De uma coisa não se pode acusar Taylor Swift: de falta de canções e de vontade de as servir ao seu público na atual digressão The Eras Tour. O concerto prolonga-se, praticamente sem pausas, ao longo de 3h20 – bem mais do que um jogo de futebol com prolongamento e penáltis. Ao longo das 48 (!) canções interpretadas, a cenografia impressiona os mais empedernidos. Há momentos em que, perante o olhar dos cerca de 60 mil espectadores, se materializam em direto e ao vivo encenações complexas, que parecem saídas de vídeoclips bem produzidos – como quando a cantora está sobre um grande paralelepípedo espelhado que misteriosamente desliza pelo longo corredor que serve de palco a Taylor Swift, bailarinos e, ocasionalmente, músicos durante a maior parte do espetáculo, ou como quando, do nada, surge em palco uma cabana de madeira, com um telhado relvado onde a artista se deita para interpretar mais uma canção… As potencialidades do ecrã gigante são aproveitadas ao máximo, sendo usado para muito mais do que a projeção de imagens do próprio concerto (que acontece noutros ecrãs mais pequenos, estrategicamente posicionados no Estádio da Luz). Na prática, com muitas plataformas móveis, adereços e uma miríade de figurinos usados nas coreografias, há muito de teatral e, até, cinematográfico, nesta que já é a mais lucrativa digressão de sempre na história da música (e que, mesmo antes de terminada, já deu origem a um filme, disponível na plataforma Disney +).
Escolhida como figura do ano de 2023 pela revista Time, Taylor Swift é, ou parece ser, a grande estrela pop global do momento. Os seus feitos medem-se em milhões de dólares e até se criou a expressão “swift lift” para medir o impacto económico da passagem da The Eras Tour pelas cidades. Mas será que no mundo hiper-fragmentado em que vivemos ainda há lugar para esse estatuto de “estrela pop global”? Será Swift a derradeira detentora desse título ou o maior exemplo de que esse tempo foi ultrapassado? Para quem não foi seduzido ao longo dos últimos anos pelas canções da americana, nascida em 1989, parece haver um grande desfasamento entre esse estatuto de grande rainha da pop e o conhecimento global da sua música. Neil Tennant, fundador dos Pet Shop Boys, foi um dos que verbalizou esse mistério: “A Taylor Swift fascina-me como fenómeno, é muito popular, mas quando ouço os discos… Para um fenómeno tão grande como ela, onde estão as canções famosas? Qual é a Billie Jean [hit de Michael Jackson] da Taylor Swift?”. No concerto do Estádio da Luz, swfties com pulseirinhas coloridas cantavam de cor, entre risos, sorrisos e lágrimas, cada uma das canções. Mas toda a enorme maioria de quem não consegue cumprir tal proeza, reconhece a música – ou até, uma música – de Taylor Swift?
Taylor Swift parece ter um pé num mundo antigo (o que dá esse estatuto de rainha global, em capas de revistas e milhões de lucros com a sua música) e outro num novo (o que cria bolhas que muitas vezes não comunicam entre si, com fenómenos bem dirigidos a um certo público-alvo)
Quando as televisões e as rádios eram o grande instrumento para espalhar a indústria de entretenimento e criar fenómenos planetários musicais, como Michael Jackson, Madonna, ou mesmo as Spice Girls ou Britney Spears, pré-redes sociais, havia um efeito de arrastamento, em que o público não era filtrado. Ou seja: podíamos não gostar daquilo, dizer mesmo que o “fenómeno” não nos interessava nada, mas era impossível escapar à omnipresença de músicas como Thriller, Like a Virgin ou Wannabe. Taylor Swift parece ter um pé num mundo antigo (o que dá esse estatuto de rainha global, em capas de revistas e milhões de lucros com a sua música) e outro num novo (o que cria bolhas que muitas vezes não comunicam entre si, com fenómenos bem dirigidos a um certo público-alvo). De facto, onde está a Billie Jean de Taylor Swift, que todos conhecem? E porque há tanta gente a pensar “se ela é assim tão famosa, como é que eu não sei nenhuma música dela?!”
Falo por mim. Sempre que tentei ouvir, com um mínimo de atenção, um disco de Taylor Swift, distraí-me a meio do processo e, sem o conseguir evitar, a minha mente voava rapidamente para longe dali. Ontem, perante o desfilar de canções de várias épocas (a The Eras Tour é apresentada pela artista como uma espécie de best of das digressões anteriores e das memórias que elas trazem), dei por mim a ver ali um padrão: são canções que… começam e rapidamente seguem um caminho melodicamente previsível e banal, como se uma poderosa máquina de inteligência artificial tivesse sido alimentada com todo o pop mainstream das últimas décadas e desse sempre uma solução numa espécie de piloto automático, servindo uma voz não especialmente carismática – tudo eficaz, sem dúvida, e sem arestas. É óbvio que nem toda a gente ouve isso; ainda bem que assim é, e sempre será enquanto houver música pop e fãs devotos (e Taylor Swift, claro, tem muitos). Nada contra, obviamente.
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(Pedro Gomes/TAS24/Getty)
No caso de Swift, aparentemente, conta muito a “identificação” com as letras, com muitos fãs (sobretudo meninas) a sentirem que ela escreve como se tivesse lido os seus diários – sobre perdas, frustrações, paixões, sonhos… A eterna “girl next door”, que tanto cria paixões assolapadas como identificação (“podia ser eu”) – e aí, no meu caso, não há mesmo hipótese: não, não podia ser eu, homem português de 52 anos.
A verdade é que depois da experiência de ontem, de exposição a mais de três horas do cancioneiro da estrela pop do momento, achei que iria inevitavelmente sair do Estádio da Luz com uma música de Taylor Swift na cabeça, mesmo que não o quisesse. Que iria, ainda, acordar esta manhã com um refrão em repeat na minha mente. Nada disso aconteceu. Mistério. E, mesmo se tentar fazer esse esforço, não consigo cantarolar nenhuma das quase 50 canções que ouvi ontem. “Ah, nem a Shake it Off??”, dizem alguns mais conhecedores. Mmmh, talvez, mas com dificuldade: “Shake, shake, shake…”.
Conclusão: sim, hoje vivemos em bolhas de interesses, alimentadas por poderosos algoritmos, mas há umas bolhas maiores do que outras, e a de Taylor Swift é muito grande.