O cinema precisa de heróis. E Júlio Bressanes, o realizador brasileiro de 65 anos, é um deles. O IndieLisboa vai homenageá-lo com uma retrospetiva que dá a conhecer uma parte extensa da sua obra. O JL entrevistou este homem que tenta chegar ao impossível através do cinema
É cineasta, mas fala de todas as artes, como se não houvesse outra forma de fazer cinema. Júlio Bressanes é uma das mais enigmáticas personagens do cinema brasileiro e um daqueles que nunca se rendeu aos ditames de um cinema formatado, desde os primeiros momentos. Começou como herdeiro do cinema novo, em filmes rodados em tempo recorde, como Matou a Família e foi ao Cinema, mas foi intensificando e radicalizando o seu discurso, com experiências mais extremas, como Cleópatra ou a sua mais recente obra A Erva do Rato.
Jornal de Letras: No Indie vai haver uma retrospetiva da sua obra em que se mostram filmes muito diferentes que fez ao longo de 40 anos. Mas o que têm em comum Matou a Família e Foi ao Cinema e A Erva do Rato? É o mesmo realizador?
Júlio Bressanes: Todo o início é involuntário. Seria penoso para mim dizer se se trata do mesmo realizador ou de um realizador que tem muitos realizadores dentro dele. Não sou suficientemente esclarecido a meu respeito, para falar desta epifania de metamorfoses que tem sido a minha trajetória de cinema. Não creio que uma pessoa possa ser a mesma a vida inteira. Havia um autor que dizia: “Mais difícil do que a solidariedade de um homem com outro homem é a solidariedade de um homem com o seu passado”. É difícil sermos julgado pelos nossos atos daqui a um ano: já não somos a mesma pessoa.
Os seus primeiros filmes marcaram de alguma forma o cinema brasileiro alternativo. Como os vê neste momento?
O tempo tem esse mistério. Aas pessoas vão-se transformando mas nunca deixam de ser quem foram: há alguma coisa que fica e alguma coisa que se perde. O Matou a Família e Foi ao Cinema e o Anjo Nasceu foram filmes que recuperaram um fio de tradição que estava esquecido no cinema brasileiro. Foi um cinema de experimentação, voltado para a questão da sua própria potência sensível, o que seria possível fazer com o cinema. Nunca vi o cinema como síntese das artes ou sétima arte, nada disso. O cinema para mim é um organismo intelectual demasiado sensível, que faz fronteira com todas as artes, as ciências e a vida. O cinema atravessa e é com os olhos voltados para a travessia que se vai criando essa constelação, essa imagem que junta o passado ao agora. A dificuldade do cinema é a exigência. Exige uma coisa que hoje não se tem: tempo, disponibilidade e responsabilidade criativa. Isso desapareceu nos nossos dias, porque venceu a civilização do trabalho. O cinema exige um tempo religioso medieval em que, mesmo levemente, ter-se-ia de estar ao corrente de todas as disciplinas. Envolve a Química, a Física, a Matemática, a Geometria, a Poesia, a Literatura, a Música… A exigência do cinema é paradoxal hoje em dia, é como usar um escafandro para entrar numa banheira. É o mais radical elemento de autotransformação e essa é a questão transversal aos meus filmes… essa coisa impossível que é a autotransformação. Foi esse impossível que procurei costurar nos meus filmes.
A ligação a outras artes é muito clara em relação à Literatura, há várias obras suas em que vai buscar textos literários do Padre António Vieira, do Machado de Assis. Mas um livro nunca pode ser um filme, como faz essa ligação?
A coisa está ao nível da tradução intersemiótica, ou seja, transferir um objeto de uma linguagem para outra: um poema para um ballet. Esse foi justamente o meu trabalho. Autores como o Machado de Assis ou o Padre António Vieira são irredutíveis. Aquilo não se reduz a nada, não se traduz. O que se faz é uma sugestão, numa outra linguagem, em que se possa dar a ideia da complexidade da estrutura do objeto original. Sempre foi uma questão da estrutura, do estilo. Dentro do meio utilizado tem que se fazer uma sugestão em imagens. São transcrições em clichés cinematográficos do que seria em literatura o estilo daquele autor, mas isso arranha-se apenas à superfície, trazem a marca do impossível. Afronta o realizável. Mas é isso que eu quero. O que procuro fazer é aquilo que não é possível. Através de uma ordem de clichés é possível sugerir o objeto original e encontrar essa inquietude estranha. É vestindo essas máscaras que procuro caminhar.
Mas tal acaba por ser um desafio para o espetador…
O desafio é sempre para quem faz. O espetador é uma coisa que já está forjada naquilo que você faz. As coisas são feitas sempre para nós mesmos. Não podemos fazer um filme para o público, tal não seria humano. Só há uma possibilidade de alguém que possa ver o filme, você mesmo. A sensibilidade está em ter muitas perspetivas dentro de cada um. Como as línguas, que não são sinónimos, mas diferentes formas de sentir o mundo. De alguma maneira, muitas línguas dão muitas perspetivas do mundo. Num filme, o que se procura enfrentar é ver e ser visto. O diapasão é você próprio.
Falávamos há pouco da relação com a literatura, mas de que forma esse conceito se aplica a um filme que tem uma ligação estreita com a História, como Cleópatra?
Também é uma coisa curiosa, foi um dos raros símbolos importantes dentro da História, que teve pouca repercussão na língua portuguesa, apesar de estar n’Os Lusíadas. Há um significante literário que atravessa tudo isso. Não existe Cleópatra em português. Fiz uma sugestão de significantes, um trabalho quase de cartografia, atravessei Fernão Lopes, Padre António Vieira até Carlos Drummond de Andrade. Uma longa rede onde o significante da língua corre por dentro. Uma apropriação. Uma maneira de fazer com que a língua se aproprie desse mito.
O cinema também é imagem e há um formalismo num filme como Cleópatra…
Realizar um filme com uma linguagem dentro da linguagem. Os gestos ganharam outro valor, outra forma, outro significado. Tem uma outra questão que é a organização na montagem daquele cenário, as diversas manchas de imagem que compõem aquela imagem. O trabalho de arte do filme é do Moa Batsu. A ideia é juntar manchas de muitos quadros para criar um quadro original. Isso está colocado no cenário, mas presente ali. É uma montagem de hieróglifos onde duas forças contrárias estão dentro da mesma imagem.
A imagem acaba por ser um ponto de partida em A Erva do Rato, que talvez seja o filme que causa maior choque.
Tudo o que vemos são máscaras de papelão. Há alguma coisa invisível e inexprimível que está atrás de uma máscara, que é certamente outra máscara. Na Erva do Rato é uma questão que escorre do filme. É um experimento de como é apreendida e revelada a luz no cinema. Cada plano é um filme. Segui uma tradição fina na língua portuguesa: fazer a coisa natural e ordinária, ao lado da coisa sobrenatural e extraordinária. Vê-se como se fosse um bouquet de flores, mas não é de todo isso. A dramaturgia é a luz, o enredo é uma máscara de papelão. Ainda assim usei no filme dois contos do Machado de Assis: Um Esqueleto e A Causa Secreta. A Causa Secreta é sobre a relação do homem com o animal, essa relação homicida, o holocausto diário monstruoso a que o homem condena todos os animais da terra. A outra é a do convívio com o esqueleto, aquilo que será o último escorregão do seu nome: os ossos.
Mas salta à vista uma obsessão pelo sexo feminino.
A sexualidade é presente mas difusa. Há a evidência dessa sexualidade, mas ao mesmo tempo a sua banalização. Fica mais no incómodo, no desagradável, no inquietante, nessa questão, do que propriamente a imagem. A imagem apenas propõe, o que o indivíduo faz é dispor. O sexo é a coisa mais deseducada. Tocou nisso, tocou no mal-estar generalizado. A questão da beleza é central. O mito fundador da ideia de beleza é uma passagem da Ilíada a que se chamou O Julgamento de Páris, é o que decide sobre a beleza no Ocidente. O episódio central é o que Afrodite promete e mostra ao Páris, que é a própria vulva. Escolhe Afrodite. Depois vem o Freud completar a leitura. A beleza está ligada ao prazer sexual , você acha belo o que lhe dá prazer. A beleza extrema é um homem ereto a contemplar diretamente a genitália. Desde a folha de parreira que não se pode olhar diretamente a genitália, mas olha-se até onde se pode, até à barra mais curta da saia, até à ponta mínima da saia, até onde vai o decote máximo.
Um pouco como a Origem do Mundo, do Courbet…
Exatamente, ele radicalizou, ao colocar a genitália exposta, coisa que não se fazia. O homem não conseguia contemplar a genitália porque não se conseguia conter, ele vai para a frente, ele quer consumar. Por isso, essa visão contemplativa era considerada uma impossibilidade na arte.