Depois da Palma de Ouro em Cannes, João Salaviza, 27 anos, ganha o Urso de Ouro em Berlim, com Rafa. Torna-se assim o único realizador português a receber os galardões máximos de dois dos mais prestigiados festivais de cinema europeus. Só fica a faltar Veneza…
Não é preciso consultar as estatísticas para perceber que tu és o mais novo realizador a acumular um Urso de Ouro de Berlim a uma Palma de Ouro de Cannes, além de seres o único português a receber estes prémios. Tens alguma explicação para o facto?
Não tirando valor aos filmes em competição, há um elevado fator de subjetividade. Beneficiei da felicidade de uns membros do júri de alguma forma ficaram sensibilizados pelo meu filme e não por outro qualquer. Aqui, em Berlim, tive a oportunidade de falar com eles no final e disse-lhe que tinha estado a analisar o perfil deles e parecia que o meu filme tinha pouco a ver com o que estavam à procura. Um dos membros do júri confessou-me que o facto de eu ter sido Palma de Ouro há três anos ia pesando pelo lado negativo. Ou seja, quase que atribuíam o prémio a outro filme por acharem que seria mais útil para outro realizador. Mas depois chegaram à conclusão que não deviam seguir esse critério.
Dois prémios inéditos para o cinema português…
Sim, o João César Monteiro tinha ganho um Leão de Ouro em Veneza, com As Recordações da Casa Amarela. E esse foi o maior prémio de sempre para as longas portuguesas. Eu sinto que estou a repetir as coisas da altura do Arena. É um pouco absurdo. Claro que depois de ter conquistado o prémio tenha a expectativa que os meus filmes sejam mostrados em alguns festivais. Os prémios surgirem assim de repente é mesmo inesperado. Mas o mais importante é o filme propriamente dito, porque os prémios não sou eu que os decido.
Neste filme tens um ator que não é profissional. Porquê essa opção?
Foi a conjugação entre um ator não profissional e uma atriz profissional, a Joana de Verona. Tento cada vez menos fazer uma separação estrita com atores e não atores. Na prática as premissas são muito parecidas. Eu tento fazer cada vez menos uma separação estrita entre o trabalho com atores e não atores. Na prática, as premissas são muito parecidas: encontrar uma zona intermédia entre a personagem e a pessoa que interpreta essa personagem. O mais importante são os vestígios da vida dessa pessoas, as impurezas, as falhas. Tudo isso se materializa no filme. Que o miúdo fosse uma presença à frente da câmara mais do que uma personagem. Não é um documentário, mas também não é uma personagem criada por mim. O que nós vemos é muito mais próximo do Rodrigo do que daquilo que eu tinha escrito no guião. O guião foi apenas um ponto de partida para ir descobrir outras coisas.
O Rodrigo foi mais do que um ator.
Sim, ele existe à frente da câmara, Não quer dizer que um ator profissional não o consiga fazer. Formalmente, é o meu filme mais simples, pequeno e generoso. Enquanto realizador estou menos presente. O desejo que ele exista em frente da câmara faz com que eu me anule para deixá-lo existir. A própria montagem do filme é muito fragmentada e com algumas impurezas que tem a ver com limitar-me a seguir o miúdo. Eu vou atrás dele e ele é que decide.
Como é que o descobriste?
Com o resto da equipa começámos a procurar miúdos em sítios mais improváveis. Fomos a algumas escolas e clubes de futebol. Começámos também a abordar pessoas na rua, o que é complicado por serem menores de idade. Mas o Rodrigo foi encontrado pelo Márcio, o assistente de realização, numa festa do Santos Populares, em Lisboa. Falaram com ele e depois com a família. Estávamos á procura de alguém que estivesse naquele curto período em que estamos cheios de vestígios de infância no corpo, na cara e na voz, mas, ao mesmo tempo, já projetamos o olhar na idade adulta que está a chegar. Tem uma estrutura mitológica, um rito de passagem, de um miúdo que sai da sua aldeia, no caso um bairro do outro lado do rio, e vem para o mundo desconhecido que é a cidade de Lisboa. E o que ele descobre também mais a ver com uma viagem interior. Durante a rodagem houve vários takes que a voz lhe falhava. Houve takes que dobrámos e a voz já tinha mudado. Achámo-lo na altura certa. Uns meses antes ou uns meses depois ele seria outra pessoa.
Qual é a curta que estás a preparar para Veneza?
[risos] Agora estou a preparar a minha longa. Estou a fazer a reescrita do guião. Devo começar a rodagem ainda este ano. Às vezes tenho inveja dos escritores, dos pintores, dos músicos, que não estão dependentes deste mecanismo semi-industrial, em que a relação com o tempo é muito mais fácil.