Não há uma rotura radical de estilo ou de linguagem, mas Tabu talvez fique para a história (entre outros feitos) como o início de uma nova fase de um jovem realizador que já não é assim tão jovem quanto isso. Quem chamava a Miguel Gomes o cineasta da infância vai ter que lhe arranjar outra alcunha. Isto apesar da frescura dos seus filmes anteriores se manter intacta. Mas a frescura não pode ser sempre a mesma se não torna-se seca. O que se repete em Tabu é a capacidade de surpreender o espectador.
Desta vez não desnuda a estrutura do cinema, como no anterior Aquele Querido Mês de Agosto, em que expunha a rodagem, fazendo dos bastidores o próprio filme, numa habilidade espantosa de criar um nível de realidade dentro da ficção, na fronteira dos géneros. Aqui homenageia o próprio cinema, desdobrando o filme em dois níveis antagónicos: uma primeira parte de pessoas comuns, com sede de ficção; uma segunda, de cinema clássico e grandes emoções: amor, aventura, traição, exotismo, arrependimento, morte. Tudo o que queremos ver num bom filme à moda antiga.
Nesse sentido Miguel Gomes voltou a fazer um filme em que o assunto também é o próprio cinema, só que desta vez a presença impõe-se mais pela forma do que pelo argumento. Tabu é todo a preto e branco. Mas na segunda parte, como no cinema mudo, não se ouve a voz das personagens, apesar de as vermos falar. A narrativa é sustentada na voz off, mas escuta-se o som ambiente. Desta forma não há qualquer reconstituição técnica da sétima arte, pois em nenhuma fase intermédia a tecnologia nos deu o som ambiente e de voz off, retirando os diálogos.
Ao contrario do que acontece com O Artista, o cinema mudo é evocado mas não imitado. Em nenhum momento Tabu é um filme mudo. E por momentos, a narração (feita por uma dos personagens) africano aproxima-nos do estilo documental National Geographic. Serve também para manter uma perspetiva exterior. Aquela é uma história real que nos estão a contar, mas a nossa realidade é outra, a nossa realidade é a da primeira parte.
Tal é evidente quando, numa espécie de prólogo, vemos uma curta-metragem, uma barroca e romântica história africana, a que Pilar está a assistir. Vemos o filme inteiro e só depois nos apercebemos de que aquilo é um filme dentro do filme. Esse preâmbulo promete uma África de aventuras para a segunda parte. É a pequena ficção que preenche a vida de uma personagem carente de ficções, como nós próprios. Esse é também o primeiro jogo de contrastes, que se tornaria ainda mais evidente, talvez excessivamente evidente, se a primeira parte fosse a cores. Mas aí vale a máxima de Wim Wenders: “A realidade é a cores, mas o preto e branco é mais realista”.
Miguel Gomes abandona a temática da infância e não o poderia fazer de forma mais explícita. As personagens principais da primeira parte já passaram a casa dos 60. Só que os opostos quase que se tocam, e a senilidade intermitente de Aurora tem traços de infância perdida ou de uma adolescência tardia que mais tarde chegaremos a recuperar.
Aurora é a personagem central do filme. A única que preenche as duas partes. Contudo, numa originalidade de forma, a personagem principal da primeira parte é outra. Os nossos olhos centram-se em Pilar. Pilar é uma personagem sem grande vida, ou de vida chata, daquelas que, como nos disse Miguel Gomes, num outro filme não passaria de figurante. É reformada e sozinha. Religiosa e cheia de vontade de mudar o mundo, tarefa que, como se sabe, é invariavelmente frustrante. Virada para os outros, em doses semelhantes altruísmo e solidão. De resto, todas as personagens da primeira parte são sozinhas e incompletas, vítimas do Paraíso Perdido em que se encontram.
Boas interpretações de Teresa Madruga e Laura Soveral. E grandes momentos de cinema, como o sonho relatado por Aurora, que serve de desculpa para ceder ao seu vício do jogo. Evidencia-se a presença africana, colonialista, em Lisboa, através dos mais diversos pormenores, desde a arquitetura a traços do décor. Ou até mesmo a personagem de Santa, a criada negra de Aurora, que no trato notam-se resquícios do colonialismo. A própria transição para a segunda parte é feita num espaço de decoração naif, um centro comercial no Cacém em que se reproduz uma selva.
Em Lisboa contam-se os dias, em África contam-se os meses. Essa leitura diferenciada do tempo é dada através dos separadores, marca que acompanha as três longas de Miguel Gomes. Este é também um filme sobre a dicotomia do tempo. O presente saudosista, o passado que queremos viver. Só que no passado da segunda parte há uma inconsciência do próprio tempo. Como se os atos não tivessem consequências, numa leviandade infantil (ora, lá está a infância). Se na primeira parte parte Aurora exibe traços de senilidade, em África a insanidade é aceite, como é claro nos anfitriões da festa da piscina (o pai brinca à roleta russa enquanto o filho joga boxe francês com fantasmas).
A segunda parte torna Tabu, na sua essência, uma grande história de amor. Uma história de amor impossível, mas daquelas que nos envolvem e nos apaixonam. E o aparente distanciamento criado pela narração, pelo ambiente africano que nos é distante ou pelo comportamento ético das próprias personagens (colonialista no sentido mais perverso) não lhe retira emoção.
O trabalho dos atores é fantástico. Carloto Cotta vale mais do que Dujardin e Ana Moreira está absolutamente deslumbrante. E depois há o crocodilo. O crocodilo bebé, brinquedo de carne e osso e dentes afiados, que vai crescendo, como uma fera insubmissa, que foge do espaço. Mas aquele animal, resquício do tempo em que os homens eram macacos e os macacos eram homens, representa a memória. A memória das histórias que ficaram por contar.
Tabu, de Miguel Gomes, argumento de Miguel Gomes e Mariana Ricardo, com Teresa Madruga, Laura Soveral, Ana Moreira, Henrique Espírito Santo, Carloto Cota, Isabel Cardoso, Ivo Müller e Manuel Mesquita, 118 min