O filme começa com uma câmara de vigilância da A5, no sentido Cascais-Lisboa e termina com o ensurdecedor ruído de um moderno cortador de relva, pelo meio, uma banda sonora magnífica e um vídeo de telemóvel. Oito anos depois de A Falha, João Mário Grilo regressa à ficção com Duas Mulheres, um filme eminentemente contemporâneo, em que o realizador faz questão de registar a Lisboa de hoje e experimenta coisas novas.
Woody Allen gosta de pensar que se os seus filmes não servirem para mais nada, servirão enquanto retrato de Manhatan. O mesmo se passa com este novo João Mário Grilo, a propósito do qual se poderia fazer um itinerário por Lisboa, passando pela avenida da Liberdade, túnel do Marquês, avenida da Igreja, Quinta da Marinha ou o a travessia do Tejo de cacilheiro… esse mérito o filme tem. Assim como o vídeo da câmara de vigilância (exógeno) e vídeo do telemóvel (endógeno), que não são mais do que isso, olhares dentro de olhares, justificados pelo pulsar moderno do filme, mas também por essa vontade de descoberta.
O pano de fundo é uma aristocracia lisboeta raramente focada no cinema. Estamos habituados a ver a classe aristocrática nortenha, nos filmes de Manoel de Oliveira a partir de Agustina, que são famílias lendárias paradas no tempo de Camilo. Aqui há uma aristocracia emergente, de yuppies banqueiros, modernos e estilizados, que vivem em grande, mas com requintes contemporâneos. Como a arquitetura da casa onde o mora o casal, formado por um banqueiro e uma psiquiatra. Tratam-se por você e ele reza antes do coito. Mas nem por isso são personagens divertidas. Paulo Amorim (Virgílio Castelo) é seco e enfadonho, preocupado com assuntos da alta finança, em jogos políticos, diplomáticos e financeiros, que se sobrepõem à moral, por mais que ele a introduza no seu discurso palavroso.
Também por aí o filme acerta em cheio no Telejornal. A questão é a nova ordem mundial e as novas regras do mundo financeiro, globalizantes e supranacionais, que, alegadamente, prejudicam os mais fracos. Aparentemente até há uma certa nobreza no seu discurso. Mas é apenas uma aparência. Paulo revela a identidade em algumas frases. O pedido que faz à mulher: “Se não me vai ajudar na minha carreira, pelo menos não me prejudique”. O conselho que dá ao filho: “Noutros desportos, como o futebol, funciona o jogo de equipa. No ténis, tudo depende de si, da sua força de vontade”. Depois há a personagem cínica, Tomás, o braço direito, que é uma espécie de bêbedo da aldeia, que diz todas as verdades.
É um filme com retratos e até algumas caricaturas, como é o caso do comandante (Nicolau Breyner), que poderia ser comendador, milionário e excêntrico nos seus atos. Pilota um avião telecomandado perante o aplauso do público subserviente. É o lado Tráfico (de João Botelho) do filme, que culmina com Romana (a cantora pimba) a entoar os Parabéns a Você.
A intriga, de resto, tem o seu quê de Call Girl (de António-Pedro Vasconcelos) e de Os Sorrisos do Destino (de Fernando Lopes). Uma certa ideia de medo (mais interior do que exterior) percorre a tela, em que Beatriz Batarda mais uma vez brilha. O sal do filme é Beatriz Batarda. Cria uma personagem densa, que torna a história consistente. O chamariz é a aventura entre Mónica (Débora Monteiro) e Joana. A personagem descobre-se lésbica, vencendo medos, desviando rotinas e beija a call girl que é sua paciente: “Não sei se o caso é interessante, mas tu estás muito interessada nele”, diz-lhe o amigo (João Perry).
A componente erótica não pode nem deve ser desvalorizada, pois é uma marca essencial do filme. Contudo, que o efeito cativador do erotismo não ofusque em demasia as várias camadas em que o filme se vai despindo. Que no fundo, percebemos no final, é o prmeiro de uma série chamada Condição Humana.
Duas Mulheres, de João Mário Grilo, com Beatriz Batarda, Virgílio Castelo, Débora Monteiro, Marcello Ureghe, Nicolau Breyner, João Perry; argumento de Rui Cardoso Martins e Tereza Coelho; Portugal; 100 min