(Cosmopolis tem estreia mundial no Festival de Cannes, na sexta-feira, 25 de maio. Por cá, a antestreia é no dia 29, em duas duas sessões, às 20h e às 22h, no Centro Cultural de Belém, no Grande Auditório. A 31 de maio, estreia nas salas)
Um editor, amigo seu de longa data, descreveu-o assim: “É um génio literário anexado a um tipo normal.” Don DeLillo, nascido em 1936, infância passada no Bronx, entre missas e jogos de baseball, operário de publicidade durante cinco anos até se fechar num quartinho pobre a escrever romances, ri-se desta imagem, à distância da linha telefónica. Para muitos, o escritor norte-americano é um Messias literário. Um autor pós-modernista, complexo, retratista de uma América em convulsão e de um mundo a tropeçar no caos, multipremiado e reservado, que tem perto de uma vintena de romances, além de volumes de contos, ensaios e peças de teatro. Um dos seus romances menos amados, Cosmopolis (originalmente editado em 2003, com edição portuguesa na Relógio D’Água), estreia-se na próxima semana em Portugal, numa adaptação cinematográfica feita por David Cronenberg, produzida por Paulo Branco, protagonizada por Robert Pattinson (o vampiro da saga Twilight, aqui a representar uma outra espécie de vampiro contemporâneo), Paul Giamatti, Juliette Binoche, entre outros. O filme é, para dizer o mínimo, uma experiência hipnótica e disruptiva. Um bilionário de 28 anos, Eric Packer, refugiado dentro da barriga tecnologicamente artilhada de uma limusina branca, quer ir cortar o cabelo – apesar das ameaças à sua vida, de uma visita presidencial que fecha a cidade, do funeral de um artista (a que o cantor K’Naan empresta a voz) e das manifestações violentas de indignados (ressonância poderosíssima da atualidade nossa de cada dia). Dentro do tubarão branco com rodas, há tecnologia e niilismo, há sexo e exames à próstata; na rua, há os desencontros com uma esposa, poeta milionária, com quem encena conversas normais à mesa da refeição (substituta de um leito conjugal) – “É assim que as pessoas normais fazem, não é?” A rapariga responde: “Como é que hei de saber?” Lá fora, o mundo acontece, parecido com os nossos telejornais. A redenção tarda em chegar.
Habitualmente, os seus protagonistas, embora tenham destinos especiais, podem fundir-se na paisagem coletiva. Depois de vermos Cosmopolis, a maioria de nós tem dificuldade em sentir empatia com o protagonista bilionário, espécie de semideus alienado. Estamos a falhar algo, neste retrato?
É um retrato perturbador. A quantidade imensa de riqueza e de privilégios nas mãos de poucos é um dos temas que preocupam hoje as pessoas. Têm surgido protestos sociais, como sabemos. Este livro foi-me inspirado pelo enorme número de limusines brancas que eu observava em Manhattan, no início da década passada. Pareciam estar em toda a parte. Ocorreu-me que poderia ser interessante perceber que tipo de homem estava atrás daquelas janelas fechadas. O indivíduo que imaginei era extremamente jovem, imprudente, com um sentido de destino e de desgraça usualmente associados a pessoas mais velhas. Mas pode ser que o dinheiro, por si mesmo, empurre essa direção. Tanto o romance como o filme têm uma noção acelerada de tempo: o tempo parece estar a mover-se mais depressa, e ocorreu-me que isso se relacionava com o dinheiro. Costumávamos dizer que “tempo é dinheiro”. Mas, aqui, o dinheiro é tempo, determina o tempo. Eric Packer vive uma vida inteira num dia. Num dos ecrãs da sua limusine, ele vê até os acontecimentos que ainda não ocorreram.
Como o gesto de passar o seu dedo pelo queixo, que ainda não fez mas que o ecrã já revela, lê-se.
Sim. E no fim do romance, ele vê-se a si próprio morto, refletido no ecrã do relógio de pulso, antes de morrer. A aceleração do tempo, o tempo e o dinheiro, o tempo e a perda… Não é um personagem que faça os leitores, ou o público, sentirem-se confortáveis.
Num livro anterior, Mao II (Assírio & Alvim, 2004), escreveu que “o futuro pertence às multidões”. Em Cosmopolis, foca-se num individualista que proclama: “Quando [ele, Eric] morresse, não acabaria. O mundo é que acabaria.” É a lição da história?
Creio que é o que motiva Eric. Mas também é verdade que aquilo que ele faz, ao mover-se na sua limusine pela cidade, é atropelar os outros, por exemplo uma multidão de manifestantes, de que ouvimos falar atualmente em várias partes do mundo.
Afinal, sempre tem o dom profético que lhe atribuem devido aos seus temas e à famosa capa original de Submundo (Sextante, 2010), que, em 1997, mostrava um avião a dirigir-se para o World Trade Center, como aconteceu nos atentados do 11 de setembro de 2001?
[risos] Não tenho, não tenho…
Está do lado da multidão que protesta?
Não me vejo como um romancista que assume posições. Tento apenas seguir os meus personagens até onde eles me levam. Trabalho no dia a dia, página a página. Não faço planeamento nem determino a priori o que o personagem vai fazer. Tendo a ser conduzido pelo que acontece, pelas ideias que me vão ocorrendo, até pelo progresso das frases. Às vezes, o simples ato de escrever uma frase leva-me à iluminação. As pessoas esquecem-se de que um romance é composto de linguagem, o que é extraordinariamente importante. Um filme e um livro, apesar das semelhanças que possam ter, são formas de vida diferentes. Este é o meu primeiro romance adaptado ao ecrã. Achei o filme forte e sem cedências, o tipo de obra que David [Cronenberg] faz habitualmente. Fiquei impressionado.
A distância entre esta limusine-nave espacial, as informações que chegam sempre por terceiros, o “brilho do cibercapital” refletido nos ecrãs de cotações… Estamos no paraíso ou no inferno da realidade virtual?
Há tantos níveis diferentes de conflito, dependendo da sociedade ou país em que estamos…Todos sabemos das atuais dificuldades do euro. Na América, há uma forte separação entre os que têm opiniões mais conservadoras e os mais liberais. Isso vai ser sentido vivamente nas próximas eleições. O dinheiro é um elemento forte, nessa realidade. A incrível quantidade de riqueza detida por uns poucos perante tanta gente, e tantos licenciados que pediram empréstimos para pagar os estudos, e que não conseguem emprego… Aqui estamos nós. Dinheiro, dinheiro, dinheiro…
Ou ratazanas, ratazanas, ratazanas. De onde vem esta piada, e metáfora perfeita, da unidade monetária passar a ser uma ratazana?
Em Nova Iorque, a ratazana é um símbolo dos trabalhadores em greve. Não sei se acontece também noutros países, mas aqui os grevistas colocam um boneco gigantesco que representa uma ratazana, para informar os transeuntes de que está a decorrer um conflito. No filme, obviamente, as ratazanas são utilizadas para representar o protesto contra a riqueza.
“Quanto mais visionária a ideia, mais atrás ficam as pessoas”, lê-se, e vê-se. Como aconteceu este Ponto Ómega [título do romance sobre um exílio americano de um ex-operacional militar da administração Bush no Iraque]?
Sim, mas isso é algo dito pelo meu personagem. Eu não acredito em tudo o que os meus personagens dizem. Frequentemente, sou surpreendido pelas suas afirmações, mas não paro para pensar: “Será que esta reflexão é verdadeira?” Em ficção, só a verdade do personagem importa – é o que a torna digna de ser posta no papel. Eric Packer tem todos estes consultores [um mago da tecnologia, uma especialista em teoria, uma curadora, a guarda-costas dominadora…] que lhe aparecem na limusina, e a minha intenção era que eles afirmassem coisas provocatórias ou até bastante disparatadas.
A consultora de arte, diz: “A vida é demasiado contemporânea…”
[Risos] Não sei bem o que a personagem quer dizer com isso, mas é, de alguma forma, uma frase divertida.
Ao longo do filme, os “jovens lobos” descartam coisas porque “não é um original”. Está a falar só da tecnologia, a sua dita velha inimiga?
A tecnologia está a mudar ao micro segundo, e é difícil ser-se original. Novos avanços ocorrem, parecendo encolher o mundo. Tudo fica mais pequeno à medida que a tecnologia fica mais sofisticada. Sim, as pessoas tendem a acreditar que sou inimigo da tecnologia. Uma das razões porque não tenho e-mail é apenas a de não querer ter esse nível de comunicação: as pessoas que conheço estão a enlouquecer com a quantidade de e-mails que recebem. Tenho que ter tempo para mim e o meu trabalho. Mas uso tecnologia (ri-se).
“Escrever é uma forma concentrada de pensar”, disse. É a razão da sua escrita carregada de “teorias”?
É o processo que resulta comigo. Mas faço uma escrita tridimensional, não escrevo ficção à maneira de um ensaio. Preciso de ver, de ouvir e de sentir o que está a acontecer. O leitor tem de estar consciente do cenário material onde as personagens se encontram. Em Cosmopolis, Eric está praticamente sempre na limusine mas há descrições de personagens, do interior do carro, das ruas. Isto é o meu início. Creio que existe aí uma influência do cinema.
As janelas da limusine funcionam como ecrãs que mostram a realidade. Parece ter como projeto escrever um A a Z da contemporaneidade…
Não é intencional, mas sou um escritor contemporâneo e os assuntos sobre os quais escrevo, alguns eventualmente acontecerão. O meu trabalho tem sido moldado, desde o início, pela vida neste país [EUA] nos anos 60 e 70: pelos assassínios, pelos protestos, pelos conflitos raciais, pelo incendiar de autocarros e de ruas, que aconteceram… Acabei por escrever um romance sobre o assassínio do presidente J.F. Kennedy [Libra, Editorial Presença, 1997], algo que nunca imaginei fazer. Se a minha escrita tem um tema é o de que vivemos em tempos perigosos.
De que maneira esses tempos se refletiram em si?
Os anos 50, nos EUA, foram uma década plácida em que havia prosperidade e paz: eram os anos do pós-guerra, as pessoas começavam a fazer dinheiro, a comprar carros, não havia tumultos. O conflito racial ainda não estava evidente. De repente, os anos sessenta pareceram trazer todas estas convulsões de uma só vez. Tal deixou-me uma impressão fortíssima. Em última instância, foi a Guerra Fria que moldou o meu livro maior, Submundo (Sextante, 2010) [romance em que traça décadas de história americana, partindo de um mítico jogo de baseball em que os Giants venceram os Dodgers, e atravessando todos os acontecimentos relacionados com a Guerra Fria].
Um outro período traumático foi o do 11 de setembro, sobre o qual escreveu em O homem em queda (Sextante, 2007). Quis curar feridas?
Eu não tinha ideia de que iria escrever sobre esse acontecimento, até ter sido capturado pela imagem de um homem coberto de poeira e de fumo, agarrado a uma pasta, a correr, fugindo de um arranha-céus a desmoronar-se. Pensei que tinha de conhecer este homem, de saber mais sobre ele. E percebi, repentinamente, que essa pasta não lhe pertencia. Só isso. Foi esse o mistério que quis resolver, foi por isso que escrevi o romance.
O cenário dos indignados, que surge em Cosmopolis, evoca, por exemplo, a crise nos países europeus. Quando viveu na Grécia, sentiu que este cenário era previsível?
Estive lá durante três anos e três meses. Foi uma experiência enriquecedora. Estava rodeado de conflitos que não diziam apenas respeito à própria Grécia. Conflitos entre esquerdistas e a polícia. De vez em quando, ouvia-se uma bomba, ou um autocarro explodia. Havia incêndios em lojas. E havia Beirute: Atenas estava cheia de pessoas que tinham fugido do Líbano. E havia, ainda, o Irão e a revolução… Sentia-se um dramatismo internacional. Enquanto escrevia Os Nomes [Relógio D’Àgua, 2007], via acontecimentos que, no dia seguinte, colocava no livro – algo que raramente me acontecera noutras ocasiões.
A realidade alimentava a ficção.
De forma muito direta, sim. Estava rodeado de idiomas: existia a linguagem grega falada mas também o grego antigo, clássico, nos monumentos e museus. Compreendi, então, a beleza do alfabeto como forma de arte, nessas letras gravadas em pedras antigas. Isso influenciou o meu trabalho: comecei a ler as frases não apenas pelo que diziam e significavam, mas olhando para as próprias palavras. Ainda hoje o faço. Uso uma máquina de escrever antiga, porque tem teclas grandes e posso ver a forma das letras, e, às vezes, trabalho numa frase pela ligação visual entre palavras e letras.
Em Cosmopolis, a arte não escapa ao apetite voraz e destrutivo do capital. Eric quer comprar a Capela Rothko, juntando-a ao apartamento de 48 quartos, dois elevadores e tanque de tubarões. A arte, a escrita, são refúgios para tempos conturbados?
Quando vi o filme, já me tinha esquecido completamente do episódio do romance sobre a capela Rothko (ri-se). Espero que sejam ainda refúgios, creio que o serão. As pessoas continuarão a procurar livros, ainda que os leiam em e-books: a palavra continua na página, isso é que importa. O romance é uma forma narrativa, e não creio que possa desvanecer-se e morrer, a menos que mudanças extraordinárias ocorram. Se os romances ficarem em perigo, o mesmo acontecerá com os filmes. Isso significaria que a necessidade de narrativa das pessoas pela tinha-se extinguido.
Atentados terroristas com espetacularidade global, Estados que propõem a outros Estados em crise que vendam as suas ilhas para sanar dívidas… A realidade nunca pareceu tão distópica. Há competição entre a realidade e a ficção, hoje?
A escrita não tem de competir com a realidade. As pessoas dizem que o que acontece no mundo é tão extraordinário que esmaga a narrativa ficcional. Não é verdade. Quando lemos uma história, não pensamos: “Aqui está algo a acontecer que nunca poderia acontecer no mundo.” Apenas lemos o livro e aceitamo-lo ou não. Mas quando encontramos algo do género no mundo tridimensional, dizemos que ninguém poderia ter inventado tal coisa. Os romancistas fazem-no a todo o momento. As pessoas apenas não os leem comparando-os com a realidade.
A distopia está ao virar da esquina, dentro do carro com Eric.
Amanhã isso acontecerá. E o amanhã é hoje. Não há nada de mais estranho do que um indivíduo, e a sua vida e a sua mente. Até mesmo a pessoa mais comum.
Para quem teve uma educação católica, esta entra em colisão com a distopia de Cosmopolis ou salva-o do caos?
Nunca tentaria fugir ao passado, é parte de mim. Sobre a minha coleção de contos agora publicada nos EUA, alguém apontou, sobre a história título, The Angel Esmeralda, a sua natureza católica. É verdade. O que significa, no plano da minha ficção em geral? Não sei. Creio que a enriquece. A profundidade, a dimensão de uma infância católica, é algo que nunca nos abandona. Há talvez quem queira escapar-lhe, não é o meu caso. Acho-a parte do meu mundo, e da minha escrita. Quando estava a crescer, pregava-se sobre o céu e o inferno – isso é que distópico.