Ainda que a lotação esgote, ficará sempre uma cadeira vazia durante todas as sessões competitivas do DocLisboa 2013, com o nome do cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, oficialmente presidente do júri, mas que não poderá estar presente, pois ficou interdito de viajar pelas autoridades do seu país. “Não o fazemos como homenagem, explicou Susana Sousa Dias, uma das diretoras do festival, mas como denúncia a todos os atentados à liberdade artística”. Augusto M. Seabra, curador da secção Riscos, esclarece: “Eticamente importa dizer que o Manuscripts don’t burn já estava comprado e o realizador convidado antes de lhe ter sido imposta esta interdição”. Repete-se assim, no DocLisboa, o que aconteceu em Cannes, com outro realizador iraniano, Jafar Panahi, que, por motivos semelhantes, não pôde viajar até França Todavia, enviou, clandestinamente, um filme feito em casa, com o título Isto Não é Um Filme, que se tornou um autêntico hino à liberdade de expressão e resistência.
O DocLisboa decorre mais um ano sob o signo da resistência. “Não apenas uma resistência financeira devido à crise, explica Susana Sousa Dias, mas resistência em geral, pois esta é a índole do festival. Uma resistência à ignorância, à estupidez, por um cinema enquanto prática artística e política”. Cíntia Gil, outra das diretoras, acrescenta:”No ano passado falámos em anos zero, agora já nos apercebemos de que se anunciam vários anos zero do cinema português”. O DocLisboa assume assim como parte ‘linha editorial’ a defesa do cinema português, não querendo apenas mostrar os filmes, mas também debater questões relacionadas com a sua produção. Outro vetor do festival é a ideia de arquivo, mas, segundo Cinta Pelejá, que completa o trio de diretoras: “O uso do arquivo, do passado, como forma de questionar o presente”.
COMPETIÇÃO NACIONAL
Entre os filmes portugueses, o grande destaque vai, claro está, para E Agora? Lembra-me, um documentário extremamente pessoal a partir de uma experiência de vida de Joaquim Pinto. O realizador submeteu-se a um tratamento experimental para a cura da hepatite C e relata-o na primeira pessoa, com a ajuda cúmplice de Nuno Leonel. O filme ganhou o prémio especial do júri no prestigiado Festival de Locarno e passou, recentemente, no Queer Lisboa. No Doc, saltou para a competição internacional, onde será um dos bons filmes, num programa riquíssimo.
Margarida Leitão, realizadora que nos habituou a olhar de esquerda, de denúncia social, em filmes tão fortes com Muitos Dias tem o Mês, aqui surpreende tudo e todos ao escolher o mais politicamente incorreto dos temas. Em Cara a Cara, a realizadora faz um retrato dos forcados, dividindo-se entre Portugal e o México. Entra num universo obscuro, revelando motivações e práticas, entrando nos balneários que, por vezes, fazem lembrar os de uma equipa de rugby. É um documentário rigoroso, com um olhar próximo mas nada militante. A realizadora consegue fazer o retrato, mas faz por não lançar o debate das touradas dentro do próprio filme (ele pode ser sempre feito exteriormente). Evoca antes a camaradagem extrema, o espírito de entreajuda, mas também os perigos eminentes, ilustrados de forma bastante dramática. É, sem dúvida, um dos melhores filmes da competição nacional.
Um certo sentimento nacionalista está presente n’A Campanha do Creoula, de André Valentim de Almeida, sobre uma expedição às Ilhas Desertas em 2010, que ganha pertinência reforçada, nos dias de hoje, devido à recente disputa diplomática entre Portugal e Espanha. E é simbolicamente que André Valentim aborda essa perspetiva colocando, em contraponto, o jogo de futebol Portugal-Espanha, a contar para o Mundial da África do Sul, que decorre durante em simultâneo. O realizador abre ainda um outro plano, uma janela para o autorretrato. O filme satisfaz medianamente a curiosidade sobre aquelas remotas ilhas do arquipélago da Madeira, que representam geograficamente os pontos mais a sul do território português. E o resultado do Portugal-Espanha de 2010, já se sabe, resultou na eliminação da equipa das quinas. Já a disputa do território das Desertas até ver tem sido favorável ao nosso país.
Por outros mares andou Gonçalo Tocha. O realizador, de ascendência açoriana, tem-se caracterizado por uma fixação no arquipélago dos Açores, primeiro em Balaou, depois Isto é na Terra não é na Lua (sobre a Ilha do Corvo). Agora, a convite do projeto Estaleiro, de Vila do Conde, ruma ao continente, mas não abandona o mar enquanto temática. Em A Mãe e o Mar. Gonçalo Tocha parte à procura de Vila Chã, uma aldeia piscatória, outrora dinâmica e ágil, que tinha a raríssima tradição de pescadeiras – mulheres que também vão ao mar. O que encontra são pessoas e memórias de tempos ausentes (ver entrevista com Gonçalo Tocha no site do JL).
De memórias é feito Os Dias com Ele, um filme de uma realizadora brasileira, com um assunto brasileiro, mas que justifica a sua presença na competição nacional pelos factos de ter co-produção portuguesa e de ser filmado em Portugal. Maria Clara Escobar filma o seu próprio pai, Carlos Henrique Escobar, um prestigiado filósofo, dramaturgo, poeta e professor brasileiro, que foi preso e torturado durante a ditadura militar, e que em 2000, depois de se reformar, mudou-se para Portugal. Tem uma riquíssima história de vida e sabe muito bem contá-la. O filme acaba por funcionar como uma grande entrevista, com vários planos naturalmente, onde há, simultaneamente, uma desconstrução da própria ideia de documentário.
Em contraciclo, Susana Nobre apresenta Vida Ativa, um fascinante conjunto de testemunho de participantes no programa Novas Oportunidades, formado na legislatura de José Sócrates, com o objetivo de requalificação profissional, entretanto extinto pelo Ministério de Nuno Crato. O que encontramos, nas entrevistas preliminares, são histórias de vida que servem para fazer uma reflexão sobre o próprio trabalho e a sua precariedade, ganhando também por isso especial pertinência nos dias que correm.
Miguel Moraes Cabral conta uma história da terra e da tradição, ao focar-se num amolador, profissão quase extinta, em Os Caminhos de Jorge. interessa-lhe a memória das histórias de um tempo ausente, mas também a forma como o mundo se transforma em seu redor.
Marco Martins, presença regular nas competições do DocLisboa, criar um objeto anfíbio, ao estilo da experiência que fez em Traces of a Diary. O título resume a idiea: Twenty-One-Twelve The Day the World didn’t end. No dia 21 de dezembro de 2012, o tal que, segundo algumas teorias rebuscadas, o mundo iria acabar, o realizador acompanha 12 habitantes da terra, de locais distintos, ao longo desse dia, com imagens puras, que falam por si, sem recurso a narrador ou qualquer outro elemento explicativo. O resultado é um verdadeiro pulsar da vida humana no planeta terra. E depois… o mundo não se acabou.
Em competição estão também seis curtas-metragens, com dois destaques claros. Tabatô, de João Viana, o filme que foi premiado em Veneza, filmado na Guiné Bissau, ao mesmo tempo de A Batalha de Tabatô, que já teve estreia comercial. Contudo não se trata de uma versão curta, apenas uma história mais pequeno, em roda do mesmo ambiente. Outro destaque é Samuel Lamas, presença regular no Doc, tendo sido premiada na edição passada, com Terra de Ninguém. Agora apresenta a curta Theatrum Orbis Theatrum, uma obra experimental e poética, bem ao seu estilo.
COMPETIÇÃO INTERNACIONAL
O próprio festival escolheu dar destaque a Pays Barbare, de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, ao escolher o filme para a sessão de abertura. Uma poderosa revisitação do fascismo italiano, devidamente misturado com o colonialismo na Etiópia, do qual se pode sempre tirar elações para o presente. Um filme político, como é tantas vezes o timbre dos documentários selecionados pelo Doc.
Outros grandes nomes estão em competição. O chinês Wang Bing fez uma longuíssima metragem, de quase quatro horas, onde mostra o dia-a-dia num hospital psiquiátrico isolado no sudoeste da China. O israelita Avi Mograbi, no capítulo das ficções do real, fantasia um Médio Oriente de comunidades unidas. Stéphanie Régnier, descobre a personagem de Kelly’ dividida sentimental e geograficamente entre três mundos: França, Peru e Guina Francesa. O indiano Anand Patwardhan documenta o massacre de Ramabai, em que a polícia matou dez dalit, que se manifestavam contra a profanação da estátua de Ambebedkar (o escolhido por Gandhi para escrever a constituição indiana). Luca Magi percorre a Itália de Viaggio com Anita, um argumento não realizado de Federico Fellini. Kevin Jerome Everson reflete sobre a perda dos registos e da memória, regressando às cheias do Rio Mississípi de 1973, em The Island of St. Matthews. E a crise bem presente no filme grego To the Wolf, de Aran Hughes e Christian Koutsospyrou, que acompanha a luta pela sobrevivência de dias famílias de pastores.
No capítulo das curtas-metragens, em destaque Harun Farocki. O realizador que já mereceu uma retrospetiva no DocLisboa é um revisitador constante da própria história do cinema. Em A New Product emerge no estranho mundo das consultorias empresariais na Alemanha. Mas também outros pequenos filmes, como Achura, que documenta a importância da batalha de Karbala (sec IX) para a minoria xiita na Turquia. Ou La Huella, sobre a violência política no Peru, em sintonia com o programa dos 40 anos do golpe militar do Chile.