Há a Sónia que esconde bilhetinhos de amor entre as cerejas que prepara para o “seu homem”. A Cassilda que guarda uma música de amor “só dela” da dupla sertaneja Zézé Di Camargo e Luciano. A Paula que dantes cantava o fado, mas deixou porque o marido não gostava. E a Marta Sofia… que é um barco. A esta agremiação de cromossoma X (“só gajedo”, numa expressão que o realizador João Canijo aprecia), junta-se a atriz Anabela Moreira. E assim surge É o Amor, um documentário híbrido, porventura o filme mais solar do realizador, onde os casais se tratam por “môr”, crianças de três anos ganham i-pads, as festas de casamentos têm uma estética de Bollywood, as mulheres se embelezam com madeixas no cabeleireiro e “nails” laranja na esteticista para receberem os maridos ao fim de semana…. – tudo isto com cheiro a maresia e a banda sonora da tal dupla romântica lá do sertão, que elas cantam no carro e no cais: “É o amor que faz eu pensar em você e esquecer de mim”. Canijo descobriu este pedaço de Portugal, em estado de placidez aparente, de um sentimentalismo pingado e a cheirar a peixe, mas digno – enquanto o resto do país se desfaz em cacos -, e onde ainda é possível as pessoas viverem focadas no amor e na estabilidade conjugal. Foi no ano passado (apenas uma semana de rodagem, e um mês de preparação prévia) quando o Curtas Vila do Conde o convidou para realizar uma curta-metragem, a pretexto da comemoração dos 20 anos do festival, realizada em Caxinas, contando, enquanto equipa técnica, com os estudantes de cinema do Porto. A curta Obrigação tornou-se longa. Descobriu uma Caxinas, que já foi terra de pescadores pobres e hoje é zona de ricos e remediados – “pelos menos acima da média”. E umas personagens que o encantaram – e que parece que demonstram na prática e na realidade, a teoria que João Canijo vem defendido na ficção: a de que “as mulheres são fascinantes”; “muitos mais interessantes do que os homens; e por isso prefere trabalhar com atrizes, “porque elas têm mais capacidade de entrega” e “são organicamente recetoras e têm o dom da dádiva”, referindo-se a Steve Jone (autor de Almost Like a Whale), que “explica geneticamente o que Freud explicava sexualmente”. As mestras. As donas das embarcações, as mulheres dos mestres das traineiras. Eles a lidar com o mar alto, as redes, os radares, as correntes, as pescarias. Elas a aguentar o barco em terra. Na semana em que eles passam na faina, elas cumprem aquilo a que chamam “a obrigação”: os negócios do peixe, os afazeres da lota, da casa, da cozinha, dos empregados, dos filhos… E da cama, quando eles desembarcam ao fim de semana: “Eles ganham a vida, elas governam-na”, explica. “As mestras são românticas, sentimentais e pragmáticas, ao mesmo tempo. Não me interessava caricaturar, mas captar o que é genuinamente feminino”. Anabela Moreira ultimamente tem acompanhado sempre o realizador , sujeitando-se a “experiências limite”. Em Mal Nascida, aprendeu “a tocar” vacas, em Trás-os-Montes e afeiçoou-se a um porco; em Noite Escura, esteve duas semanas “a estagiar em casas de alterne”, e as alternadeiras eram as consultoras técnicas (hoje chamar-se-iam advisors); em Sangue do meu Sangue viveu numa casa insalubre do bairro Padre Cruz, “a arranjar os pés às vizinhas”; em Caxinas aprendeu a separar o peixe e alguns segredos mar, que as “fanecas mais roídas pelos caranguejos são as mais saborosas”, e a ter admiração por aquelas mulheres e pelo amor que elas apregoam, como dantes, se calhar, faziam ao pescado para o vender. Foi uma espécie de batedora de terreno, fez uma repérage sociológica, inseriu-se na comunidade, trocou confidências, travou conhecimentos, amizades, intimidades… “A Anabela conseguiu num mês o que normalmente só se consegue num ano. Tem essa capacidade rara, a de ganhar confiança, de estabelecer laços, descobrir as histórias, sempre fez isso nos filmes todos… É muito alerta aos episódios da vida real, filmou estas mulheres o tempo todo, entrou nas suas casas, nas suas famílias e rotinas… E foi desenvolvendo uma espécie de guião…”. Eles foram o mestre e a mestra desta embarcação-documentário. Ela é atriz, mas também encenadora, incitadora de diálogos e situações… e até operadora de câmara e realizadora: há uma parte (as cenas do casamento) que é filmada por ela. Pode ser a atriz que se intromete no quotidiano das mestras de Caxinas, aprende-lhes os jeitos e os ofícios, como método de se contaminar, de se preparar um papel para um filme. Mas também pode ser ela própria, talvez, quando se deixa emocionar com a música sertaneja, e quase chora, porque no amor tem sempre medo de ser abandonada; ou quando confidencia, pesarosa , na casa de banho de uma pensão, que está farta de ser atriz – “é a pior profissão do mundo”. E queixa-se: “Elas são muito mais interessantes que eu…”. Prefere não dizer se esta Anabela era ela ou não, para manter o mistério, “não quero quebrar a magia, há coisas que devem ser deixadas em aberto”, porque acha sempre que tem tendência para se expor demasiado. Para já, não usa fitinhas no acabelo azul a condizer com a t-shirt ou unhas “de um cor de laranja impossível”. Nem argolas nas orelhas. Mimetiza a aparência delas, a forma como usavam o cabelo, e até um bocadinho da forma como falavam. “Não sou pessoa de julgar”. Foi educada a lidar com um empregado ou um presidente, tanto lhe faz. Pela Sónia sente uma admiração imensa: “Ela tem a vida perfeitamente organizada, é impressionante. Sabe exatamente o papel que tem de representar, e fá-lo com grande consciência. Sabe como é suposto funcionar um casamento, a vida familiar…Tem a perfeita noção do que deve ser, como mulher, mãe e mestra. Não tem angústias”. Nada é espontâneo, nem os bilhetinhos nas cerejas, investe rios de dinheiro em festas familiares, naqueles vídeos, onde exibe a perfeição daquele casamento/parceria/negócio. E ao longo do filme quanto Sónia vaimanifestando a sua firmeza, mais Anabela vai expondo as suas ansiedades e inseguranças. Mas não sabe, de facto, dizer “onde começa a actriz e acaba a personagem”: “Ali eu sou eu e não sou eu. Sou um híbrido. Estava emergida na realidade e não a contracenar com outras atrizes”. Mas ao mesmo tempo até estava, hesita. Porque, e nisto reside parte do encanto do documentário, também estas mulheres procuram mostrar o seu melhor lado, o lado cor-de-rosa, como se fossem peixeiras-princesas, e vivessem num mundo encantado, numa espécie de Eurodisney, onde tudo parece correr bem com o seu príncipe/marido/mestre. Tal como elas, Anabela procurava o melhor ângulo da história para “entregar” a João Canijo. Há uma cena em que Sónia (a mestra escolhida num casting de mais de uma dezena), contempla embevecida a sua felicidade no plasma da sala, um vídeo familiar, com ela e toda a família em “trajo de gala” a cantar “o Francisquinho, meu amor”, o filho mais novo de três. “Todas as pessoas representam. Elas querem mostrar-se maravilhosas. E estão em representação permanente, com aquelas relações idealizadas, amores exacerbados”, conta Anabela. Têm um cuidado imenso com as aparências, andam de fato de treino durante a semana, para frisarem bem que “estão de serviço”, enquanto o marido está no mar. E depois engalanam-se todas para a chegada dos maridos ao sábado, “arranjam os cabelos, o corpo, fazem massagens: “É fácil ser a mulher perfeita durante dois dias…”. E também é fácil fazer julgar aos homens ( “amor da minha vida”, “o meu rambo, que vinha pelo cais de alças”) que podem ser extremamente machistas- “são tratados como uns reis, uns príncipes”- se isso só durar duas noites, porque, na realidade, aquela é uma sociedade matriarcal. … Sónia, a mestra dá lições sentimentais a Anabela, o segredo de um casamento perfeito, já a mãe lhe dizia, “nunca vos zangais ao mesmo tempo, sempre um de cada vez”. Prometeu ir a Fátima se conseguisse casar com o seu homem, ensina Anabela a rezar, explica-lhe que para ela encontrar o amor tem de sofrer. Ele estão sempre ausentes, mas são sempre o centro das conversas e das atenções. Na vida e no filme do Canijo, em que os homens estão quase sempre fora de plano, seres balbuciantes, por quem o realizador não parece demonstrar o menor interesse. “O João Canijo proporciona-nos este privilégio imenso enquanto actrizes que é a de fazer estágios profundos , a de viver mesmo outras vidas, porque a arte não é captar a aparência, e a superficialidade. Senão for assim, corre-se o risco de cair no cliché e no estereótipo”, continua. Por isso ela sujeita- se a tudo – ou quase tudo. Gosta do “processo de se diluir, de criar um espaço comum, de ouvir certas coisas que não gosto e não moralizar, não ver o ridículo nem o que está errado. As pessoas são aquilo e eu respeito-as e gosto delas por serem assim”. E o que é conviver durante um mês e meio com a banda sonora do Zezé ao pé de deixar-se engordar 25 quilos e esquecer a depilação ou rapar o cabelo para entrar dentro daquela Electra transmontana, sinistra e vingativa? Duro, sim, mas nada saturante. “Acho maravilhoso poder trocar de pele. O pior vem depois, quando o papel termina, e a pessoa sente um vazio, entregue a si própria, sozinha consigo… Sem uma função. Ser actriz é isto, sentir-se vazia, como se estivesse sempre a ser despedida temporariamente da vida”.
É o Amor A VIDA É BELA
Depois do sacrifício e vingança de Oresteia (em Noite Escura e Mal Nascida), depois do incesto, do amor incondicional (em Sangue do meu Sangue), João Canijo encontra o romance perfeito do "viveram felizes para sempre" numa lota, entre galochas, aventais, fanecas, salpicos de polvo e a música de Zézé Di Camargo. É o Amor (em competição no IndieLisboa; a 25 de Abril nas salas), um documentário cheio de representação lá dentro- ou talvez não- em que Canijo foi "o mestre" a pescar imagens, e a Anabela Moreira "a mestra" que as fazia render...
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