Que vírus, pergunta-se, terá mordido a Soderbergh para ele ter resolvido fazer aquele enfadonho díptico sobre Che Guevara, em que punha o comandante argentino a cumprimentar outros guerrilheiros, cena sim, cena não? Foi no que deu: quase ausência de acção e um Benicio Del Toro, mais ou menos asmático, a acenar para todos os lados lá nas montanhas da Sierra Maestra: Hola Compañero!
Porque em filmes como este, O Contágio (ou no Sexo, Mentiras e Vídeo ou nos Oceans, ou em Trafic etc), é que Soderbergh se encontra dentro da sua área de conforto. Por isso, please don’t cross the line. Dentro desta linha de thriller holliwoodesco, Soderbergh não impressiona nada, mas cumpre. Sem rasgos, nem brilharetes, mas é competente – o que já não é nada mau. E quem não semeia ventos não colhe tempestades, nem apanha pneumonias.
E aqui chegamos ao olho do furacão deste filme-apocalíptico, que não tem catástrofes, nem cataclismas naturais nem tsunamis, mas não importa, porque o resultado é sempre o mesmo e já o vimos em centenas de filmes: ruas desertas cobertas de lixo, alguns vultos humanos meio moribundos, escolas e grandes superfícies desertas, gangs a partir as montras das lojas, pessoas a tentar roubar o carro uma das outras e a polícia inoperante, a mandar voltar para trás, quando alguma personagem tenta sair da cidade. Nos filmes-epidemia, o mais vulgar é as populações transformarem-se em zombies (ou algo semelhante) com uma vontade voraz de darem uma dentada no próximo. Contágio tem esta vantagem: os mortos ficam mesmo mortos. Mas tem a desvantagem de nos desassossegar quando abandonamos a sala de cinema (ou mesmo dentro dela) porque se trata de uma epidemia verosímil (do tipo Gripe A ou Gripe Asiática) através de uma vírus desconhecido, que alastra pelo corpo que não o reconhece, logo não tem resistências, e mata em poucas horas. E alastra também pelo mundo inteiro (é uma pandemia) porque, de facto, a raça humana é muito promíscua, passamos o tempo a tocarmo-nos (levamos a mão à cara, diz-se no filme mais de cinco mil vezes por dia), e a respirar e a espirrar saliva para cima uns dos outros, a tocar no mesmo botão no elevador e no puxador da porta dos wc e a fazer esta tramitação de vírus, bactérias, fungos e sabe-se lá que mais.
O realizador toma outra opção que reforça a empatia do espectador com este tipo de enredo. Que é pôr tudo quanto é estrela de alta cotação – Gwyneth Paltrow, Marion Cotillard, Jude Law, Kate Winslet, Lawrence Fishburne – com um aspecto lastimável, com as vias nasais muito congestionadas, todas enfermiças e com muito mau aspecto. Sobretudo quando morrem. E fartam-se de morrer. Matt Damon é o único que mantém aquele seu ar saudável de jogador de baseball, porque é imune, um study case. Jude Law é um blogger mal-humorado, também com as vias nasais congestionadas, que vai pondo postes a profetizar a desgraça, a denunciar e ameaçar as autoridades, a vender um produto milagroso, do género “contagiem-me que eu posto”… E Gwyneth Paltrow é a paciente zero, morre logo, por causa da mutação de uma gene numa mutação esquisita entre um porco e um morcego. Contamina toda a gente, quando vem do oriente, é alvo da mais inclemente e inestética autópsia que se tem visto nos últimos tempos – mas o argumentistas não faz dela uma coitadinha, porque no seu regresso, a portadora numero um do vírus faz uma escala para se encontrar com o amante, enquanto em casa o marido (Damon) toma conta do enteado.
O arranque do filme é dinâmico, com os médicos a informarem Damon de que o coração da mulher parou. E ele a responder, está bem, mas quando posso falar com ela.
Mas depois entre numa enrodilhado de cenas de laboratórios, isolamentos, vacinas, polémicas e políticas de saúde, nos quais se envolve esta personagem ambígua que não se percebe se é uma maquiavélico alarmista ou um maquiavélico charlatão. De resto, não há Dr House, há um rapto mal enjorcado organizado por chineses que querem ficar com os primeiros lotes de vacina e com eles vai também Cottiard. Winslet é uma espécie de Florence Notingale dos tempos modernos, e mesmo quase quase a entregar a alma ao criador, ainda tenta entregar também o casaco a um moribundo como ela. E o saudável Damon engendra a surpresa mais pirosa (sim, é esta a palavra) à filha, quando lhe arranja um vestido para um baile de finalista em quarentena.
Tudo soa a demasiado gasto e explorado por todos os filmes do género catástrofe. Fica-se apenas com uma certa sensação de nojo, com a proximidade do nosso semelhante, mas ao contrário desta gripe virulenta, depois passa… Retém-se apenas a imagem do macaquinho-cobaia, à espera da sua vez de ser injectado, no laboratório de vacinas.