1 de Abril – ‘Castings’
Parecia mentira. Habituados a alguns “cromos” exibidos nos programas televisivos de caça de talentos, as expectativas do júri eram comedidas. Procurava-se vozes que pudessem integrar o coro do Expensive Soul – Symphonic Experience, o espetáculo que juntará no palco do pavilhão multiusos de Guimarães, no próximo sábado, 28, a banda de Leça da Palmeira com a Fundação Orquestra Estúdio. Para evitar um dia interminável, estava imposto um limite de 400 audições. Apareceriam cerca de 50 candidatos. Poucos, mas bons. Na sua grande maioria afinadinhos e com postura soul. “Estávamos apreensivos, queríamos vozes diferentes e isso está a acontecer”, conta Demo, uma das caras da dupla Expensive Soul.
Comparecem mais mulheres do que homens, e de várias idades. A autosseleção dos participantes, para o maestro Rui Massena, resulta “da qualidade dos Expensive Soul, que têm um universo muito complexo e uma noção musical muito forte, e também da intensidade que representa uma orquestra”. O visual de Rita, 17 anos, não passa despercebido: cabelo cor-de-rosa, casaco de capuz verde fluorescente e corrente grossa ao pescoço. A aluna do Balleteatro Escola Profissional tem pouca experiência de palco, mas sonha com a participação em musicais, onde possa conciliar a música com o teatro. Na audição, esquece os nervos e escolhe Jura, a canção de Rui Veloso, para dar largas à sua voz quente. Na maioria dos casos, o júri faz poucos comentários e limita-se a agradecer a presença. “Tentamos perceber onde podem encaixar. Se tiverem ritmo, afinação e projeção, entram”, diz Massena.
O casting já ia a meio quando, finalmente, surgiu a primeira carta fora do baralho. “Água do rio, que lá vai, la la,l a, lai, lai, lai, lai…” Os jurados sufocam os risos, enquanto Massena descarta o candidato, com diplomacia. São precisos uns bons minutos para se recomporem. “Chama-o outra vez! Não há maneira de o conseguirmos meter? Fica só a bater palmas…”, brinca Demo. Noutros casos, a originalidade é premiada. O brasileiro César, 46 anos, há seis meses a viver em Portugal, surpreende com um sambinha, adequado à sua voz de barítono. Aqui, é “comercial”, mas no Brasil fazia parte de um coro, era locutor e queria uma oportunidade para trabalhar com a voz. “Correu bem, tinha de mostrar serviço!”
Dia 14 de Abril – Ensaio do Coro
“Como é o Sara? É para ir para baixo?” Mal ouve a pergunta do colega de coro, José Leite atira-se para o chão, em jeito de brincadeira. É o mais velho do grupo, mas não consegue ficar quieto. Nem sequer era para estar ali. A filha, Elsa Daniela, ligou-lhe na manhã do casting, convencendo-o a participar, com a Cinderela, de Carlos Paião. “Estava todo grogue, mas acabei por ser escolhido. Mal conhecia a banda, sou muito antigo.” Tocador de bandolim, já animou 527 casamentos e ganhou traquejo de sobra. Disponibilidade não faltava. “Estou por conta do Estado português…” Não foi o único da família a responder ao apelo. Também o filho e a nora quiseram tentar a sorte. Em casa, ensaiam em conjunto. “Com duas vozes masculinas e duas femininas, dá para reproduzir o coro.”
Ao terceiro encontro, no Instituto do Design – onde outrora funcionou a Fábrica da Ramada, dedicada à indústria de curtumes -, as vozes saem fluidas e afinadas. As letras de Game Over, Eu Não Sei, Sara, Falas Disso, 13 Mulheres, A Marcha, O Amor é Mágico sabem-nas de trás para a frente, mesmo as partes que não cantam. “São músicas orelhudas, fáceis de entrar”, diz Eva, 47 anos, antiga concorrente do Chuva de Estrelas e do Festival da Canção. Quando se apresentou nos castings, não conhecia bem o repertório dos Expensive Soul. “Fiquei a gostar muito, tem boa batida.”
Aos comandos dos ensaios, estão Cati Freitas e Isabel Milheiro, elementos da Jaguar Band, que acompanha os Expensive. “Está a ser fácil, são muito musicais. Já nos castings ficámos surpreendidos. Mas podiam ser bons individualmente e difíceis de gerir como um todo…” Com o concerto no horizonte, o nervoso miudinho começa a aparecer. Segundo Cati, “os arranjos do Ru [Massena] estão giros e a orquestra vai dar muita força às músicas. Nunca tive esta experiência, mas está a ser bom ver como as coisas evoluem.”
20 de Abril – Ensaio com Orquestra
Maestro e músicos da Fundação Orquestra Estúdio abanam a cabeça, ensaiam umas coreografias, rodam os instrumentos, cantam as músicas de cor. “Apesar de não ser a nossa zona de conforto, é uma maravilha experimentar universos diferentes”, comenta Rui Massena. “Quando vejo o entusiasmo e o resultado sonoro, fico muito satisfeito.” Comparativamente, os Expensive Soul parecem muito serenos. Mas estão rendidos à experiência: “Está a ser ótimo, para recordar durante muitos anos.”
Os ensaios decorrem em ambiente idílico, na montanha da Penha, numa quinta vocacionada para a organização de eventos, rodeada de verde e de nevoeiro. Ouvem-se violinos, flautas, guitarras elétricas e a voz aguda de New Max: “Dou-te tudo/ Quando não queres nada.” As músicas ganham dramatismo e o mundo dos Expensive Soul é amplificado com os arranjos, feitos em conjunto por Massena e New Max.
Quando ouviu o último disco da banda, o maestro sentiu algo semelhante à audição de uma grande sinfonia. “Estou sempre a descobrir sons novos. E depois de orquestrar, ainda mais. Gosto muito de escrever. É um ato de reflexão e um trabalho que me é útil para a compreensão da orquestra”. Muitas horas foram gastas. “Não colamos os arranjos às canções, reconstruímos.” Sempre com uma grande abertura do grupo a todas as modificações. Afinal, como diz New Max, “esta nova roupagem alarga o nosso universo e leva o trabalho para outro patamar; são músicas completamente diferentes”.
Com mais este espetáculo, Massena prossegue um caminho, traçado desde o início da Capital Europeia da Cultura, de aproximação da orquestra às pessoas e, neste caso, à música deste tempo. À semelhança de outros concertos, também para este os bilhetes estão prestes a esgotar-se. “Temos sentido muito carinho e apoio da população. A orquestra pertence-lhes”, diz o maestro. Fábio Rodrigues, o tubista de 20 anos, fã dos Expensive Soul, não tem dúvidas: “Esta experiência vai ficar para sempre.”