Pianista e compositor, Júlio Resende ‘nasceu’ no jazz, mas foi o fado que lhe deu palco ao gravar, em 2013, um disco de músicas de Amália tocadas unicamente ao piano, que lhe granjeou os maiores elogios. «O que Júlio Resende faz com o fado recorda-me o que Keith Jarret faz com os standards de jazz», escreveu o romancista espanhol Antonio Muñoz Molina, acrescentando que Resende é o pianista europeu mais original que ouviu depois de Tete Montoliu. O tremendo sucesso de Salvador Sobral trouxe depois mundo a Júilo Resende: foi ele quem produziu o primeiro disco do cantor e o acompanhou no Festival Eurovisão.
Fado Jazz Ensemble é o oitavo trabalho do pianista e compositor, que decidiu este ano envredar pela carreira a solo, deixando a banda que acompanha Salvador Sobral e terminando com o projeto Alexander Search, que combinava música eletrónica com os poemas em inglês de Fernando Pessoa.
O que o levou a decidir optar pela carreira a solo?
Eu tenho 500 discos para fazer, e o tempo e a energia não dão para tudo. A coisa com o Salvador [Sobral] foi crescendo muito, felizmente, e acabou por tomar algum tempo e energia que eu precisava para fazer outras coisas. Viajávamos muito. Este é apenas o primeiro passo.
Depois de Cinderela Cyborg, um disco em que explora linguagens eletrónicas, Fado Jazz Ensemble é quase uma volta de 180 graus, indo buscar outros estilos, mais próximo do jazz e até temas do cancioneiro popular. Porque é que sentiu necessidade de fazer algo tão diferente?
Gosto de fazer aquilo que ainda não fiz. Já tinha este projeto há algum tempo, e agora finalmente consegui tempo. Tive de me concentrar. O que está em causa é que todas esses trabalhos– Amália, Fado and Further, Cinderela Cyborg, Alexander Search – me representam. São um somatório daquilo que eu sou. Sou um músico, gosto de sons e silêncios, e não há estilos nem géneros. O género é a música. Sou um explorador de músicas, de músicos, de artistas, e inspiro-me. Normalmente nem é a música o que mais me inspira, é a vida em geral, as conversas das pessoas. Este disco é o somatório daquilo que tenho sido ao longo destes anos, alguém muito dedicado ao fado e alguém muito dedicado ao jazz. É o resultado orgânico e natural disso.
O jazz não terá sido o género de que o Júlio andou mais arredado nos últimos tempos?
Toda a minha música é baseada na improvisação depois da composição. Sou um improvisador por natureza. O jazz é uma ferramenta musical que se tem dedicado bastante à improvisação – mas não é a única. O fado improvisa bastante. A guitarra portuguesa, quando toca entre as frases dos fadistas, está a improvisar frases. Os próprios fadistas estilizam também frases diferentes nos mesmos fados. Nessa medida, sinto-me um compositor e um improvisador. E também um produtor, ou seja, alguém conceptual: gosto de produzir álbuns com um conceito muito forte.
Como é o processo de improvisação sobre algo que outra pessoa criou?
Antes de mais, tem de haver uma ligação afetiva forte. E depois é uma espécie de respeito desrespeitoso, ou desrespeito mostrando respeito. A ideia é que não seja o mesmo, mas que mostre respeito pela tradição, pelo que já foi feito, e se possa partir daí para o futuro.
Como escolheu os músicos que o acompanham neste disco?
São alguns dos músicos com quem mais toquei na vida, o Alexandre Frazão e o André Rosinha. Ando há anos para fazer um disco com o Frazão e finalmente consegui que isso acontecesse! O Rosinha tem feito parte da história. A grande novidade é o Bruno Chaveiro, um jovem da guitarra portuguesa de quem gosto muito. Estou muito feliz por ele se ter colocado nesta zona de desconforto e ter encarado o desafio com grande espírito.
Além do concerto de apresentação do disco em Lisboa, a 15 de dezembro, no Teatro Thalia, estão previstas outras apresentações ao vivo?
Vou dar um concerto no dia 29 de janeiro, em Loulé (no Cine Teatro), e outro a 20 de fevereiro em Oeiras, no auditório Eunice Muñoz. A cultura está a acontecer de um modo muito reduzido, mas está a acontecer. Já fui a vários concertos e é um momento transcendente: uma pessoa consegue viver ali a existência de que gostava mais.
O disco, faixa a faixa
Vira mais Cinco (para o Zeca)
É um vira, que é um estilo português, em 5 por 4, um compasso menos usual. Normalmente as músicas que ouvimos são todas em 4 por 4 ou em 3 por 4 (as valsas são em 3 por 4). É um belo compasso, bastante saltitante. E quando lhe decidi chamar Vira Mais Cinco, por causa dessa junção, achei que havia uma reminiscência do Zeca Afonso, quer no título quer na própria música. Como sou um grande admirador daquilo que o Zeca virou – virou Portugal para um sítio melhor, musical e politicamente – , achei por bem dedicar-lhe a canção.
Lira
É um arranjo de uma canção tradicional portuguesa dos Açores, lindíssima, que eu às vezes já tocava a solo e que agora decidi tocar com a banda. Esta ideia da guitarra portuguesa não era fácil. São instrumentos muito bonitos, mas que precisam de ser combinados com algum sensatez. Gosto de ouvir o Bruno Chaveiro a cantar as melodias. Nós os dois cantamos a melodia e gosto muito do resultado. Acho que ficou uma bela balada.
Fado das 7 Cotovias
É uma espécie de improvisação geral baseado no Fado Cotovia, que é o Fado Mouraria estilizado, só que em 7 por quatro. Mais uma vez, espero que não se oiça essa parte técnica. Obviamente que é mais arrojado, mas para mim o mais importante é que haja emoção.
Este Piano não te Esquece
Escrevi-o durante o confinamento. Na verdade, trata-se de um fado: tem alguma harmonia que muita vezes vai para outros caminhos, mas é um fado, uma espécie de fado menor mas com ‘sumo’.
Fado Blues for Deolinda
É um blues baseado no Fado Toninho, dos Deolinda. Não se ouve totalmente, mas quem o conhece e estiver atento, ele está por lá. Tal como aconteceu com o primeiro tema do disco, a dedicatória apareceu depois. Os Deolinda trouxeram coisas muito bonitas à nossa história musical mais recente.
All the Things_Alfama are
All The Things You Are é uma das grandes canções da cena jazz e do cancioneiro americano. Toda a gente a cantou. Trata-se de um belíssimo tema, muito bem feito, muito intricado melodicamente. Achei que o podia renovar, construindo-o de outra maneira. A melodia não está lá toda, está muito espaço. Ou seja, ali a música é feita de espaço, algo importante no fado. Este tema também tem uma relação com a Amália: ela gravou-o no disco que fez com temas do cancioneiro americano. E acrescentei Alfama no título porque Alfama é a casa do fado.
Tiro no Escuro
Compus esta canção há já algum tempo. Tem uma letra, que não aparece neste disco porque este é um disco instrumental, no sentido dos instrumentos. A melodia é muito bem cantada pela guitarra portuguesa e gosto da cadência tipo bolero que o Frazão [o baterista] inventou.
Fado Maior Improvisado
O Fado Maior e o Fado Menor são o início da cena do fado. Este é uma espécie de desgarrada, que termina numa grande desbunda. Muitas vezes no fado, os guitarristas vão aumentando o ritmo da canção, tal como acontece aqui. O Fado Maior é o lado mais solarengo do fado.
Profecia
Este é um tema com um facto inédito, o de eu ter também escrito a letra. A Lina Rodrigues já tocou comigo várias vezes. Adoro voz, é o meu instrumento favorito ao lado do piano. Não sei se vou voltar a repetir esse gesto de escrever a letra e a música… Gosto de trabalhar a música, gosto de trabalhar a palavra de grandes escritores, e sinto que a escrita não é bem o lugar onde me sinta mais confortável. Mas, talvez por isso, seja o lugar onde me deva desafiar mais…