Há mais de dois anos que o presidente do BCE, Mario Draghi, prometeu fazer tudo para salvar o euro. E fez algumas coisas. Aplicou injeções de liquidez no sistema financeiro europeu e desceu gradualmente as taxas de juro diretoras até valores muito próximos de zero. A 5 de junho, o corte foi mesmo considerado histórico, colocando a remuneração dos depósitos em – 0,1%. Na prática, os bancos de toda a Europa passaram a ter de pagar para fazerem depósitos junto do BCE, que entretanto agravou a taxa para – 0,2 por cento.
Um juro negativo, ou próximo de zero, deveria ser suficiente para desincentivar os bancos a entregarem os seus excedentes ao BCE – ou a deixarem de aplicá-los na compra de dívida alemã, suíça ou japonesa, cujos juros estão também em terreno negativo -, mas na prática não é assim. O risco baixo, ou a ausência dele, acaba por atrair os investidores, sobretudo quando a zona euro está à beira da deflação, com o investimento parado e a economia anémica.
Por isso, esta atuação mais radical do BCE não teve o sucesso esperado junto do sistema financeiro. Mario Draghi ficou sem alternativas e teve de disparar a “bazuca”. Na última reunião do BCE, foi aprovado – com a oposição da Alemanha – um programa de compra alargada de dívida (no original, quantative easing) para ser posto em prática entre março de 2015 e setembro de 2016. Ao longo de 18 meses, serão injetados 1,1 biliões de euros – à razão de 60 mil milhões de euros por mês – nos bancos da zona euro, a troco de títulos de dívida pública e também privada. Com isto, espera-se que essa liquidez seja repassada para a economia real, dando crédito às empresas para investirem e às famílias para consumirem.
É neste quadro, de um certo “desespero”, que tem de ser entendida a descida da taxa Euribor indexada aos nossos empréstimos.
O que é a Euribor?
A taxa Euribor resulta do juro médio praticado pelos bancos europeus nos empréstimos e depósitos realizados entre si. Ao atingir um valor negativo, significa que alguns bancos estão a emprestar dinheiro a outros bancos, por um prazo muito curto, pagando juros em vez de os cobrar. As alternativas de baixo risco não são muitas, já que se depositarem os excedentes de liquidez no BCE terão de pagar um pouco mais: – 0,02%, o valor de referência da taxa de absorção de liquidez do banco central europeu.
Ora, quando uma família portuguesa faz um contrato de empréstimo para compra de casa, é o banco que escolhe a Euribor como indexante desse mesmo contrato, Ao longo de 20, 25 ou 30 anos, essa família vai ter de pagar ao banco credor uma prestação mensal cujo valor final resulta da soma de três parcelas: capital a liquidar, mais Euribor (a 3, 6 ou 12 meses), mais spread. Este último, destinado a garantir o risco do banco, resulta de uma negociação com o cliente.
Com o “susto” da Euribor, os bancos estão já a aplicar novas regras ou até indexantes alternativos para os novos contratos. Se está a pensar comprar casa, não se espante se o seu banco lhe oferecer, como indexante, a Euribor a 3, 6 meses ou mesmo 12 meses mas, agora, “proibida” de descer abaixo de zero…