Não há princípio, nem meio nem fim – ou até pode haver, admita-se, mas como dizia o outro, não exatamente por esta ordem. Porque o filme é um quebra-cabeças, mas daqueles bons – mesmo muito bons – se não for olhado com o intuito “linearista” de o descodificar. Tristes aqueles que vivem apenas do que faz sentido, tristes também os que nos filmes só lhe buscam a lógica sequencial. Reygadas é um realizador tão fascinante quanto perturbador, tão enigmático quanto prosaico, tão inquietante como comovedor… Cannes tem-lhe estado sempre muito atento, este filme valeu-lhe o prémio para Melhor Realizador. E é absolutamente deslumbrante, num emaranhado de cenas que tanto podem ser oníricas, como reais, memórias como ecos ou reverberações, algo que está acontecer, que já aconteceu, ou podia acontecer… como as lembranças, e o pensamento, em suma, que se misturam, indistinguem, errantes sempre… Abre com uma genial cena de uma menina bebé (a própria filha do realizador) num campo alagado, rodeada por animais, enquanto o céu se desembrulha numa tempestade ameaçadora. As crianças são o contraponto de ingenuidade e pureza porque nada do que é mau na natureza humana passa ao lado deste filme: a crueldade, o vício, a vingança, a cobiça, a inveja… Desde o espancamento brutal de um cão, ao mexicano que quer derrubar a árvore mais deslumbrante, até ao resort de swingers nudistas, em que as saunas levam nomes de filósofos, até aos ruídos da matilha que arfa e abocanha carnes e ossos, ao absurdo de uma auto-decapitação. Além de uma lente esquisita que desfoca os rebordos como uns óculos defeituosos, o filme possui um demónio vermelho, corpo de luz, pernas de bode, apenas testemunhado por uma criança, e que carrega pela casa silenciosa, uma maleta de médico.
Post Tenebras Lux
De Carlos Reygadas. Post Tenebras Lux, com Adolfo Jiménez Castro, Nathalia Acevedo, Willwbaldo Torres. Drama. 120 min. México. 2012