É sintomático e fascinante o que se está a passar com o ‘novo’ cinema português, em termos criativos, desconstrutivos e de desafio em relação às normas do próprio cinema. São tantas as propostas originais e exploratórias, semelhantes mas diferentes, que o elevado reconhecimento internacional espelha apenas uma parte do potencial. E será criminoso se uma política errada de subsídios, de desinvestimento cultural, acabar por matar por maltrato aquela que talvez seja, em traços largos, a melhor geração de sempre do cinema português. Porque são incrivelmente ricas, em forma e conteúdo, propostas cinematográficas tão diferentes como as de Miguel Gomes, Sandro Aguilar, Basil da Cunha, Gonçalo Tocha, João Salaviza ou João Ferreira (há muitos outros). Nomes a que se pode acrescentar com convicção, a dupla Filipa Reis e João Miller Guerra, que após três filmes, está prestes a afirmar-se como o novo caso sério do cinema português. Mostra disso é o tão ‘refrescante’ Fragmentos de uma Observação Participativa, curta-metragem que antecede Noutro País, de Sang-soo Hong, e que vale tanto a pena ver como o filme que se lhe segue. As fronteiras entre documentário e ficção há muito que se exploram de forma indefinida, em busca de uma solução aquosa e talvez pós-moderna. É o que fazem de forma diferente de Pedro Costa, João Canijo ou Miguel Gomes. Fragmentos de uma Observação Participativa começa logo por essa descontração, numa espécie de exercício de ‘honestidade’ para com o espetador, como quem se propõe a fazer um filme que não nos engane, que não nos minta. Embora, saibamos todos, que o cinema mente sempre, é só uma questão de lhes desencobrir as camadas. A dupla, tal como Pedro Costa e Basil da Cunha, tem por princípio trabalhar com ‘não atores’, em bairros ou comunidades específicas. Fazendo um verdadeiro trabalho de observação participativa, em que criam ficções do real. Ou seja, há uma encenação das suas próprias vidas feita por estes não-atores. É o que acontece neste novo filme, vencedor de um prémio no IndieLisboa, que se centra de forma original num grupo de mulheres brasileiras, havendo uma declarada intenção de estudo antropológico. Fala-se muito de sexo e relação humanas, com humor e, por uma vez, afastando-se do drama social em si. É um filme de afetos e desafetos, de olhares sobre quem olha, como um fotógrafo que fotografa outro fotógrafo. A não perder. Foi muito bem escolhida a junção deste filme Num Outro País, obra do sul-coreano Sang-soo Hong que tem Isabel Huppert no principal papel. Não se trata de uma desconstrução cinematográfica, mas antes de uma desmontagem narrativa, um pouco ao estilo que Alain Resnais fez em Fumar/Não Fumar, mas de forma mais abstrata. Parte da questão do ‘estrangeiro’, em ambiente exótico e nebuloso, em que a protagonista tende a perder-se, apesar de perceberemos que aquele mundo não lhe é absolutamente incógnito. Mas, ao contar a sua história, ou as suas pequenas histórias, Sang-soo Hong resolveu fazer uma constante remistura dos elementos, de forma que o que nos sobra não é uma linha firme em que racionalmente nos possamos apoiar, mas antes um difuso colorido sentimental em que, à vez, o sonho de vai confundindo com a realidade, ao ponto de se mesclarem de tal forma que não sabemos distinguir uns dos outros. Noutro País é uma caminhada de emoções para quem anda à procura de si próprio. Fragmentos de uma Observação Participativa, de Filipa Reis e João Miller Guerra, com Paula C. Togni, Monique Montenegro, Verônica Silva, 23 min Noutro País, de Sang-soo Hong, com Isabelle Huppert, Kwon Hye Hyo, Jung Yu Mi, So-ri Moon, 89 min
Fragmentos : A realidade reinventada
O cinema desconstruído em ragmentos de uma Observação Participativa, de Filipa Reis e João Miller Guerra e Noutro País, de Sang-soo Hong,
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