É possível imaginar o mundo sem Tintim? É, mas não seria a mesma coisa… Os livros de banda desenhada com as aventuras de Tintim passaram de geração em geração, sem ganharem uma ruga nem amarrotarem a devoção dos milhões que o leram. Georges Remi (1907-1983), isto é, Hergé, artista da linha clara que não acreditava que os quadradinhos eram só para temas infantis, fez do seu atelier, na Bruxelas natal, um observatório para o mundo. O desenhador e argumentista convocava muitas influências para cada uma das aventuras do seu repórter com poupa e coragem de herói, fielmente acompanhado pelo cão Milú e por uma galáxia de tipos inesquecíveis: a herança das civilizações primitivas, os grandes mestres da pintura, as obras da vanguarda, os cabeçalhos dos jornais que marcaram a história do século XX, as ideologias, os povos de todos os pontos cardeais, as descobertas científicas, o cinema, o humor. E tudo começou lá atrás, a 10 de janeiro de 1929, com a publicação das primeiras aventuras de Tintim na revista semanal Le Petite Vingtième…
Antes e depois dessa data, houve outros Hergé, desconhecidos do grande público, que esta grande exposição, patente no Grand Palais, em Paris, até 15 de janeiro, e organizada com o apoio do Museu Hergé, revela. Aquele que acreditou que o seu destino era ser pintor abstrato, por exemplo. Mas também o jovem gráfico talentoso que ganhou (bem) a vida a fazer cartazes publicitários, e o rapazinho de Bruxelas que andava na escola de cinema, aprendendo a perceber as técnicas cinematográficas (de que faria bom uso na sua banda desenhada). Ainda o autor de primeiras ilustrações, divulgadas em publicações católicas belgas, e o artista, mais velho e perfeccionista, que, num certo dia de 1932, entendeu que as suas histórias de banda desenhada precisavam de mais pesquisa, documentação, substância da realidade. São muitas as facetas de Hergé, aqui contempladas.
Hergé está organizada em salas temáticas: Grandeza da arte menor; Hergé, amador de arte; O romancista da imagem; O sucesso e a tormenta; Uma família de papel; Hergé, coração valente?; A arte do reclame; A lição do Oriente; O nascimento de um mito; Hergé, o corvo curioso. Ao todo, estão patentes 175 obras de Hergé, incluindo um conjunto de 189 números. Juntam-se-lhes 21 obras de 14 artistas contemporâneos, entre os quais se contam Lucio Fontana, Serge Poliakoff, Tom Wesselman, Andy Warhol, Roy Lichtenstein, ou Miguel Ortiz Berrocal. A exposição apresenta ainda um acervo documental com fotografias, cartas, ilustrações de outros autores de b.d., objetos, filmes, documentários…
Esta mostra,cujo bilhete de entrada exige €13, decifra a arte de um artista que gostava de artes. Hergé Adorava Roy Lichtenstein, por exemplo, pela clareza do estilo, narrativa pontilhada cheia de onomatopeias e enquadramentos cinematográficos. Admirava os pintores abstratos que não precisavam de figuras. E, durante anos, o seu escritório teve, na parede, uma reprodução do quadro Intérieur hollandais I, de Miró. Colecionador, tinha obras de Andy Warhol, Lichtenstein,Fontana, Dubuffet… Mas também o cinema, a literatura, a arqueologia e o jornalismo marcaram a sua produção. É só procurar as pistas: O dragão vermelho que ornava a capa do livro O Lotus Azul saiu de uma capa de revista alusiva ao filme Shangai Express, a estátua pré-colombiana observada num museu é o fetiche arumbaya de A Orelha Quebrada; o gorila Ranko que assusta Milú em A Ilha Negra denuncia parodicamente King Kong…
Hergé criou um estilo próprio, e uma corrente na banda desenhada. Não desenhou apenas o eterno adolescente Tintim, ainda que este personagem, a sua obra-prima incontestada, se sobreponha a tudo o resto. “As estruturas narrativas dos Tintim são tão recortadas e depuradas como as suas formas visuais. Legível por todos, o mundo inteiro compreende Tintim. Em Bruxelas em 1929, como em Paris em 2016; em Calcutá na sua versão bengali como em Nova Iorque na sua versão inglesa: aos 86 anos como aos 6 anos (…) a universalidade da obra de Hergé passa por essa intemporalidade”, escreve Jérôme Neutres, diretor do agrupamento de museus associados ao Grand Palais, no catálogo. Aliás, é a primeira vez que a banda desenhada é exposta no Grand Palais: Hergé quis ser pintor e chegar aos museus. Afinal, conseguiu-o com uma poupa desenhada em poucos traços limpos.